A partir da afirmação do caráter laico do Estado, no século XVIII, resultado da separação entre Estado e Igreja, surgiu no cenário social a premissa de que moral e direito não se entrecruzam, ou seja, são círculos concêntricos que não se misturam. O ápice desta idéia está bem representado na obra do maior jurista do século XX, Hans Kelsen.
Para este grandioso jurista de origem austríaca, autor do clássico, “Teoria Pura do Direito”, o direito pertence ao mundo do dever-ser, assim também como as normas morais pertencem ao mundo do dever-ser, todavia, o pensar jurídico não envolve necessariamente o ser do que acontece no mundo, pois o dever-ser jurídico não deriva necessariamente do ser.
O direito cria suas realidades. É lapidar esta passagem kelseniana: “A teoria pura do direito é uma teoria que ‘quer única e exclusivamente conhecer seu objeto. Procura responder a esta questão: O que é e como é o direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o direito, ou como deve ele ser feito? É ciência jurídica e não política do direito” (“O problema da justiça”, Hans Kelsen, Martins Fontes: São Paulo, 1996, p. XIII/XIV).
Noutro dizer, como deve ser o direito é uma questão de justiça, de moral, o que para Kelsen escapa ao âmbito de compreensão de sua ‘teoria pura do direito’. Vê-se aqui uma nítida separação entre o direito a moral. No entanto, é importante notar que já em 1930 havia autores que não aceitavam este postulado da separação entre moral e direito. Georges Ripert, professor da Faculdade de Direito e da Escola de Ciências Políticas de Paris, citado por Jessé Torres Pereira Júnior, assim assentava; “Não existe, na realidade, entre a regra moral e a regra jurídica, nenhuma diferença de domínio, de natureza e de fim; não pode mesmo haver, porque o direito deve realizar a justiça, e a idéia do justo é uma idéia moral. Mas há uma diferença de caráter. A regra moral torna-se regra jurídica graças a uma injunção mais enérgica e a uma sanção exterior necessária para o fim a atingir” (Apud, “A regra moral no controle judicial”, Revista Justiça & Cidadania, nº 138, fev/2012, p. 49/50).
Aristóteles, em sua “Retórica” sinaliza uma preeminência entre a lei comum (aquela conforme a natureza) e a lei particular (lei que cada povo dá a si mesmo), demonstrando que há uma moral interna que é superior a lei particular criada pelo homem. Já aqui podemos também entender que o justo deriva da lei moral e não do direito.
Celso Lafer faz citação de Aristóteles que merece reprodução: “Aristóteles, nesta passagem cita a Antígona da peça de Sófocles, quando esta afirma que é justo, ainda que seja proibido, enterrar seu irmão Polinices, por ser isto justo por natureza. De fato, em resposta à acusação de Creonte, de que estava ela descumprindo a lei particular, Antígona evoca as imutáveis e não escritas leis do Céu, que não nasceram hoje nem ontem, que não morrem e que ninguém sabe de onde provieram”. (“A reconstrução dos direitos humanos”, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 35)
Novamente aqui, o justo deriva de uma lei imutável, de uma lei moral não escrita, ao contrário do direito (lei particular) em que se baseava Creonte para proibir o enterro de Polinices. É nesta mesma linha que se posiciona o Catecismo da Igreja Católica ao pontificar em seu parágrafo número, “1713 – O homem é obrigado a seguir a lei moral que o chama a “fazer o bem e evitar o mal” (GS 16). Esta lei ressoa em sua consciência”. (Prof. Felipe Aquino – org - “O Catecismo da Igreja responde de A a Z” 6ª ed. 2003. São Paulo: Cléofas, p. 209).
Nossa Constituição Federal em seu art. 37, caput, também prestigia expressamente a “moralidade administrativa” como um dos princípios jurídicos informadores do agir público através de seus servidores.
Enfim, como lembra o já citado Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Jessé Torres Pereira Júnior, “Diante das expectativas que as Constituições contemporâneas despertam nas sociedades e dos valores por estas reconhecidos, os juízes e tribunais devem estar qualificados para aplicar o direito segundo regras de moralidade, seja nas convenções entre particulares ou nas relações públicas” (op. cit. p. 50).
Resumindo, a idéia do justo é uma idéia moral (Georges Ripert) e “a Justiça é o Direito iluminado pela Moral” (Clóvis Bevilacqua).