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Direito e sistema

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Agenda 01/10/2001 às 00:00

4. Direito como Sistema: o Direito no quadro das Ciências da Modenidade e o Normativismo.

Sem dúvida alguma, o teórico que cristalizou as aspirações epistemológicas da modernidade, sendo responsável talvez pela tentativa mais atilada de fundação de uma verdadeira Ciência do Direito foi Kelsen. Nele se dá a "emergência e a consolidação de uma ciência jurídica dogmática e formalista"(35), sendo construídas as bases de uma verdadeira teoria jurídica do estado, funcionando como o ápice da racionalização da burocracia burguesa.

Na construção de uma Teoria Pura do Direito incorporam-se os elementos fundamentais dos paradigmas epistemológicos da modernidade. A verdade e a segurança são elevados a valores fundamentais, pois, apesar de tentar se constituir como uma teoria "pura", a escola vienense constitui um método que se baseia em pressupostos gnoseológicos típicos das ciências positivas, como a verificabilidade de pressupostos e a conseqüência inexorável dos mecanismos jurídicos.

Kelsen, afirma que o direito seria o objeto da ciência jurídica(36), e que se configura senão como um conjunto de normas jurídicas ordenadas sistematicamente. E aí entra a idéia central de sistema em sua teoria, que realiza uma verdadeira vigilância epistemológica, capaz de dar um caráter metodologicamente previsível e certo para o direito, que se procedimentaliza, cristalizando-se como um sistema fechado de normas jurídicas.

Distingue-se ele entre sistemas estáticos e sistemas dinâmicos. Os primeiros seriam os sistemas nos quais as normas formariam um todo, sistemático, deduzido logicamente, uma norma da outra, materialmente (conteudisticamente). Os sistemas dinâmicos, por sua vez, apesar de serem constituídos dedutivamente, norma a norma, seriam subsumidos não da materialidade de determinado conteúdo normativo, mas da doação de autoridade que fundamentaria a validade das normas subseqüentes. Segundo Kelsen, os sistemas estáticos seriam característicos de ordens normativas tais quais a moral e os usos sociais, enquanto o direito seria, necessariamente, um sistema dinâmico(37).

Kelsen, desenvolvendo a idéia kantiana de intransponibilidade entre ser e dever-ser, verifica que só se pode falar em fundamentação formal por via de um dever-ser. E isso é o mesmo que dizer que o fundamento de validade das normas de um sistema jurídico não pode ser o conteúdo de outra norma superior, mas somente a doação de autoridade, a delegação do poder de emitir um enunciado normativo. Assim, dinamicamente, um pai que ordenasse ao filho que fosse a escola e fosse questionado o porquê dessa ordem, deveria responder que ele deveria ir porque devia obedecer a seu pai e, estaticamente, no mesmo caso, o pai deveria, quando questionado quanto ao porquê da tal ordem, responder ao filho que deveria ir para aprender(38).

Essa fundamentação sucessiva de uma norma pela outra, num sistema que exclui dessa relação qualquer caráter material, fazendo-a assentar-se, somente, no dever-ser, leva-nos, necessariamente, ao questionamento do fundamento de validade de todo o sistema. Pois se compreendermos o sistema jurídico como uma pirâmide constituída por normas fundantes e fundadas, numa hierarquia restrita, teremos que perguntar qual a norma que fundará todo o ordenamento, dando validade às primeiras normas do sistema, no caso, as normas constitucionais. A resposta a essa pergunta, porém, é que essa norma não existe, tendo que ser pressuposta, funcionando, concretamente, como a ordem imperativa de obedecer ao ordenamento a que dá fundamento, em outras palavras: a norma fundamental.

Embora dotado da necessária pluralidade de normas, o ordenamento, não pode dispensar seu caráter unitário, dentro dos quadros da Teoria Pura, pois que não poderíamos falar de um ordenamento jurídico se esse não fosse unitário(39). E tal unidade do ordenamento é produto da existência da norma fundamental, que se encontra como resultado último da pesquisa de fundamento de quaisquer normas do sistema.

O fundamento dado pela norma fundamental serve, entrementes, para que se siga dois dados indispensáveis à querida cientifização do direito e à constituição de uma metódica própria e segura (atinente aos ideais da modernidade): a consistência (integridade(40)) e a coerência. Elementos que retratam o monismo estatal caracterítico de uma teoria do direito eminentemente moderna e a pretensão de verdade, típica dos paradigmas sobre os quais essa teoria se assenta.

Essas duas idéias têm estreita ligação. Pois que enquanto a segunda deixa fora do ordenamento toda contradição pela qual duas normas radicalmente paradoxais se enfrentam no interior do sistema, a primeira trata dos casos em que nem a norma que permite nem a norma que obriga estão contidas no ordenamento

Kelsen tenta a formulação de um sistema absolutamente transcendental, apriorístico, composto por cadeias lógico dedutivas "puras", numa tentativa de impermeabilizar o fenômeno jurídico positivo e o que ele chama de ciência do direito de qualquer conteúdo político ou sociológico: uma verdadeira ciência, com método e objeto próprios.

O direito seria como um sistema quase nomológico(41) em sua formalidade lógico-dedutiva, e seu fundamento de validade, a norma fundamental, seria esvaziada de elementos materiais. Esse fundamento de validade, para os normativistas, não poderia ser, de maneira alguma, dado empírico, baseado em algum tipo de efetividade sociológica. Como já dissemos a Grundnorm kelseniana funciona apenas como pressuposto lógico-hipotético, sendo mesmo uma norma de fundamento não real, mas apenas pressuposto idealista-lógico, no sentido kantiano, para a cadeia normativa fundada.

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Essa tentativa porém é dos pontos mais controversos dentro do sistema kelseniano.O esvaziamento axiológico, visto como um bem pelo autor, que a entende como uma garantia da justiça, de um ponto de vista procedimentalista é entendida, por muitos autores identificados como pós-modernos, como uma mitificação da mitificação(42), tornando a ciência do direito ainda mais abstrata e longe da realidade, o que a torna menos explicativa, menos cosmo-referente. Nesse sentido o direito estatal, seria na realidade a instrumentalização do estado (e do estado burguês) como um conjunto fechado de conceitos e elementos (normas jurídicas) em auto-referência, manuseadas por um suposto método puro/próprio dos seus operadores.

A frustração de elementos legitimatórios, porém como a efetivação de certos direitos fundamentais, deixa flagrante que a tentativa de inutilizar os fundamentos de legitimidade do direito são falhos, pois que termina-se por integrar uma metodologia jurídica do irreal, ou de certa ideologia, que devido a certas contradições pode ser origem de mais perda de legitimidade e fonte de crise.

A metodologia dogmática contemporânea, hoje, é refém desse senso comum(43) e de um paradigma liberal-individualista do direito. Esse paradigma e esse método, que deveriam ser fundamento de segurança jurídica, porém, parece cada vez mais viciar a aplicação do direito, deixando-o incapaz de perceber fenômenos novos, alguns deles inclusive, constantes já de nosso texto constitucional (alguns direitos sociais, sobretudo) e dar-lhes efetividade(44).

O ideal cientificista de método e verdade, característico da modernidade fundou a idéia de sistema no direito e a metodologia que se assenta nesses elementos. O direito e os homens do direito, incorporaram esse horizonte interpretativo, e passaram a compreender o direito dentro dos moldes de uma ciência dogmática na qual é possível o conhecimento de verdades validamente indicadas. Gnoseologicamente, pressupõe-se nessa metodologia jurídica a possibilidade de um conhecimento puro, verdadeiro, verificável, uma ruptura com o senso comum capaz de dar caráter científico infalível à atividade jurídica.

Se nos finais do século XX, esses ideais de verdade, e os próprios paradigmas da modernidade (seus pilares, como denomina Boaventura de Souza Santos) parecem começar a dar sinais de ruína e incapacidade de respostas, é prudente pensar que o direito também se vê obrigado a rever suas condições e possibilidades. E aí pode surgir algo que ainda não é bem claro na jurisprudência: um direito pós-moderno.


5. Conclusão

O direito moderno parece ter tido uma íntima relação com a idéia de sistema. Em verdade, essa idéia se mostrou essencial a sua implementação e transformação em uma atividade pretensamente científica.

Toda a metodologia positivista, de forma ou outra, parece ter de alguma forma rendido homenagem ao conceito de sistema e sua representatividade no imaginário jurídico e epistemológico em geral.

O crescimento do estado e a sua pretensão de produção da totalidade de normas jurídicas fez ainda mais ser absorvida a sistemática para compreensão do objeto da ciência jurídica, e no século XX vimos a cristalização dessa tendência no normativismo e no novo constitucionalismo, quando torna-se fundamental para a metodologia jurídica e para o funcionamento da burocracia dos estados.

Hoje, a idéia de sistema ainda faz parte de forma punjante do imaginário jurídico e, apesar de se mostrar uma crise desafiadora para o estado e direito que ele instrumentaliza, não parece ainda, ao menos na atividade e concepção dos juristas mostrar-se realmente ameaçado.


Notas

1. SOUZA SANTOS, Boaventura. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez, 1999, pp.76-80.

2. FERRAZ JR., Tércio Sampaio: O Conceito de Sistema no Direito: uma investigação histórica a partir da obra jusfilosófica de Emil Lask. São Paulo: Revista dos Tribunais, Universidade de São Paulo, 1976, p.9

3. Autores como Nicolai Hartmann e Theodor Viehweg chegam a diferenciar duas formas características de pensamento: o sistemático e o aporético, uma pela qual se investiga através de sistemas pré-constituídos e outra pela qual se pensa através de problemas, aporias. Nesse sentido, ver ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 75-79. Interessante, muito resumidamente, é BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 446 e 447.

4. Idem, ibidem.

5. Idem, ibidem.

6. Ver, nesse sentido, o que diz NEVES, Marcelo. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 2.

7. Cf. WARAT, Luis Alberto. Falácias do Direito in: Introdução Geral ao Direito I. Interpretação da Lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, p.131 e p.135.

8. Não queremos dizer que o significado contextual é num sentido pragmático enquanto o significado de base é num sentido semântico, longe disso queremos dizer apenas que o primeiro é mais imunizado às variações provenientes das posições dos utentes no discurso, enquanto o segundo tem grande força conotativa, sendo bem mais permeável às interferências da pragmática.

9. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo:Mestre Jou, 1980, verbete SISTEMA, p. 875.

10. Para definições de base filosóficas- da palavra sistema é importante Cf. CANARIS, Claus- Wilheim. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, 2a ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pp. 9-13.

11. REALE, Miguel: O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1992, p.150. passim

12. Aristóteles chamava esse método, enquanto caminho para a verdade ou arte de pensar, de Analítica, como argutamente orienta CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, p.192.

13. FERRAZ JR., Tércio Sampaio: Op. cit., p. 10.

14. Idem, Ibidem.

15. Idem , p.11.

16. Idem, Ibidem.

17. DEL VECCHIO,Giorgio. Filosofia Del Derecho, Tomo III. Cidade do México: UTEHA, p. 106

18. PADOVANI, Op. cit., p. 307 s.

19. FERRAZ JR., Tércio Sampaio.Conceito de Sistema no Direito: uma investigação histórica a partir da obra jusfilosófica de Emil Lask. São Paulo: Revista dos Tribunais, Universidade de São Paulo, 1976, p.12

20. Idem, Ibidem.

21. Sobre esse direito retórico e a forma de pensar retórica em detrimento de uma forma de pensar sistemática pode-se ver ADEODATO, João Maurício. O Silogismo Retórico (Entimema) na Argumentação Judicial. Anuário dos Cursos de Pós Graduação em Direito, n.º 9, Recife, 1998; MAIA, Alexandre da. Ontologia Jurídica: O problema de sua fixação teórica (com relação ao garantismo jurídico). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, pp. 19-24; e, sobretudo, VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência.Trad. Tércio Sampaio Ferraz. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, pp. 19-24 e pp. 33 -44, onde Viehweg analisa argutamente a distinção já traçada por Vico no século no século XVIII.

22. Sobre a epistemologia da modernidade ver a interessante análise de SOUZA SANTOS, Boaventura. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989, pp. 17-30.

23. Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 1988, p.

24. Cf. FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Conceito de Sistema no Direito: uma investigação histórica a partir da obra jusfilosófica de Emil Lask. São Paulo: Revista dos Tribunais e Universidade de São Paulo, 1976, p.13.

25. Sobre os problemas d legitimação do sistema tradicionalista e sobre a crise sistêmica desse princípio organizacional da sociedade, ver HABERMAS, Jürgen. Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994, pp.32-33

26. Quando falamos Revolução, referimo-nos ao fenômeno que varreu a Europa anglo-saxônica no século XVII e a Europa continental nos séculos XVIII e XIX, que antes de ser uma revolução na precisão do termo, significou o processo pelo qual a burguesia imprimiu, nas super-estruturas das sociedades ocidentais, os anseios que os acontecimentos históricos infra-estruturais vinham constituindo desde o fim da Idade Média.

27. Nesse sentido, ver ADEODATO, João Maurício. O Problema da Legitimidade: no rastro do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Saraiva, 1989, pp 53 –64.

28. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 1988, p. 77.

29. Cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Conceito de Sistema no Direito: uma investigação histórica a partir da obra jusfilosófica de Emil Lask. São Paulo: Revista dos Tribunais e Universidade de São Paulo, 1976p. 24.

30. Cf. Idem, p.25

31. Ver nesse sentido LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkien, 2000, pp. 9-19.

32. Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 1988, p. 73.

33. Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa Calouste Gulbenkien, 2000, p. 25.

34. Idem, p. 74.

35. SOUZA SANTOS, Boaventura. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez, 1999, p. 86.

36. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 79-119.

37. Idem, p. 217 segs.

38. Exemplo de Bobbio em BOBBIO, Norberto. Teoria General Del Derecho. Bogotá: TEMIS,1987, p. 178.

39. BOBBIO, Norberto. Teoria General Del Derecho. Bogotá: TEMIS, 1987, p. 161.

40. Termo usado por Bobbio em BOBBIO, Norberto. Op. cit. p.208.

41. Para uma compreensão da diferença entre sistemas nomológicos e sistemas nomoempíricos Cf. NEVES, Marcelo. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. São Paulo: Saraiva, 1987,pp. 1-8.

42. Mitifica-se, através da norma fundamental gnoseologicamente erigida, as estruturas já míticas da ordem e da unidade do ordenamento, da lei e do estado como expressões da realização da racionalidade do cosmos, numa concepção quase panlogística. Para uma breve visão sobre esse fenômeno da mitificação dos processos da dogmática jurídica, Cf. WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II. Epistemologia Jurídica da Modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, pp.149-251.

43. A idéia de senso comum teórico é de WARAT, Luís Alberto. Introdução Geral ao Direito II. Epistemologia Jurídica da Modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, pp.57-100.

44. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, pp. 31-45.


Bibliografia

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WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II. Epistemologia Jurídica da Modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994

Sobre o autor
Pablo Holmes Chaves

mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), bolsista do Deutscher Akademischer Austauchdienst (DAAD)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Pablo Holmes. Direito e sistema. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2169. Acesso em: 20 nov. 2024.

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