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Reprodução assistida post mortem e seus aspectos sucessórios

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Agenda 13/05/2012 às 21:43

3. INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM

O Código Civil de 2002, em seu artigo 1597, incisos III e IV faz referência a técnica de reprodução assistida homóloga. Através do inciso III, verifica-se a possibilidade de fecundação ainda que falecido o marido, enquanto no inciso IV há a possibilidade de embriões excedentes, que outrora foram utilizados em uma inseminação artificial homóloga, não serem descartados, sendo mantidos em processo de criopreservação. Isto possibilita que estes embriões sejam utilizados após a morte do doador, havendo assim, a fecundação da mulher. É a chamada inseminação artificial post mortem. Cumpre a análise do art. 1597 e suas implicações jurídicas.

Washington de Barros Monteiro (2007, p. 307) assevera que:

A fecundação ou inseminação homóloga é realizada com sêmen originário do marido. Neste caso, o óvulo e o sêmen pertencem à mulher e ao homem, respectivamente, pressupondo – se, in casu, o consentimento de ambos. A fecundação ou inseminação artificial post mortem é realizada com embrião ou sêmen conservado, após a morte do doador, por meio de técnicas especiais.

No referido artigo, no que concerne a atribuição da paternidade, a solução é relativamente simples, visto que, será pai o doador do sêmen (marido) ainda que falecido, por conta da sua identificação genética com o embrião, assim como por ter declarado seu consentimento á época da colheita. Com o fito de delimitar e regular o uso da técnica da inseminação artificial homóloga, no caso post mortem, estabelece o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1352/98:

No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré – embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá – los.

Por sua vez, outra ressalva de suma importância, foi feita por meio do Enunciado 106 do Conselho da Justiça Federal, visando balizar a interpretação do inciso III do art. 1.597, com o seguinte teor[9]

ENUNCIADO 106 – Para que seja presumida a paternidade do marido falecido, é obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize eu material genético após a morte.

Portanto, além da imprescindível autorização escrita do marido ou companheiro falecido, a mulher deverá estar na condição de viúva para que possa ser inseminada artificialmente, gerando um filho do de cujus. Tem razão de ser, determinada exigência, a partir do momento que afasta, enquanto mantida a condição de viúva, a presunção da paternidade do segundo marido. Código Civil, art. 1.598 (2002, p.436):

Art. 1.598. Salvo prova em contrário, se, antes de decorrido o prazo previsto no inciso II do art. 1.523, a mulher contrair novas núpcias e lhe nascer algum filho, este se presume do primeiro marido, se nascido dentro dos trezentos dias a contar da data do falecimento deste e, do segundo, se o nascimento ocorrer após esse período e já decorrido o prazo a que se refere o inciso I do art. 1597.

Assim, segundo Mônica Aguiar (2009, p. 117):

Apesar de restar na legislação a atribuição da paternidade do inseminado ao de cujus, saber se a vontade de procriar deve ser protegida para além da morte, é  tema que divide os doutrinadores em duas correntes básicas. De um lado, os que defendem essa proteção, ao argumento de ser convergente do direito da criança à existência. De outro, os que sustentam a impossibilidade dessa técnica, como forma de assegurar o direito do filho a uma estrutura familiar formada por ambos os pais.

Para os que sustentam a impossibilidade da inseminação post mortem, os cônjuges ou conviventes formam uma única parte no contrato de conservação e implante de embriões, muito embora, existam duas vontades convergentes para a realização de um único fim. As declarações de vontade devem ser expressas, e cada uma somente tem relevância jurídica quando unidas, formando uma única manifestação de vontade. Assim, para esta corrente, a morte funciona como causa revogadora da permissão dada pelo doador, para que ocorra a inseminação. Segundo João Vaz Rodrigues (2001, p. 25), “a morte opera, ipso facto, como revogação desse consentimento, pois, quando da fecundação, ele deve ser reiterado”. Portanto, prudente, para esta corrente, seria a supressão do inciso III do art. 1.597 do CC. Além disso, caso já tenha havido a fecundação, a idéia de que a morte opera como revogação do consentimento resulta no não reconhecimento da filiação, restando o concebido apenas filho do cônjuge sobrevivente.

A justificativa para determinado posicionamento, é a fuga a bilateralidade que caracteriza o projeto parental, e a conseqüente orfandade resultante da determinada técnica. Ressalta João Álvaro Dias (1996, p.40):

[...] os prejuízos – de ordem inclusive psicológica – para a criança, de ser concebida quando já é órfã de um dos pais, situação que não pode ser justificada com as mesmas razões lançadas para as hipóteses em que, por vicissitudes impossíveis de serem afastadas pela vontade, a criança nasce sem um dos genitores.

Doutrina ainda, sobre a impossibilidade da utilização da inseminação artificial post mortem, Eduardo de Oliveira Leite (1995, p. 154-155) “a inseminação post mortem não se justifica porque não há mais o casal, e poderia acarretar perturbações psicológicas graves em relação à criança e à mãe, concluindo quanto ao desaconselhamento de tal prática”.

Embasando tal ponto de vista, o Enunciado nº 127 do Conselho Federal de Justiça propõe uma alteração no inciso III, do artigo 1.597, do CC, com a supressão da expressão “mesmo que falecido o marido”, para constar apenas havidos por fecundação artificial homóloga. A justificativa para determinada alteração recai nos princípios da paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana, visto que, segundo entendimento do Conselho é inaceitável o nascimento de uma criança já sem pai.

Se mostra insuficiente tal posicionamento, posto que a ocorrência da família monoparental é prevista constitucionalmente em seu artigo 226, § 4º. Além do que, deve – se consagrar o Princípio Constitucional do Planejamento Familiar (Artigo 226, § 7º), que é livre e de autonomia do casal, não podendo o legislador ferir tal ditame constitucional, tolhendo tal direito. [10] O direito à reprodução é reconhecido como direito fundamental, embora não seja absoluto, porém, dentro da perspectiva do planejamento familiar conforme ressalta Guilherme Calmon (2003, p.22) “a liberdade de planejamento familiar é conseqüência do direito à liberdade prevista no artigo 5º, caput, e inciso II, da Carta Magna”. É, portanto, inadmissível que a decisão de ter um filho tenha sido manifestada inicialmente e, devido à ocorrência de determinada situação imprevista, como, p. ex., uma morte inesperada, possa, determinado projeto parental, não ser concretizado após o óbito do cônjuge ou companheiro. Apesar de o planejamento familiar iniciar-se em vida, pelos partícipes, não há dúvidas que seus efeitos podem ser produzidos após a morte.

Conforme reportado anteriormente, sublinhe-se que se há a possibilidade de adoção póstuma no ordenamento jurídico, quando o adotante vier a falecer no curso do processo de adoção, não há razão de ser para que se proíba a inseminação artificial homóloga post mortem. É ainda, forçoso assinalar que o nascimento de uma criança sem pai, nos processos de inseminação artificial, gerará os mesmos problemas psicológicos, se estes porventura vierem a existir, que nos casos em que um dos pais vem a falecer antes do nascimento da criança, por ocorrência de determinados fatos imprevistos. [11]

3.1. ASPECTOS BIOÉTICOS DECORRENTES DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM

De um modo geral as ciências, sobretudo a medicina, interferem de alguma forma na vida das pessoas. Em decorrência dessa interferência, os preceitos da ética tornaram-se imprescindíveis para uma regulamentação e delimitação das práticas empregadas neste contexto, impondo assim, o surgimento da Bioética.

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Segundo a Encyclopedia of Bioethics, em 1995: “a bioética é o estudo sistemático das dimensões morais das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto multidisciplinar”. Segundo o Novo Dicionário Aurélio, a bioética seria o estudo dos problemas éticos suscitados pelas pesquisas biológicas e por suas aplicações por pesquisadores, médicos entre outros. Vale ressaltar os quatro princípios que norteiam os caminhos percorridos pela Bioética, sendo critérios gerais que balizam os preceitos éticos e valorativos referentes às ações humanas na área biomédica.

1.                  Princípio da não – maleficência: exige que as pesquisas biomédicas e comportamentais não determinem danos aos seres humanos, intencionalmente.

2.                  Princípio da justiça ou da isonomia: impõe que riscos e benefícios sejam exatamente iguais para todos os submetidos às pesquisas científicas, mormente na área médica.

3.                  Princípio da beneficência: este princípio significa fazer o bem (bonnum facere). Baseado nele, todas as pesquisas e avanços tecnológicos em todas as áreas biomédicas, em prol do ser humano, deverão ser utilizadas em benefício do homem, nunca contra ele. Prevê maximizar os benefícios, minimizando ao máximo os prejuízos.

4.                  Princípio da autonomia: este princípio requer que a pessoa submetida a tratamentos ou pesquisas e que faça uso de avanços tecnológicos tenha a liberdade de optar, segundo seus próprios valores ou convicções religiosas.

É a denominada autonomia da vontade. Em virtude da ocorrência desse princípio surgiu a prática hospitalar, que é exigida juridicamente, qual seja, o consentimento livre, esclarecido e informado (por escrito), sem o qual o profissional de saúde não fica autorizado a utilizar qualquer procedimento no paciente. Além disso, cabe ao profissional o dever de explicitar ao paciente a real possibilidade de sucesso da técnica a ser aplicada.

É nesta seara que surge o biodireito, como forma de regular e dirimir difíceis e polêmicas questões ético – jurídicas surgidas a partir do rápido avanço tecnológico. A interferência das técnicas biomédicas na vida dos homens é cada vez mais crescente, e por outro lado, a falta de regulamentação jurídica sobre estas, acaba gerando certa insegurança nas relações sociais. Por isso, o direito deve intervir como um instrumento de harmonização entre os interesses da sociedade e os avanços científicos, promovendo, portanto, a segurança jurídica e a tão almejada paz social. Coadunando a idéia sobre a importância do biodireito, aduz Rita Bonelli (2009, pp. 244-245):

É nesse cenário que atua a bioética e o biodireito, balizando as condutas humanas à luz da ética e de princípios fundamentais, harmonizando o progresso científico com a valorização e preservação da vida e contribuindo para a construção de um novo tipo de responsabilidade jurídica

É certo que a velocidade dos avanços científicos em todas as áreas das ciências, sobretudo no campo da reprodução genética, contrasta com a dificuldade do Direito em acompanhar tal processo. E é justamente neste contexto que devem ser calcados tais avanços, em princípios que não deverão ser violados.

Conforme Maria Helena Diniz (2000 p.58-59):

O grande nó relacionado com a questão da manipulação da vida humana não está na utilização em si de novas tecnologias ainda não assimiladas moralmente pela sociedade, mas no seu controle. E esse controle deve ocorre em patamar diferente ao dos planos científicos e tecnológicos: o controle é ético. É prudente lembrar que a ética sobrevive sem a ciência e a técnica; sua existência não depende delas. A ciência e a tecnologia, no entanto, não podem prescindir da ética, sob pena de, unilateralmente, se transformarem em armas desastrosas para o futuro da humanidade, nas mãos de ditadores ou de minorias poderosas mal intencionadas.

Entre os inúmeros avanços da ciência, há de se destacar a reprodução assistida, ao passo que desta decorrem inúmeras implicações, sejam jurídicas ou éticas, impondo a Bioética uma preocupação relevante sobre o tema. Observa-se que os princípios supracitados, são amplamente utilizados, na busca de uma correta utilização dessas técnicas, como se pode inferir da utilização do princípio da autonomia, constante no requisito do consentimento informado, como explicitado na determinação do Conselho Federal de Medicina em sua Resolução 1.358/92 ao afirmar a obrigatoriedade do consentimento explícito dos pacientes inférteis e doadores numa eventual reprodução medicamente assistida. Resta claro, que ninguém poderá ser compelido a se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida, sob pena de ferir não só um princípio corolário da Bioética, como uma ordem legal.  

Doutrina Eduardo de Oliveira Leite (1995, p. 142) “o consentimento livre e inequívoco, sem ambigüidades, é algo extremamente necessário, tendo em vista o princípio da inviolabilidade do corpo”. Tal consentimento será realizado através de um documento escrito, o qual deverá ser assinado antes de iniciado o tratamento, sendo assim também no caso da inseminação artificial post mortem em que o cônjuge, doador do sêmen a ser utilizado, deverá declarar expressamente sua concordância com uma futura utilização, neste caso, mesmo após a sua morte. Assim, infere-se que a falta do consentimento importa em sanção, visto a ocorrência da violação da liberdade individual.

Quanto ao princípio da justiça, salienta-se que no emprego de qualquer das técnicas de reprodução assistida, devem ser preservados os interesses das pessoas envolvidas, sobretudo da criança a ser gerada. É neste ponto que surgem tantos conflitos no caso da utilização da técnica de reprodução após a morte do genitor, visto que se questiona a condição da criança a ser gerada no que toca aos aspectos psicológicos deste novo ser, e de sua condição frente à questão da filiação e dos efeitos sucessórios decorrentes.

3.2. ASPECTOS SUCESSÓRIOS FRENTE À INSEMINAÇÃO POST MORTEM

Com a superveniência da morte, o acervo hereditário do de cujus passa a necessitar de titularidade, momento em que impera no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da saisine, que indica a necessidade da imediata transmissão das obrigações e direitos do falecido, impedindo assim que as relações jurídicas restem sem titularidade, ainda que momentânea. Desta forma, abre-se a sucessão, convocando – se os herdeiros legítimos e testamentários, de acordo com a ordem prevista em lei, para que sucedam o de cujus desde que tenham legitimação sucessória. É neste panorama que se questiona a posição do inseminado artificialmente procriado depois de morte do autor da herança: Seriam eles detentores de direitos sucessórios?

De plano, restaria certo que seriam detentores de tal direito, visto se tratar de um direito fundamental previsto constitucionalmente e inerente a qualquer ser humano. Porém, a segunda vista, cumpre analisar a situação dos demais herdeiros diante da insegurança jurídica desencadeada, já que permaneceriam na incerteza, enquanto houvesse embriões do de cujus, de eventuais alterações na partilha dos bens, contrariando, desta forma, o princípio de segurança que rege as relações jurídicas.

Ressalvadas posições em contrário, mormente se mostre aceita a presunção de paternidade no Código Civil, a questão sucessória se mostra conflituosa visto que há diferentes posicionamentos acerca da possibilidade ou não de atribuir efeitos sucessórios aos inseminados post mortem.

Preceitua o art. 1.798 do Código Civil a legitimidade para suceder dos já nascidos ou concebidos no momento da abertura da sucessão. O referido artigo, em tese, excluiria da participação na sucessão, o nascido através de inseminação artificial após a morte do autor da herança, posto que nesse caso, não teria havido prévia concepção daquele. Isto porque, resta expressamente assinalado, dentro do Direito das Sucessões que, o herdeiro deve existir, de fato, ao tempo da morte do de cujus, ou, pelo menos, deve estar concebido ao tempo da abertura da sucessão para que possa ser reconhecido como nascituro e, conseqüentemente herdeiro.

O Direito de Família prevê em seu art. 1.597 o reconhecimento da filiação nos casos de inseminação artificial homóloga, ainda que falecido o marido. Porém, no campo do Direito das Sucessões a miríade se torna mais tormentosa, visto que a omissão legislativa é latente no que tange aos aspectos sucessórios. Nesta seara de discussões, a doutrina pátria subdivide-se basicamente em duas correntes. Para Giselda Hironaka (2008, p. 289):

Tanto podem ser herdeiros legítimos, testamentários, ou mesmo legatários os indivíduos que já tivessem nascido quando do momento do exato falecimento do de cujus, bem assim todos os que já estivessem concebidos no mesmo momento.

Acrescenta ainda, na mesma obra, que:

Na condição de pessoas concebidas estão duas classes médico – legais: o feto, fase que vai da concepção até o início do desalojar do ser do aparelho reprodutor feminino, e o feto nascente, período que se situa entre o início da expulsão fetal e o momento em que se estabelece a vida autônoma.

Portanto, parte da doutrina entende que o embrião jamais poderia herdar, visto que no momento da abertura da sucessão, não era ao menos concebido, não possuindo, portanto capacidade sucessória, corroborando assim, a idéia proposta a partir da leitura do referido artigo 1.798 CC. Doutrina Eduardo de Oliveira Leite (2003, p.110):

[...] Quanto à criança concebida por inseminação post mortem, ou seja, criança gerada depois do falecimento dos progenitores biológicos, pela utilização do sêmen congelado, é situação anômala, quer no plano do estabelecimento da filiação, quer no do direito das sucessões [...]

Cumpre observar a posição de Maria Helena Diniz (2000, p.91), lecionando:

É preciso evitar tais práticas, pois a criança, embora possa ser filha genética, por exemplo, do marido de sua mãe, será, juridicamente, extramatrimonial, pois não terá pai, nem poderá ser registrada como filha matrimonial em nome do doador, já que nasceu depois de 300 dias da cessação do vínculo conjugal em razão da morte de um dos consortes. E, além disso, o morto não mais exerce direitos, nem deveres a cumprir. Não há como aplicar a presunção de paternidade, uma vez que o matrimônio se extingue com a morte, nem conferir direitos sucessórios ao que nascer por técnica conceptiva post mortem, pois não estava gerado por ocasião da morte de seu pai genético [...]. Por isso, necessário será que se proíba legalmente a reprodução assistida post mortem, e, se, porventura, houver permissão legal, dever – se – a prescrever quais serão os direitos do filho, inclusive sucessórios.

O posicionamento da Igreja Católica, quanto ao tema é de absoluta negativa, seja qual for a situação. Mesmo que haja consentimento prévio e expresso do marido para que seu material genético seja utilizado numa futura inseminação artificial, a Igreja não admite qualquer possibilidade de permissão, baseando sua posição conforme o ensinamento de que a comunidade da vida é automaticamente dissolvida com a ocorrência da morte de um dos cônjuges.

Além disso, outro argumento sustentado pelos que não admitem efeitos sucessórios, diz respeito à permissividade contida no Código Civil quando da utilização da inseminação artificial mesmo após a morte do marido gerando assim, uma evidente insegurança jurídica aos herdeiros legitimados à época da abertura da sucessão, haja vista que a qualquer momento poderá surgir um novo herdeiro advindo da utilização de embriões criopreservados. Preleciona Guilherme Calmon (2003, p. 1000) que:

 [...] no estágio atual da matéria no direito brasileiro, não há como se admitir, mesmo com vontade expressa deixada em vida pelo falecido, o acesso da ex-esposa ou ex-companheira às técnicas de reprodução assistida homóloga, diante do princípio da igualdade em direito entre os filhos [...].

Tal ponto de vista não encontra guarida, visto que não se pode excluir das repercussões jurídicas no âmbito do direito de família e no direito das sucessões, aquele que foi concebido mediante a utilização da inseminação artificial ainda que falecido o genitor, sob o fundamento de que tal situação excluiria ou ao menos prejudicaria o direito de outros herdeiros já existentes no momento da abertura da sucessão. Tem-se como exemplo para ilustrar este posicionamento, a possibilidade de advir filho não – reconhecido de um falecido que tenha deixado como herdeiros somente cônjuge e ascendentes.

Nesse caso, com o surgimento de novo herdeiro pleiteando seu reconhecimento como filho, além de receber seu quinhão do referido patrimônio do de cujus, por meio da ação de investigação de paternidade e, conseqüente ação de petição de herança, julgada esta procedente, restariam os ascendentes excluídos da sucessão, enquanto o cônjuge, a depender do regime de bens poderia ou não concorrer com o descendente reconhecido por via judicial. Observa-se, portanto, que o surgimento de filho não reconhecido iria modificar de forma substancial o plano sucessório, concluindo a partir de tal constatação que a segurança presente no processo sucessório nem sempre é absoluta.

Isto posto, uma opção que encontra guarida em lei, para que esse filho concebido post mortem adquira parte da herança do de cujus, seria valer-se da ação de investigação de paternidade cumulada com a ação de petição de herança. Segundo o art. 1.824 do Novo Codex: “O herdeiro pode, em ação de petição de herança, demandar o reconhecimento de seu direito sucessório, para obter a restituição da herança, ou de parte dela, contra quem, na qualidade de herdeiro, ou mesmo sem título, a possua”. Nesse caso, por mais que a ação de investigação de paternidade seja imprescritível, a ação de petição de herança tem prazo prescricional de 10 anos, já que o Novo Código não lhe fixou outro prazo, aplicando-se assim o art. 205 do CC. Portanto, resta explicitado que havendo manifestação expressa do pai, e venha a ser concebida criança após a morte deste, esta só poderá pleitear direitos sucessórios no prazo de 10 anos, a contar da abertura da sucessão.[12]

Além desta possibilidade de incidência de efeitos sucessórios, o próprio Código Civil prevê a possibilidade, ao estabelecer em seu art. 1799, inciso I: “Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I- os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”. Neste caso, como o testador não pode indicar sua própria prole eventual por não estar vivo, obviamente, no momento da abertura da sucessão, uma opção seria realizar o testamento por via reflexa, indicando a prole eventual da doadora do óvulo conferindo assim, parte de sua herança por via testamentária ao concebido post mortem.[13].

O que se verifica no tocante a sucessão legítima, é que há certamente a possibilidade de reconhecimento de direitos sucessórios ao concebido post mortem, visto que, a regra contida no art. 1.798 reconhece legitimação sucessória apenas às “pessoas nascidas ou concebidas no momento da abertura da sucessão”. Ora, se o filho nascido, portanto, a partir de inseminação artificial após a morte do pai reputa-se concebido na constância do casamento, segundo regra contida no art. 1.597, III, assim, restará preenchido o requisito necessário para sua legitimação sucessória, equiparado assim, àquele que por processo natural de procriação apenas não tivesse nascido ainda no momento da abertura da sucessão. Como justificar, nesse caso, a exclusão de seus direitos sucessórios? Além disso, cabe a ressalva de que, deve – se ter em vista a regra constitucional contida no Art. 226, § 6º da Constituição Federal, a qual estabelece a absoluta igualdade de direitos entre os filhos. Assim, não se justifica a exclusão do plano sucessório dos filhos resultantes de inseminação artificial homóloga.

É necessária a interpretação do sistema jurídico, afim de que se possa compreender a dimensão jurídica do tema. Analisando o art. 226 da Constituição Federal, percebe-se que o legislador ao tratar da família, como base da sociedade que é, não fez qualquer referência ao tipo de família que o Estado dedica especial proteção. Declara expressamente a inclusão da família monoparental, juntamente com aquela formada pelo casamento ou pela união estável, como entidade familiar, o que, nessa condição não se justifica a intenção de afastar da tutela do Estado família formada a partir da realização de inseminação artificial post mortem. Assim, não se pode negar que uma pessoa sozinha tenha a possibilidade de efetivar um projeto parental que atenda em todos os requisitos o melhor interesse da criança, pois, o planejamento familiar é livre e fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, nos termos do art. 226, § 7º da Carta Magna. É o que se infere da Lei nº 9.263/96 em seu art. 1º, caput “O planejamento familiar é direito de todo cidadão”.[14]

Desta forma, num sistema jurídico que permite o pluralismo das entidades familiares, além de reconhecer a plena liberdade do planejamento familiar, não se pode admitir norma restritiva à inseminação artificial post mortem. Ao passo que, ao se reconhecer efeitos pessoais ao concepturo (relação de filiação), não se justifica o plurido de afastar os sucessórios decorrentes. Essa idéia corrobora um entendimento reminiscente do antigo Código Civil, que oferecia tratamento diferenciado aos filhos, conforme sua origem. Garantindo a lei o vínculo, não se justifica a privação do concebido post mortem de ter legitimação para suceder o de cujus.

3.3. DA NECESSIDADE DE DELIMITAÇÃO DO CONCEITO JURÍDICO DE CONCEPÇÃO

Diante das divergências doutrinárias acerca da atribuição de efeitos sucessórios aos concebidos artificialmente, surge a necessidade de se delimitar em que momento este novo ser adquire personalidade jurídica e, conseqüentemente proteção jurídica. É de se notar que o conceito jurídico de concepção vem sofrendo mutações ao longo do tempo, devido às inúmeras e constantes mudanças ocorridas no contexto social. A partir da ocorrência de avanços, sobretudo no campo das ciências, no que toca a procriação artificial, se torna necessário que o conceito jurídico de concepção se adapte a esta nova realidade, levando em consideração a questão da tutela jurídica dos embriões, e até mesmo do próprio material genético a ser utilizado numa das técnicas de reprodução assistida.

Para que se possa explicar a natureza jurídica do nascituro, a doutrina se divide em três correntes básicas: a teoria concepcionista, teoria da personalidade e a teoria natalista.

De acordo com a teoria concepcionista, o nascituro tem personalidade jurídica, desde a sua concepção, tendo a mesma natureza jurídica que a pessoa natural. Desta feita, o momento que marca o início da existência do nascituro é a nidação (quando o embrião se instala nas paredes do útero), ponto em que passa a ser protegido como pessoa, titular de direitos.

Para a teoria da personalidade condicional, a personalidade do nascituro é condicionada ao fato de que este nasça com vida. Deve haver o implemento desta condição para, para que o nascituro adquira personalidade. Portanto, a aquisição de certos direitos ocorreria somente sob a condição suspensiva, retroagindo ao momento da concepção, caso o não-nascido nasça com vida. Assim, apesar de ter assegurado os direitos da personalidade, só gozará dos demais direitos, como os patrimoniais a partir do momento em que nasça com vida, por ter adquirido sua capacidade plena.

A teoria natalista reflete a interpretação que se extrai do art. 2º do Código Civil. Para esta, só existe personalidade jurídica a partir do nascimento com vida. O ser não-nascido possui apenas expectativa de direito, não tendo personalidade jurídica. Se vier a nascer com vida, será titular de plenos direitos e obrigações, inclusive os patrimoniais. [15]

Entretanto, por mais que só se estabeleça a personalidade jurídica do nascituro a partir do nascimento com vida, o ordenamento jurídico reconheceu a necessidade de tutelá-lo, o que pode ser verificado quando lei lhe confere uma série de direitos no campo civil.

 Feitas estas considerações relativas à condição do nascituro como titular de direitos, faz-se necessária a análise das teorias que tentam explicar o momento em que se dá esta concepção. Cumpre a análise das teorias pró-vida e a teoria pró-escolha, afim de que se possa explicar o exato momento do início da vida, refletindo assim, na questão da manipulação de embriões e seus aspectos jurídicos.

Na teoria pró-vida, desde o momento em que há a fecundação de um óvulo por um espermatozóide, há o surgimento da vida, seja esta fecundação in vivo ou in vitro, posto que neste momento, passa a preencher todos os requisitos necessários para que seja considerado um indivíduo. Para esta teoria, ainda que o embrião não esteja localizado no ventre materno é um ser concebido e, portanto, titular de direito como qualquer outro nascituro.

Em contrapartida, para a teoria pró-escolha, ainda que não fecundados, o óvulo e o espermatozóide já são considerados seres vivos, mesmo que não sejam titulares de direitos, pois lhes falta tutela jurídica.

Se adotada a teoria pró-vida, o direito à tutela jurídica do nascituro que é concebido a partir de fertilização artificial estaria salvaguardado desde o momento em que ocorresse a fecundação. E por que não atribuir aos inseminados post mortem os mesmos direitos da personalidade? Já que estes são considerados como concebidos por força do art. 1.597, IV não há razão para que se tolham os seus direitos decorrentes da filiação, já que presumida pelo artigo supra.

Sobre a autora
Bruna Amarijo Coco

Advogada, graduada na Faculdade Ruy Barbosa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COCO, Bruna Amarijo. Reprodução assistida post mortem e seus aspectos sucessórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3238, 13 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21747. Acesso em: 23 dez. 2024.

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