Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Observatório jurídico John Rawls: localizando o ponto de convergência do Direito com a Política, a Moral e a Economia na Lei de Arbitragem brasileira

Exibindo página 1 de 3
Agenda 07/04/2012 às 07:46

A tecnologia civil da arbitragem ainda é pouco utilizada pela população brasileira, refletindo fatores negativos diversos, tais como ausência de informação pública; persistência de uma cultura jurídica positivista; desmotivação moral; e custos elevados para o cidadão mais pobre.

Resumo: o artigo desenvolve o conceito “véu da ignorância” na lei de arbitragem brasileira, procurando mostrar a aplicabilidade deste conceito na ordem jurídica quando especificamente os cidadãos pretendem fazer justiça privada usando o paradigma da cooperação social. Com essa perspectiva de trabalho, aproveitamos alguns fragmentos do livro “Uma teoria da justiça”, do autor John Rawls, contando criteriosamente  com a ajuda de uma metodologia inventarial do conhecimento, formada pelas categorias ontológica, metodológica, axiológica, teórica, pragmática e contextual das ideias, cujo resultado final possibilita visualizar a estrutura e a prática jurídica do conceito “véu da ignorância” na democracia contemporânea.

Palavras-chave: justiça; arbitragem; “véu da ignorância”.


INTRODUÇÃO

Na teoria da justiça, elaborada por John Rawls, a cooperação civil entre os participantes pode ocorrer no ambiente conflitivo; entretanto, para isso acontecer de forma equilibrada, são necessários alguns incentivos ou restrições legais, que estimulem publicamente os indivíduos a maximizarem a participação democrática através dos princípios constitucionais baseados na igualdade, liberdade, dignidade e eficiência econômica.

No contexto da sociedade moderna bem ordenada, imaginada por John Rawls, há diferenças e desigualdades intrínsecas. As diferenças, segundo ele, fazem parte da sociedade não estatal ou civil; têm a ver com o fato de que as pessoas possuem interesses; convicções; preferências; tipos biológicos, culturais e intelectuais que são discrepantes, constituindo na prática a ideia daquilo que classicamente denominamos de pluralismo social. Por outro lado, as desigualdades econômicas têm a ver diretamente com o que acontece no Mercado; ou seja, na estrutura econômica existem homens inseridos em regiões sociais diferentes que terão diferentes expectativas de vida e de sucesso material. Conforme ressaltou John Rawls neste sentido, é no Mercado que as desigualdades são marcadas especialmente de forma profunda (apud KRISCHKE, 1993, p.158).

Considerando essa realidade social, onde coexistem o conceito da igualdade postulado pelo Estado Democrático de Direito; o conceito da desigualdade do Mercado; e o conceito da diferença postulado pela Sociedade civil, o maior desafio para John Rawls é exatamente formalizar um modelo de contrato alternativo que seja capaz de permitir aos interessados resolverem seus conflitos adotando a cooperação como princípio social básico inserido no ambiente democrático, pluralista e desigual (ibid., p. 158). Para desenhar esse modelo contratual inovador em relação ao contratualismo moderno, e também revolucionário em relação às teorias do Utilitarismo e Intuicionismo, John Rawls desenvolveu uma releitura crítica das ideias de Kant, Locke e Rousseau. Nessa direção, ele não imaginou como os indivíduos iriam fundar hipoteticamente o Estado civil, como fizeram os pioneiros contratualistas, mas pensou agora em discutir como as pessoas poderiam reutilizar o Estado Democrático de Direito - já instituído - no momento crucial em que elas estejam tentando realizar a justiça com o máximo de respeito e cidadania.

Nesse novo tipo de contrato social, entretanto, as pessoas precisam ser livres, racionais e devem se reunir, espontaneamente, pelos mesmos interesses morais.

Os princípios básicos devem regular nesse contexto os futuros entendimentos e especificar os gêneros de cooperação social que poderão ser incluídos na associação; bem como determinar as formas de autogoverno dentro da Lei.

Nesse modelo de contrato civil, que utiliza a equidade política, as pessoas devem decidir, antecipadamente, como serão resolvidos seus problemas contenciosos e suas carências públicas, bem como a forma como utilizarão a “carta fundamental” da sociedade.

A escolha racional dos princípios constitucionais em favor de uma justiça humanizada implica o reconhecimento mútuo de que, independentemente do que acontecer no futuro, todos os participantes querem ser tratados com igualdade e respeito. Na verdade, todos os cidadãos desejam a igualdade de oportunidade para manifestarem suas opiniões, interesses e preferências. Nesse aspecto, John Rawls afirmou que: “a partir do momento em que todos se posicionam da mesma forma, ninguém seria capaz de fazer uma escolha que favoreça a sua própria posição particular e os princípios da justiça seriam o resultado de um acordo ou barganha equitativa” (ibid., p. 158).

Nota-se nesse tipo de arranjo contratual que as pessoas morais vão comportar-se como seres racionais e escolherão princípios e não regras, inicialmente. Pensando nos fins, ou seja, na realização da justiça, igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana, os indivíduos deverão agir voluntariamente; entretanto, dependerão nesse caso do consentimento de todos os participantes ligados ao contrato. Nesse contexto, as partes não são exclusivamente criaturas egoístas, nem estarão estimuladas institucionalmente para tal fim, mas por outro lado, devemos ressaltar, não serão jamais pessoas altruístas. Ou seja, os cidadãos não se reunem contratualmente nesse tipo de contrato porque apresentam interesses pela riqueza, posição ou prestígio material. Também os cidadãos não possuem interesse maior em conhecer o conteúdo ideológico do outro participante (podem ser inclusive dois religiosos de duas religiões diferentes celebrando o mesmo acordo).

A “posição original” do contrato (semelhante ao estado de natureza dos contratualistas modernos) será identificada por meio de regras que serão adotadas coletivamente (ibid., p. 159), surgindo por extensão uma identidade moral entre os participantes que reivindicam bens primários idênticos (no mínimo, liberdade, justiça, igualdade, respeito, autoestima, responsabilidade e oportunidade de participação). Na posição original e também durante o funcionamento efetivo da justiça como “equidade” política, os indivíduos serão criaturas interessadas e ontologicamente pessoas híbridas, ou seja, morais e racionais; dispostas então a participarem democraticamente na busca da solução de conflitos. Nessa filosofia contratual, tem ampla aceitação o fato de que será impossível ajustar-se os princípios às circunstâncias peculiares de cada caso particular (lembre-se que o contrato é inicialmente oficializado entre as partes falando do futuro e não do presente). Além disso, não importa saber se uma das partes é rica e a outra é pobre. O que se valoriza nesse tipo de contrato é exatamente a concordância moral mútua, ou seja, os cidadãos participantes desejam ser tratados com o máximo de dignidade no procedimento alternativo da justiça. Aqui, o desconhecimento contratual que se tem não é propriamente sobre a realidade econômica de cada um, mas a respeito da posição institucional que se ocupará no futuro. Não se sabe, exatamente, se a pessoa será credora ou devedora, vítima ou agressora. Independentemente, portanto, do que ocorrer no futuro, os contratantes esperam ser tratados com dignidade na resolução de um eventual conflito ou escassez de bens públicos.

A unidade desse contrato social alternativo procura equilibrar as desigualdades econômicas com os princípios da diferença e da igualdade constitucional do Estado; entretanto, para isso acontecer positivamente, as liberdades básicas do cidadão devem ser garantidas; como exemplo: a liberdade política; de associação; de pensamento; a liberdade de não ser preso arbitrariamente; além da garantia dos direitos fundamentais à vida e propriedade. Todas essas liberdades civis são fundamentais e precisam ser garantidas pelo Estado durante a interação dos indivíduos.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Para desenhar a estrutura do contrato da equidade, Rawls recuperou basicamente a filosofia kantiana e juntou o que foi separado pelo contratualismo moderno. Ou seja, conciliou a Moral com o Direito repetindo um procedimento típico dos neocontratualistas em geral (por exemplo, James Buchanan). Indo nessa direção, Rawls notou que a filosofia de Kant focalizou a decisão racional do ser moral considerando que o homem é um ser livre e igual no âmbito da moralidade. Agindo com “autonomia”, portanto, o indivíduo observaria princípios que no nível mais alto de abstração garantiriam a dignidade da pessoa humana, ou então nas palavras originais de Kant, da humanidade. No Direito, por outro lado, segundo Kant, o conceito fundamental a ser discutido é a “heteronomia”. Nesse caso, a pessoa agiria não por força da espontaneidade, mas sim pela obrigatoriedade externa das instituições públicas estatais.

Semelhante ao que acontece no império da moralidade, o modelo proposto por John Rawls considera que “os princípios sobre os quais o homem age não são adotados por causa de sua posição social ou dons naturais, ou em vista da particular espécie de sociedade na qual vive ou as coisas específicas às quais deseja” (ibid., p. 179). Além disso, John Rawls salientou que os imperativos categóricos kantianos são princípios de justiça, pois cada um deles é um princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude de sua natureza como um ente racional, livre e igual na sociedade.

A “posição original” definida por John Rawls é uma interpretação sintetizadora da autonomia com a heteronomia kantiana. A justiça como equidade é uma justiça humana, assim definiu o autor. Pressupõe nesse sentido que uma determinada pessoa vai reconhecer a presença do outro no mundo, com respeito e tolerância. Entretanto, os princípios adotados pensando no “eu” do outro são todos eles públicos dentro de uma determinada comunidade ética. Concretamente, a presença moral do “eu” acontece dentro da Lei ou do Estado Democrático de Direito. Por isso mesmo, é importante relembrar que a comunidade moral não está fora da ordem pública, muito menos é uma conveniência puramente individualista ou arbitrária. Em outras palavras, os princípios de justiça aplicam-se à estrutura básica da sociedade e regulam a maneira como as instituições deverão ser combinadas num determinado esquema jurídico válido. Nesse contexto, o sistema contratual tem de ser esboçado de forma que a resultante distribuição seja “justa”, mesmo que as opiniões dos contratantes se alterem no futuro.


2 Críticas negativas ao modelo de John Rawls

Do ponto de vista filosófico, o ilustre professor Cícero Araujo (2000) observou que a teoria de John Rawls traz uma nova agenda de questões para a tradição do contratualismo como um todo.  Para se ter uma ideia transparente por onde passa a contribuição de John Rawls, Araujo (op. cit.) destacou, por exemplo, que:

·  Rawls enfatizou a distinção entre legitimidade e justiça. Segundo ele, nem todos os atos legítimos de governo são atos justos; portanto, questionar a justiça das decisões não implica, necessariamente, questionar sua legitimidade.

· A partir de certo limiar, as decisões injustas contaminam a legitimidade dos atos de governo. Isto é, a partir deste limiar, a democracia e a justiça, que são, abstratamente falando, conceitos distintos, passam a estabelecer uma relação de feedback; passam a determinar-se mutuamente. Essa é a região em que as questões políticas reencontram-se com as questões éticas ou morais.

·Os procedimentos políticos não são julgados apenas pela sua correção formal, mas tanto pelos valores morais que os embebem quanto por seus resultados. A ideia do consentimento voluntário continua, certamente, a ser um elemento importante. Porém, mais importante do que a sanção da vontade é o tema da fundamentação de sua moralidade.

·  No novo contratualismo liberal as questões éticas ou morais são altamente complexas e problemáticas. Há uma profunda desconfiança do pressuposto de que as ideias morais podem ser intuídas diretamente. Daí que o contrato, o “artifício de representação”, tenha de ser deslocado do nível da constituição dos governos para o nível da elaboração das proposições morais. Elas já não são mais “axiomáticas”, mas têm de ser submetidas a exame crítico, comparadas, balanceadas e continuamente revisadas. Essa tomada de consciência da complexidade e do caráter movediço das questões morais está muito bem expressa na ideia do “equilíbrio reflexivo” de Rawls.

·Numa teoria normativa que trabalha com critérios ideais, todo processo decisório real é um procedimento imperfeito. Não há como garantir com certeza que seus resultados serão justos, ainda que houvesse total acordo a respeito das características gerais de uma decisão justa. É só enquanto um processo de argumentação racional que a justiça é um “procedimento puro”. Ou seja, se o artifício de representação com o qual se organiza o argumento é corretamente construído, então o que sai do  - no caso, os princípios de justiça - também será correto.

· O teste de validação dos princípios de justiça não é se mais ou menos pessoas votam nesses princípios, mas sim os critérios que nos fazem distinguir um bom e um mau argumento. Enfim, os critérios usuais do debate racional. É bastante compreensível, portanto, que o novo liberalismo não se satisfaça com o consentimento voluntário que sanciona um governo legítimo.

· Por isso, não só os atos dos governos eleitos, mas dos próprios cidadãos-eleitores ao consenti-los, passam agora a estarem fortemente vinculados, de uma forma que jamais estiveram no liberalismo clássico, aos seus conteúdos substantivos. Eis também por que Rawls vai lembrar, em seu debate com Habermas, que em todo procedimento político vale o lema “garbage in, garbage out”: se no processo decisório democrático algo ruim entra no início, inevitavelmente algo ruim também sairá dele, como resultado.

· O modo como os procedimentos políticos serão julgados, com base nesse método, vai variar de autor para autor. De qualquer forma, Estados democráticos podem agora ser considerados mais ou menos justos, pouco ou excessivamente igualitários; dependendo, portanto, do modo como as questões morais de fundo são articuladas e justificadas.

Do ponto de vista metodológico de acordo com outro analista, Silveira (2007), a interpretação da teoria da justiça como equidade responde às principais críticas levantadas pela interpretação comunitarista, possibilitando pensar aspectos concordantes entre os liberais e os comunitaristas visando a uma concepção de justiça que possa integrar o universalismo com o particularismo. De acordo esse autor, não há na teoria da justiça como equidade uma concepção abstrata de pessoa em função da utilização de uma concepção política de indivíduo que, por um lado, é considerado livre, igual, e racional; e, por outro lado, é considerado membro de uma sociedade da qual está inserido. Em razão disso, Silveira considerou que “não é defensável a crítica de uma concepção individualista e atomizada de justiça política em Rawls, em que não existiria uma teoria da sociedade, existindo apenas uma atomização do social”. Silveira ressaltou ainda que não é apropriado apontar um “subjetivismo ético liberal” na teoria de John Rawls, em que teríamos um Estado neutro que garantiria somente a liberdade de expressão, em função de os princípios de justiça serem utilizados como parte de uma doutrina da economia política, na qual se destaca a necessidade de efetivação da justiça com a finalidade de combater as desigualdades sociais, econômicas e políticas (ibid.). Para esse ilustre analista, a teoria de Rawls “não dista consideravelmente de uma ética comunitarista, em razão de não ser verificada uma neutralidade do Estado em relação à esfera pública, em que se identifica uma inserção de substancialidade no modelo procedimental e deontológico, no qual justo e bem são evidenciados como complementares”. Observando essas últimas considerações, concluímos, oportunamente, que a teoria de John Rawls desenvolve um sistema epistemológico intermediário ou sintético entre o individualismo e o coletivismo. Nas palavras do próprio analista Silveira, essa fronteira ou área de convergência pode ser encarada da seguinte maneira:

Os cidadãos estão envolvidos na cooperação social, escolhendo o pertencimento a uma comunidade moral e isso representa compreender as pessoas como livres e iguais do ponto de vista normativo, isto é, com duas faculdades morais: faculdade de ter um senso de justiça, que é a capacidade de compreender a aplicar os princípios de justiça que determinam os termos equitativos da cooperação e agir a partir deles e a faculdade de ter uma concepção de bem, que é a capacidade de ter, revisar e buscar alcançar uma concepção de bem de modo racional.                

Do ponto de vista teórico, Almeida (2006) destacou, por sua vez, que na teoria da justiça de John Rawls existem motivações para os indivíduos de carne e osso, além de apresentar proposições puramente de natureza moral. A referida união entre liberdade individual e igualdade social faz-se presente, segundo esse autor, nos dois princípios de justiça de Rawls que foram escritos da seguinte forma:

·  Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais. Nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido.

·  As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade.

Na concepção do filósofo John Rawls, esses dois princípios seriam aceitos numa posição original de igualdade em que ninguém conheceria sua situação familiar, financeira e mesmo pessoal, pois ignoraria também qualidades e talentos. A posição original, conforme interpretou Almeida (op. cit.), seria o status quo ideal para essa decisão, pois o “véu de ignorância” garantiria que homens racionais decidissem em situação politicamente equitativa que todos estariam em situação semelhante; e ninguém poderia, portanto, estipular princípios para favorecer sua condição particular. Desse modo, uma vez garantidas as liberdades individuais e, portanto, toleradas as diferentes concepções de vida, nesse contrato buscar-se-ia o máximo de igualdade possível por meio de arranjos institucionais.

Se simularmos juridicamente uma “posição original”, em que temos o conhecimento das circunstâncias sociais, seguramente perceberíamos, de acordo com Almeida, que nossas deliberações seriam influenciadas por nossas inclinações pessoais, mas isso, de acordo com o que escreveu John Rawls, não “afeta a afirmação de que, na posição original, as pessoas racionais assim caracterizadas tomariam certa decisão” (ALMEIDA, ibid.). Segundo a explicação de John Rawls, o homem seria em parte uma criatura egoísta, em parte altruísta (pois ele fala neste caso em amor à humanidade), mas nunca o homem deixaria de ser uma criatura racional. É uma concepção otimista, considerou o ilustre analista Almeida, pois além de considerar o altruísmo, Rawls pressupôs uma excessiva racionalidade dos homens e uma capacidade de mover-se segundo princípios que os próprios participantes formularam na posição original. Segundo Almeida (op. cit.), vale relembrar nesse aspecto que o princípio de diferença resulta, na posição original, de um acordo entre pessoas egoístas.

Na sociedade, o desenvolvimento prático do “véu da ignorância” decorre não da compaixão que os mais privilegiados têm sobre os desafortunados, mas deriva de uma disposição racional de viver conforme princípios hábeis, inclusive a serviço do altruísmo. Os princípios de justiça de John Rawls são cuidadosamente construídos e coincidem com os sentimentos virtuosos de benevolência, muito embora tenham derivado do egoísmo e ignorância predominantes na posição original. Quanto ao papel motivador desses princípios em relação a pessoas de carne e osso numa sociedade bem ordenada, é certo que a menor desigualdade social e uma situação mínima razoável mudam substancialmente as disposições racionais das pessoas. Porém, a natureza humana ainda permanece a mesma, contraditoriamente egoísta e benevolente. Só não sabemos com predomínio de qual dessas características. De qualquer forma, Almeida considerou em sua crítica que os princípios de justiça de Rawls são cuidadosamente construídos e coincidem com os sentimentos virtuosos de benevolência, muito embora tenham derivado do egoísmo e da ignorância predominantes na posição original. A racionalidade dessa teoria não esconde um sentimento moral particular de John Rawls e, portanto, defende uma determinada forma de vida mais tolerante e altruísta (ibid.).

De acordo com Borges (2009), por outro lado, o objetivo principal da teoria de John Rawls é exatamente reeditar a teoria contratualista que deveria então fazer frente aos reclamos da justiça distributiva, especificamente contra o Utilitarismo. O que Rawls procurou fazer foi algo inovador, conciliando a concepção individualista de ser humano, “cujo postulado é o de que o indivíduo precede a sociedade e possui identidade independente de qualquer vínculo comunitário, possuindo uma essência desenraizada [...]”; com a concepção de sociedade “que visa a um bem comum, a maior liberdade e a maior igualdade possíveis aos indivíduos”.

Rawls pretendeu fundar uma teoria que prescinde da formulação de um bem comum substancial, uma teoria teleológica, digamos assim, pondo-se à margem do utilitarismo e do jusnaturalismo clássico. De acordo com o analista Borges (op.cit.):

Em que pese a reconhecível coerência interna da teoria de Rawls, um de seus fundamentos põe por terra sua pretensão de validade. Assim é que a antropologia de rawlsiana [não assumida pelo autor, mas existente no interior de sua teoria] é incompatível com a tentativa de igualdade distributiva interna à teoria. Ao conceber o indivíduo isolado da comunidade e, a priori, indiferente a qualquer ideia de bem comum e contexto, Rawls não tem como fundamentar uma coesão ou integração de um grupo social qualquer, ou mesmo da sociedade como um todo.

Prosseguindo em sua análise, Borges (op. cit.) considerou que “se o indivíduo autointeressado precede a sociedade, não há como ser estabelecido um vínculo social capaz de assegurar uma distribuição equitativa de bens”. Para ele, a concepção normativista de sujeito, distinguindo o "eu" de seus fins, não é capaz de engendrar uma sociedade de sujeitos reais. A terceira parte da teoria de Rawls, por exemplo, a "teoria quase ideal", é, na verdade, segundo Borges (op. cit.) a parte mais ideal e fantasiosa do autor, pois pretendeu, pela concepção atomista de sujeito, que na sociedade real os indivíduos depois de tomarem consciência de sua situação real mantivessem idealmente os princípios de justiça acordados sob o “véu da ignorância”. Nessa direção, Borges avaliou criticamente que:

Resta patente que um "sujeito radicalmente desencarnado", que não compartilha com os outros uma forma de vida, não tem porque perseguir outro fim que não seu autointeresse. O atomismo só pode conduzi-nos ao relativismo de valores e este, por sua vez, é incompatível com a observância de princípios de justiça previamente estabelecidos. Tais princípios sufocariam a liberdade que Rawls pretende manter na medida em que implicam na adesão a valores compartilhados, valores universais (liberdade, auto-interesse, propriedade privada). Rawls sofre, assim, duas críticas certeiras. A primeira, dos comunitaristas como Charles Taylor [...], Michael Sandel [...] e Alasdair MacIntyre [...], que apontam a impossibilidade do atomismo jusnaturalista em garantir um vínculo social efetivo, vez que prescinde da noção de bem comum e, assim, não possui um efetivo critério de igualdade para pôr em prática. A segunda, ilustrada pelo "Liberalismo liberal" de Ronald Dworkin, que aponta a incompatibilidade do atomismo com o contratualismo jusnaturalista. Dworkin afirma que os indivíduos reais, já que autointeressados, não têm motivos para submeter sua vontade a um acordo hipotético, mas sim somente a um acordo atual, através de um construtivismo de princípios que se opõe à ontologia que Rawls parece parcialmente preservar. Para ser coerente com o postulado da liberdade, não se pode concebê-la com base num acordo hipotético, mas sim com base na construção atual de princípios, ou seja, não há sentido no fato de um sujeito "autointeressado" (a não ser que tenha uma concepção de bem comum compartilhada, o que não é o caso), respeitar princípios que o desfavoreçam tão-somente pelo motivo de que estes foram acordados numa situação hipotética. Indivíduos coerentes em seu autointeresse buscariam rediscutir esses princípios [...].

O desdobramento do atomismo em Rawls é uma concepção de sociedade que procura prescindir de uma noção substancial do bem comum. Nesse ponto, cabem duas perguntas imediatas, segundo Borges (op. cit.):

· Pode realmente a sociedade prescindir do bem comum?

· A justiça como imparcialidade pode garantir um critério justo de distribuição de bens negando qualquer doutrina moral abrangente?

Mais uma vez, segundo Borges (op. cit.), o fantasma do atomismo atormentou John Rawls e o levou à “inconsistência”, pois onde não existe bem comum não poderá “haver igualdade pela própria falta de critério de igualdade”. Por isso, o primeiro princípio da justiça, o da liberdade individual, tem prevalência sobre o segundo, o da igualdade de oportunidades, porque de fato o que a teoria consegue assegurar, sem que com isso caia em contradições, é a liberdade do indivíduo contra a sociedade, inserindo-se, assim, na tradição liberal individualista. De resto, este parece ser o objetivo de toda e qualquer teoria que pertença à tradição liberal: “garantir que o indivíduo não sofra a interferência do Estado, seu maior inimigo”. A antropologia rawlsiana não seria capaz, portanto, de assegurar a coerência interna dos conceitos da justiça como equidade.

Ao contrário do que Rawls imaginou, a "justiça como equidade" colocou a igualdade a serviço da liberdade individual, e não possui nenhum critério substancial de distribuição de bens; consequentemente, desse modo, não cumpre a sua proposta de construir uma sociedade bem ordenada, até porque a concepção do que seja uma "sociedade bem ordenada”, segundo escreveu a crítica do autor Borges, “não pode prescindir de uma teleologia”.

Consequentemente, o máximo que a imparcialidade da teoria da justiça desse autor conseguiu sugerir foi uma arena com regras que assegurariam a liberdade individual de sujeitos autointeressados, que não compartilham uma noção de bem comum; mas tudo isso, no final, estaria longe demais de uma "sociedade bem ordenada" capaz de fornecer finalmente um critério seguro e abrangente de "equidade".

Sobre o autor
Heraldo Elias Montarroyos

Professor da Faculdade de Direito da UNIFESSPA MARABÁ, PARÁ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. Observatório jurídico John Rawls: localizando o ponto de convergência do Direito com a Política, a Moral e a Economia na Lei de Arbitragem brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3202, 7 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21444. Acesso em: 23 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!