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Fraude em medicamentos

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Agenda 19/05/2012 às 15:57

Análise dos aspectos jurídicos da fraude a medicamentos, bem como estudo do tratamento dado pelo ordenamento jurídico.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 A SISTEMATIZAÇÃO DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE NO ÂMBITO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. 1.1 O Direito à Saúde Enquanto Direito Fundamental. 1.2. Meios para a Concessão do Direito à Saúde. 1.3 O Direito à Saúde Enquanto Obrigação do Poder Público. 1.3.1 Estrutura administrativa da saúde pública. 1.3.2 Dependência dos cidadãos do Poder Público no acesso aos medicamentos. 1.4 A questão das patentes dos medicamentos. 1.5 Violações do direito à saúde. 2  A FRAUDE E A FALSIFICAÇÃO DE MEDICAMENTOS. 2.1 Os Medicamentos e Suas Espécies: Definições Fundamentais. 2.2 Fraude e Falsificação: Conceito e Espécies. 2.3 Brasil, Paraíso dos Falsificadores?. 3 TRATAMENTO JURÍDICO PENAL DAS FRAUDES EM MEDICAMENTOS. 3.1 Antecedentes Legislativos da Punição da Fraude em Medicamentos. Ano. Norma. Ementa. Aplica-se a. Situação. 3.2 Tutela Penal da Saúde Pública e Bem Jurídico Protegido. 3.3 Fraude em Medicamentos: Sujeitos do Delito, Tipicidade Objetiva e Subjetiva. 3.4 As Fraudes em Medicamento e a Indústria Farmacêutica. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 


INTRODUÇÃO

Com efeito, o Brasil é conhecido mundialmente como a nação que, ao mesmo tempo, exige de seus cidadãos tributos elevados, porém, do montante arrecadado, pouco ou nada devolve em utilidade pública. Daí decorre que a população brasileira sofre carência dos itens de bem-estar mais simples, como infra-estrutura e saneamento básico.

A questão da saúde, sob essa ótica, merece especial consideração, tendo em vista que, a maioria da população pertence às classes menos favorecidas economicamente, e que justamente por esse fato sua saúde depende muito das iniciativas protetivas do Estado, que atualmente abrange não só o fornecimento de uma rede de saúde pública (o conhecido SUS – Sistema Único de Saúde), mas também a edição de normas e regulamentos que em tese deveriam facilitar e proteger o Direito à Saúde dos cidadãos.

A pratica de crimes que impedem, na maior parte das vezes sub-repticiamente, que o cidadão exerça seu direito à saúde, é um fenômeno que vem aumentando gradativamente com o transcorrer dos anos, sendo um desses crimes, objeto do presente trabalho  denominado como fraude em medicamentos.

A típica vítima dessa modalidade de delito é levada a erro em sua boa-fé, na medida que “[...] pensando possuir este (produto) determinadas qualidades, produzir certos efeitos, ser genuíno ou corresponder às informações constantes do próprio produto ou anunciadas pelo vendedor” (ESQUIVEL, 2008, p. 9), vindo a ingerir substâncias que, nos casos mais inócuos, não produzem efeito algum, nos mais graves, produzem a morte de seu consumidor.

Os efeitos danosos dessa prática delituosa se fazem sentir com especial gravidade nas camadas menos favorecidas economicamente da população brasileira, quer por deficiência de formação (por dependerem do ensino público, cuja qualidade é notoriamente questionável em todo país) que resulta em incapacidade de discernir informações técnicas incorretas dolosamente prestadas, quer pela inadequação dos meios com que as autoridades podem dispor para combater os criminosos que exploram a atividade.

Sem a pretensão de esgotar o tema da “fraude em medicamento”, nem tampouco a questão social do Brasil, o presente trabalho pretende, a partir da normatização do Direito à Saúde, examinar os aspectos jurídicos do tema  ordenamento jurídico brasileiro, visando  demonstrar o  tratamento por ele recebido, com o objetivo de apontar sugestões de melhorias necessárias para trazer o combate aos delitos relativos ao tempo atual.

De acordo com essas considerações, o trabalho foi estruturado em três capítulos.

No primeiro capítulo apresenta-se a Sistematização do Direito à Vida e à Saúde no Âmbito da Constituição Federal e Legislação Infraconstitucional. Considera-se neste capitulo o direito à saúde enquanto direito fundamental, meios para a concessão do direito à saúde, o direito à saúde enquanto obrigação do Poder Público, estrutura administrativa, dependência dos cidadãos do Poder Público no acesso aos meios de saúde, a questão da patente dos medicamentos e violações do direito à saúde.

No segundo capítulo, apresenta-se a Fraude e a Falsificação de Medicamentos. Aborda-se sobre os medicamentos e suas espécies: definições fundamentais, Fraude e falsificação: conceito e espécies e o problema da falsificação de medicamentos no Brasil.

No terceiro capitulo, procura-se abordar sobre o Tratamento Jurídico Penal das Fraudes em Medicamentos. Considera-se neste estudo a tutela penal da saúde pública e bem jurídico protegido, antecedentes legislativos da punição da fraude em medicamentos, fraude em medicamentos, sujeitos do delito, tipicidade objetiva e subjetiva e as fraudes em medicamento e a indústria farmacêutica.

              O desenvolvimento do presente trabalho se dá através do método da abordagem dedutiva, onde várias legislações, pensamentos doutrinários serão analisados para se extrair a conclusão esperada, a técnica de pesquisa utilizada será a bibliográfica, legislativa, doutrinária, além de artigos da internet e revistas.


1 A SISTEMATIZAÇÃO DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE NO ÂMBITO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL

1.1 O Direito à Saúde Enquanto Direito Fundamental

A construção social dos direitos dos cidadãos é tema muito divulgado, estudado, mas pouco discutido. A problemática se consolida até mesmo pela terminologia, o que de fato pode ser considerado um direito social, e como este direito atingiu este patamar.

Segundo Muta  (2007), os direitos sociais surgiram de conflitos entre capital e trabalho, devido à distribuição desigual dos recursos e vantagens que orientou a produção econômica desde a Revolução Industrial dos países. Os abusos cometidos contra a massa operária neste período, os motivou a fomentar ideologias e movimentos comunistas, combinado com a crise econômica de 1929 construiu um ambiente social caótico pondo fim ao modelo político adotado.

Para Chiavenato (2001), o Estado do bem-estar social surgiu como resposta ao sistema industrial primitivo, o qual via nos homens apenas força produtiva sem distinguir as necessidades humanas dos mesmos. Foi consolidada a idéia do liberalismo econômico, durante a Revolução Industrial, a qual consistia na partição entre os poderes estatais e a vida econômica. Devido a isso, a mão-de-obra está sujeita às mesmas leis da economia, embora esta ideologia coloque os trabalhadores nas mãos dos patrões, donos dos meios de produção.

No início do século XIX, com o grande desenvolvimento industrial, surgiu um novo problema: o do proletariado industrial, agrícola, pastoril, que passou a reclamar seus direitos econômicos e sociais, o que pressupunha a limitação do poderio do patronato. A Revolução Industrial, desse mesmo período, introduziu a economia de escala, propiciando a formação de monopólio e oligopólios, cujo poder de determinação no mercado acabava por comprometer a sua livre condução pretendida pelo liberalismo. Não se pode esquecer que os Estados liberais e totalitários instalados em decorrência da nova ordem constitucional não tinham qualquer preparo para este tipo de atitude e posicionamento, até porque, além de limitados pelas Cartas Políticas, eram eles que sustentavam os privilégios de uma classe minoritária que circundava o poder e, em última instância, o sustentava em uma perfeita simbiose (MAURANO; NASCIMENTO, 2007, p.123).

De acordo com Muta (2007), o Estado do bem-estar social surgiu com o objetivo de contrabalançar a política econômica desleal, que degrada os indivíduos desfavorecidos, consistindo na necessidade de uma estrutura fiscalizadora e garantidora exercida pelo Poder Público da relação entre o capital e o trabalho, para que estes possam desenvolver-se econômica, social e politicamente. Assim, com a intervenção estatal nas políticas econômicas, tornou-se possível a proteção da classe hipossuficiente da sociedade.

O Brasil declara na constituição “como direitos sociais vinculados aos objetivos do estado social brasileiro o direito à educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção a maternidade, e à infância, e assistência aos desamparados”[1](MUTA, 2007, p. 177). O mesmo autor ressalta que, por ser uma sociedade democrática e amparada pelo princípio do bem-estar social, é de competência do Estado o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária, onde não haja distinção de origem, raça, cor, idade, bem como qualquer outra discriminação.

A Constituição Federal do Brasil de 1988, por intermédio de seu artigo 5º, caput, garantiu a todos os cidadãos brasileiros o direito à vida, nos seguintes termos:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

No tocante ao direito à vida, importante destacar que o mesmo é considerado um sobre-princípio, tendo em vista que, da forma com que veio a ser redigido o art. 5º da Carta Magna, o mesmo é colocado, ao lado de outros não menos importantes (direito à liberdade, igualdade, segurança etc.), como horizonte a ser seguindo, na interpretação do seu longo rol de incisos.

Neste sentido, vale destacar a lição do ilustre professor José Afonso da Silva:

Temos que distinguir entre princípios constitucionais fundamentais e princípios gerais do Direito Constitucional. Vimos já que os primeiros integram o Direito Constitucional Positivo, traduzindo-se em normas fundamentais, normas-síntese ou normas-matriz, que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte, normas que contém as decisões políticas fundamentais que o constituinte acolheu no documento constitucional (SILVA, 2007, p. 95).

Vale dizer dessa forma que o direito à saúde é um princípio norteador para a interpretação e aplicação de outros princípios, devendo ser observado pelos operadores do direito.

O mesmo autor citando Jorge Miranda ressalta que:

a função ordenadora dos princípios fundamentais, bem como sua ação imediata, enquanto diretamente aplicáveis ou diretamente capazes de conformarem as relações político-constitucionais, aditando, ainda, que a ação imediata dos princípios consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critério de interpretação e de integração, pois são eles que dão coerência geral ao sistema (MIRANDA apud SILVA, 2007, p. 95-96).

Muito embora a Constituição Federal não tenha feito incluir no caput do inciso 5º o Direito à Saúde, a análise do texto constitucional nos revela que o legislador deixou a questão para ser tratada em parte específica do texto, o que em nada diminui sua fundamentalidade, como os demais princípios já citados.

Na lição do ilustre professor Humberto Piragibe Magalhães, direito fundamental consiste no “[...] direito de que decorrem outros” (MAGALHÃES, 1987, p. 298).

Exemplificativamente falando, tal é como se dá na relação entre o direito à vida com o direito de legítima defesa, que se encontra prevista no artigo 23, II, do Código Penal[2].

Não por outra razão alguém que mata outrem para preservar a própria vida não comete crime: o mesmo tem assegurada a inviolabilidade do direito à vida, nos termos do supracitado dispositivo constitucional.

Em outras palavras, o direito à legítima defesa decorre do direito à vida.

Da mesma forma ocorre com o Direito à Saúde: decorrendo do direito à vida e gerando a partir dele inúmeros outros, não ficou sem a devida consideração por parte do legislador constitucional.

No Capítulo II da Constituição Federal de 1988, sob o título “Dos Direitos Sociais”, encontra-se o caput do artigo 6º, que dispõe: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Sedimentando a importância desse direito fundamental, tem-se o artigo 196 da Carta Magna, que estabelece que:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

A garantia à saúde, expressamente insculpida no dispositivo constitucional acima considerada, reflete transversalmente em inúmeras esferas de direito, ainda no texto constitucional.

O inciso XXII do artigo 7º, trata da saúde do trabalhador; o inciso II do artigo 23, das pessoas portadoras de deficiência; o § 4º, inciso III, do artigo 40, estabelece diferença previdenciária tomando por base eventual risco à saúde; a essa lista poderiam ainda ser somados o inciso VII do art. 208, que cuida entre outros temas, o da assistência à saúde aos educandos, e ainda outros, denotando assim à exaustão o caráter de fundamental do direito à vida.

O mesmo vale, indistintamente, para o direito à saúde.

Com efeito, da simples análise do artigo 196 da Constituição, retro-transcrito, evidencia-se que está previsto que do direito à saúde decorre o direito dos cidadãos exigi-lo do Estado, assim como o dever deste em provê-lo “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Desse excerto, temos que do direito à saúde decorre, para os cidadãos, o direito de exigir a redução do risco de doença e o acesso universal às ações e serviços destinados a promovê-la.

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No Título VIII, Capítulo II, Seção II, do texto constitucional, que compreende os artigos 196 a 200, encontram-se previstos vários direitos decorrentes do direito à saúde, dentre os quais destacamos o atendimento integral e a participação da comunidade (incisos II e III do art. 198), o direito de participação, na saúde, da iniciativa privada (art. 199) e as diretrizes de fiscalização e elaboração de produtos destinados à saúde (art. 200).

Ainda, em termos de legislação infraconstitucional, impossível não mencionar a Lei n8.080/1990 (Lei Orgânica Nacional da Saúde), que obedeceu às normas constitucionais e cristalizou o dever do Estado de prover as condições indispensáveis para que o indivíduo possa exercer o pleno direito à saúde.

A referida Lei, ainda, conserva um espírito de cooperação social, ao dispor que a responsabilidade do Estado não exclui a das pessoas, da família e das empresas.

Ainda, tal lei inovou ao estabelecer o Sistema Único de Saúde, o conhecido SUS, do qual se beneficiam a maioria dos brasileiros, como oportunamente observado neste trabalho.

Assim, o direito à saúde, no ordenamento jurídico constitucional, constitui, de maneira inconteste, em direito fundamental e dever do Estado brasileiro e de seus entes federativos, na forma ali preconizada.

1.2. Meios para a Concessão do Direito à Saúde

Conforme demonstrado acima, sendo o direito à saúde direito fundamental, dele decorrem outros, que favorecem à sociedade como um todo, consistindo nos meios através dos quais o cidadão faz valer suas prerrogativas específicas.

Neste sentido, importa destacar que a maior parte da população brasileira serve-se do que lhe oferece o Poder Público para garantir suas demandas na área da saúde.

Na Constituição Federal, em seu art. 198[3], encontram-se os princípios do Sistema Único de Saúde, que são a intersetorialidade, a descentralização político-administrativa, a hierarquização e a regionalização e por fim o princípio da transversalidade[4].

Na Constituição Federal, encontra-se, além dos princípios organizacionais do Sistema Único de Saúde (SUS) os princípios ético-políticos, que são melhores descritos pelas Leis nº 8.080/1990 e 8.142/1990, conhecidas por Leis Orgânicas da Saúde, sendo os princípios compreendidos em universalidade, integralidade da atenção, equidade e participação social.[5]

Conforme esclarecido anteriormente, a concretização dos princípios do Sistema Único de Saúde em realidade efetiva deu-se a partir da Lei nº 8.080/1990, que em seu art. 4º dispôs que:

O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).

Além das normas e princípios retro-referidos, o Sistema Único de Saúde operacionaliza-se através de Portarias do Ministério da Saúde, que definem normas operacionais, políticas e programas.

Como se percebe claramente, o direito à saúde do cidadão brasileiro, na esfera pública, manifesta-se por intermédio de um sistema próprio com normas e diretrizes especialmente criadas para garantir, ao mesmo tempo, que todos os cidadãos sejam devidamente atendidos nas suas demandas relativas à saúde, bem como consista num aparelho eficiente e auto-regulamentado.

Entretanto, muito embora tal sistema exista idealmente, é sabido que o mesmo apresenta falhas, relacionadas muitas vezes à má gestão dos recursos públicos, corrupção e falta de pessoal especializado, que acarretam carência de medicamentos, profissionais e instalações, estando, portanto, longe do ideal.

Assim, a consolidação do SUS, como um sistema de atenção e cuidados em saúde, não é suficiente para a efetivação do direito da população à saúde. São claras as evidências que apontam para os limites da atuação de um sistema de assistência. A conquista da saúde precisa estar articulada à ação sistemática e intersetorial do Estado sobre os determinantes sociais de saúde, ou seja, o conjunto dos fatores de ordem econômico-social e cultural que exercem influência direta ou indireta sobre as condições de saúde da população (BRASIL, 2007, p. 10).

Paralelamente ao Sistema único de Saúde, encontram-se os planos de saúde ou seguros saúde oferecidos pela iniciativa privada.

A fundamentação legal dos planos de saúde da esfera privada encontra fulcro nos artigos 199, § 1º, da Constituição Federal[6] e artigos 24 a 26 da Lei n. 8.080/1990[7].

A natureza dessa espécie de serviço, segundo a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, implica em que o Estado está transferindo à iniciativa privada a execução material de determinadas atividades-meio e não sua gestão operacional (2005, p. 57-58).

Isso significa, em outras palavras, que os planos de saúde são meros executores das atividades-meio que lhes são delegadas pelo Poder Público, logo, submetem-se eles à disciplina do serviço público, sendo que o Estado exerce influência direta no exercício das suas atividades, regulando-as e fiscalizando-as, de acordo com o interesse público.

Os serviços de saúde, portanto, reputam-se serviços públicos, enquanto prestados pelo Estado, sendo serviços públicos impróprios, quando executados por intermédio da iniciativa privada, visto que, no último caso, tais serviços sempre serão regulamentados e controlados pelo Estado (MEIRELLES, 2010).

Ainda, os planos de saúde privados estão sujeitos à fiscalização exercida através do Poder Judiciário, pois submetem-se aos ditames da Lei nº 8.078/1990, (Código de Defesa do Consumidor), configurando as empresas que os exploram fornecedores, de acordo com o disposto no art. 3º, § 2º, do referido diploma legal[8].

Outrossim, a influência dos planos de saúde privados na sociedade brasileira é facilmente perceptível, através de dados obtidos por órgãos públicos, como é o caso do Instituto Brasileiro de  Geografia e Estatística – IBGE.

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1998 e 2003 indicam que “[...] o sistema de saúde suplementar cobre cerca de 25% da população e essa participação tem se mantido praticamente estável nos últimos 08 anos” (ANDRADE; MAIA, 2006, p. 2).

 Assim, consoante se verifica, embora a parcela da população que tem atendimento à saúde propiciado pelos seguros-saúde não seja desprezível, esse grupo é bastante inferior ao dos cidadãos que demandam cuidados unicamente do Poder Público, não podendo ser ignorado o fato de que mesmo os primeiros dependem da atividade estatal, que regula a esfera privada a quem delegou as atividades ora consideradas.

O acesso da população aos meios de concessão dos serviços de saúde é de fundamental importância para que o direito à saúde seja exercido por todo e qualquer  indivíduo que venha necessitar dessa tutela constitucional. Fica claro dessa forma que o poder público tem o encargo de ofertar à população, que em sua grande maioria depende diretamente do serviço oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), para fazer valer  seu direito à saúde, incluindo o acesso aos medicamentos distribuídos pela rede pública, meios para que todos indistintamente possam ser atendidos em suas necessidades, visto que apenas um número tímido, porém, não insignificativo, como já evidenciado anteriormente, da população tem acesso ao seu direito à saúde mediante planos e seguros de saúde particulares.

1.3 O Direito à Saúde Enquanto Obrigação do Poder Público

O Direito à Saúde, enquanto direito fundamental dos cidadãos brasileiros, é, no ordenamento jurídico vigente, sem sombra de dúvida, obrigação do Poder Público.

Outro não é o entendimento que o texto do art. 196[9] da atual Carta Magna nos remete, pois no seu texto fica evidente que a saúde é um direito de todos, e um dever do Estado garantir a saúde da população indistintamente.

Referida norma legal é auto-aplicável, conforme nos ensina o professor Júlio César Ballerini Silva:

Do mesmo modo, também não se pode alegar que a norma prevista no art. 196 da Magna Carta não seja auto-aplicável, (sob pena, aliás, de se impor à grande maioria da população brasileira a pena de padecimento pela demora no cumprimento de cristalina garantia constitucional), até porque lida com o direito à saúde, e, por conseqüência, com o próprio direito à vida, principal sobre-princípio constitucional a ser observado, dentre tudo quanto já mencionado acima (2009, p. 85).

A importância da garantia constitucional dado ao direito à saúde presta-se a concretizá-lo efetivamente, como uma realidade palpável:

A positivação de direitos fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados “naturais” e “inalienáveis” do indivíduo. Não basta uma qualquer positivação. É necessário assinalar-lhes a dimensão de “Fundamental Rights” colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas constitucionais. Sem essa positivação jurídica, os direitos do homem são esperanças, aspirações, idéias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional (“Grundrechtsnormem”) (CANOTILHO apud SILVA, 2009, p. 56).

Assim sendo, quando o legislador constitucional elencou o direito à saúde enquanto garantia fundamental constitucional, criou uma realidade que se materializa numa obrigação do poder público.

Outra não é a conclusão que se infere de uma análise mais detida do já citado artigo 196 e seguintes da Carta Magna, até o artigo 199, que tratam das formas com que o Estado determinará seus atos para garantir aludido direito a todos os cidadãos.

De outra parte, a análise da evolução legislativa histórica do tema não deixa margem a qualquer dúvida quanto à obrigação do Poder Público em prover o direito à saúde aos cidadãos brasileiros.

Esse tratamento especial, sob a égide constitucional, “[...] não seria uma questão nova, já tendo sido abordado em mais de uma oportunidade, o mesmo podendo ser dito em relação ao seu acesso e à proteção do próprio direito à vida” (SILVA, 2009, p. 66).

A questão do Direito à Saúde, portanto, analisando-se o teor das Constituições Brasileiras, tem estado em foco há um bom tempo em nossa sociedade, especialmente no que tange à “[...] preocupação com políticas públicas de saúde” (SILVA, 2009, p. 66).

Tratamento diferente, entretanto, era dado ao tema pela Constituição de 1824, a Constituição do Império, para a qual o direito à vida ou à saúde não eram considerados direitos fundamentais do cidadão brasileiro (SILVA, 2009, p. 68).

A omissão constitucional permaneceu durante a vigência das constituições de 1934 e 1937, para ser superada apenas na constituição de 1946, que, em seu art. 141[10], caput, erigiu o direito à vida à categoria de direito fundamental.

Ainda, a mesma Carta previa a competência privativa da União, para legislar sobre normas de proteção à saúde (artigo 5º, inciso XV, alínea “b”).

Desse período, ainda, são a política sanitária nacional (Lei n. 2.312, de 9 de março de 1954), e o Código Nacional de Saúde (Decreto n. 49.974-A, de 21 de setembro de 1961).

A preocupação com o tema foi mantida nas constituições posteriores (1964 e a atual, de 1988), com a edição, paralela, de várias normas infraconstitucionais importantes.

Assim, denota-se claramente uma evolução no ordenamento jurídico, de tal sorte a aperfeiçoar a fundamentação legal da proteção do Direito à Vida e do decorrente Direito à Saúde, enquanto obrigação do Poder Público, como forma de garantir seu pleno exercício pelos cidadãos brasileiros.

Outra preocupação do legislador foi também a criação de uma estrutura administrativa abrangente, que abarca diferentes atividades relacionadas à saúde, para que a saúde pública no país fosse ofertada uniformemente em todo o território nacional, essa estrutura é a coluna vertebral do Sistema Único de Saúde (SUS), que será objeto de estudo do  capítulo seguinte.

1.3.1 Estrutura administrativa da saúde pública

Segundo o Conselho Nacional de Secretários da Saúde do Brasil, em seu trabalho “A Gestão Administrativa e Financeira no SUS”[11] (BRASIL, 2007, p. 152), a estrutura administrativa do Sistema Único de Saúde é bastante ampla e compreende a atividades referentes à gestão de materiais e de compras, financeira e o ciclo orçamentário, execução orçamentária e financeira, planejamento orçamentário e financeiro, contabilidade pública e gestão dos fundos de saúde, dentre outros.

Tendo em vista a complexidade da matéria, no presente trabalho, cuida-se apenas do aspecto operacional do sistema, que permitirá manter o foco no objeto estudado.

Assim, para a perfeita compreensão do presente tópico, importa esclarecer que o Sistema Único de Saúde (SUS), tem seu funcionamento regrado por portarias do Ministério da Saúde, além de outras normas aplicadas gerais, de ordem infraconstitucional, que refletem, direta ou indiretamente sobre esse sistema[12][13].

 O funcionamento do Sistema único de Saúde, portanto, está calcado em legislação constitucional e infra-constitucional, além de normas administrativas operacionais que estabelecem suas regras de funcionamento, estabelecendo os métodos da prestação dos serviços de saúde pública à população brasileira pela rede de estabelecimentos existente.

A direção do SUS compõe-se do órgão setorial do Poder Executivo e pelo respectivo Conselho de Saúde, nos termos das Leis ns. 8.080/1990 e 8.142/1990.

Ainda, à nível de gestores, atuam órgãos colegiados, sendo eles a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), que atua diretamente no Ministério da Saúde e é formada por gestores das três esferas do governo e a Comissão Intergestores Bipartite, no âmbito estadual, que deliberam sobre organização, direção e gestão da saúde (CONOF/CD[14], 2011).

O Sistema Único de Saúde (SUS) ainda se desdobra em Vigilância Epidemiológica, que trata da ocorrência de doenças, seu aumento e propagação, e ainda em Vigilância Sanitária, que controla a qualidade de remédios, exames, alimentos, higiene e adequação de instalações que atendem ao cidadão.

Pode-se acrescentar também como política de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) a farmácia popular, que para muitos, por não observar os princípios da universalidade e da equidade constitucionais, não pode fazer parte do piso da saúde, pois não atende uma parcela razoável da população que não possui condições de adquirir medicamentos, mesmo sedo estes comercializados a preços ínfimos, por serem subsidiados (CONOF/CD, 2011).

Atuando diretamente com a população, encontram-se os centros e postos de saúde e hospitais, incluindo os universitários, laboratórios, hemocentros, fundações e instituições de pesquisa.

O Estado ainda exerce poder de fiscalização na área da saúde, na modalidade “poder de polícia” (com as agências, no caso a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) e a ANA (Agência Nacional de Águas), criadas, respectivamente, pelas Leis ns. 9.872/1999, 9.961/2000 e 9.984/2000.

É evidente que o Sistema Único de Saúde (SUS), possui uma estrutura administrativa complexa e abrangente, que tem como objetivo alcançar a todos que necessitem dos recursos disponíveis no sistema, porém seu funcionamento está longe do ideal, fazendo com que milhares de brasileiros fiquem à margem do exercício de seu direito à saúde.

1.3.2 Dependência dos cidadãos do Poder Público no acesso aos medicamentos

O Brasil é um país marcado por profundas desigualdades sociais, onde a promoção da igualdade encontra-se longe de atingir um patamar ideal, apesar das iniciativas que têm sido cada vez mais adotadas pelas autoridades constituídas.

Conforme já demonstrado anteriormente (item 1.2, in fine), apenas menor parcela da população – cerca de vinte e cinco por cento – tem condições de contratar um plano de saúde na esfera privada, que, muitas vezes, não possui cobertura integral, excluindo moléstias e procedimentos mais complexos.

A maior parte da população, portanto, depende diretamente do Poder Público para ver garantido seu direito à saúde, sem o qual a Constituição se tornaria letra morta.

Em outras palavras, é por intermédio do SUS que a maior parcela da população cuida de seus problemas de saúde.

Tal assertiva pode ser demonstrada com base em números estatísticos, extraídos da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, do Ministério da Saúde, em 2007, no âmbito do SUS, a “[...] produção anual da saúde no país registra cerca de 170 milhões de consultas, 2 milhões de internações e 15 mil transplantes de órgãos, que mobilizam 260 mil agentes comunitários de saúde e 27 mil equipes de saúde” (BRASIL, 2007, p. 12).

Ainda, oportuno citar os seguintes dados, relevantes para o esclarecimento da questão:

[...] realização de 2,4 consultas, por ano, para cada brasileiro; 2,5 milhões de partos; 200 milhões de exames laboratoriais; 6 milhões de ultrassonografias; 85% de todos os procedimentos de alta complexidade do País, 72 mil cirurgias cardíacas, 420 mil internações psiquiátricas (em 2000), 90 mil atendimentos de politraumatizados no sistema de urgência médica; 7.234 transplantes de órgãos; e 165 mil cirurgias de catarata por ano; [...] mantença de 500 mil profissionais de saúde, 6.500 hospitais, 487 mil leitos, onde são realizadas mais de um milhão de internações por mês; [...] conta com 60 mil unidades básicas de saúde, que realizam 350 milhões de atendimentos por ano [...] (MARTINS, 2008, p. 80).

Segundo dados do Pacto da Saúde de 2006, o SUS possui mais de 63 mil unidades ambulatoriais e cerca de 6 mil unidades hospitalares, com mais de 440 mil leitos, tendo média anual de 12 milhões de internações hospitalares; 1 bilhão de procedimentos de atenção primária à saúde; 150 milhões de consultas médicas; 2 milhões de partos; 300 milhões de exames laboratoriais; 132 milhões de atendimentos de alta complexidade e 14 mil transplantes de órgãos (BRASIL, 2006).

Diante desses números, é inegável que a população brasileira depende, em sua maioria, de iniciativas do Poder Público para ter acesso aos meios de saúde, sem os quais sequer teria condições de realizar seu direito à vida.

Assim, é o Sistema Único de Saúde que arca com a ampla maioria das demandas dos brasileiros no tocante à saúde; daí sua proporcional dependência em relação ao Poder Público.

Frise-se que mesmo àqueles que dispõem de planos de saúde privados garante-se o acesso ao setor público, por força de lei, tendo em vista que estes, muitas vezes não têm abrangência suficiente, ou ainda em virtude da excelência de alguns centros de saúde públicos, reconhecida em âmbito nacional.

Além disso, destaque-se ainda, no tocante aos seguros saúde da iniciativa privada, que toda sua normatização e fiscalização está adstrita à Lei e ao Poder Público, pois, conforme esclarecido anteriormente, a prestação das atividades-meio que lhes cabem é permissão do Estado.

Cabe ainda ressaltar que o SUS distribui medicamentos através de dispensários, que são locais como farmácias, porém de caráter público, a toda a população, porém essa distribuição nem sempre é eficaz, pois pode o medicamento não fazer parte da lista dos medicamentos ofertados pelo SUS, essa lista é denominada RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais), que pode ser encontrada no site da ANVISA. Além dos dispensários, existe ainda as Farmácias Populares, sendo este um programa do governo federal para que a população tenha acesso a medicamentos para o tratamento de diabetes e hipertensão a preços reduzidos, esses medicamentos são adquiridos pelo Ministério da Saúde e são provenientes de laboratórios públicos e privados e disponibilizados nas farmácias populares.

No Estado de São Paulo existe um programa de distribuição de medicamentos chamado Dose Certa, onde os medicamentos são distribuídos nas UBS (Unidade Básica de Saúde), que são administradas por prefeituras municipais e nas farmácias Dose Certa, apesar de suprir as necessidades de parte da população, o programa também não atinge efetivamente um resultado ideal.

A estrutura de distribuição de medicamentos feita pelo poder público é objeto do tópico 1.5 e será tratada em maiores detalhes na oportunidade.

1.4 A questão das patentes dos medicamentos

Outra matéria importante a se considerar quando se trata do exercício do direito à saúde por parte dos brasileiros é o acesso aos medicamentos que são necessários aos diversos tratamentos médicos.

Como se sabe, os medicamentos, geralmente, são desenvolvidos por laboratórios privados, que muitas vezes configuram grandes corporações multinacionais, as quais, dada a capacidade econômica, são capazes de despender enormes somas com a pesquisa e produção, acarretando novas drogas que são usadas em prol da humanidade.

Sobre o tema, ensina Fábio Konder Comparato:

Não assim com os inventos industriais, cuja despersonalização é hoje quase completa, segundo a lógica própria do capitalismo de atribuir mais valor aos bens do que às pessoas. A invenção industrial é, hoje, na quase totalidade dos casos, o fruto de um trabalho longo e custoso de pesquisa e desenvolvimento, assumido por grandes empresas, e frequentemente sustentado com subsídios estatais (COMPARATO, 2011, s/n.).

Enquanto detentores das patentes por tais drogas, esses laboratórios possuem direito de exclusividade na sua produção, que, de acordo com a legislação, pode perdurar até vinte anos, de acordo com o artigo 40 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996[15].

Nesse período, buscam os laboratórios o ressarcimento do investimento feito no desenvolvimento e produção de novos medicamentos, bem assim obter lucro, tendo em vista que se trata de entes jurídicos com fins lucrativos.

De acordo com as palavras de Canotilho, Machado e Raposo, as indústrias:

[...] têm que arcar com as despesas de investigação e desenvolvimento de novos medicamentos e com o risco do insucesso inerente aos investimentos efectuados. As taxas de sucesso da investigação são baixas, verificando-se que apenas uma pequena porcentagem de compostos sujeitos a ensaios clínicos adquire viabilidade como medicamento, o que representa perdas significativas de tempo e recursos financeiros, sendo o investimento em investigação um encargo antecipado que os ganhos de mercado têm que compensar [...] (CANOTILHO; MACHADO; RAPOSO, 2008, p. 13-14).

Os autores ainda citam em sua obra, que de acordo com a informação obtida do Office of Technological Assessment (OTA), Biotechnology in a Global Economy[16]:

Apenas 1 em 10.000 dos compostos analisados se torna um medicamento de sucesso. Apenas 1 em 10 dos compostos utilizados em ensaios clínicos chega ao mercado. E apenas 1 em cada 30% dos medicamentos comercializados consegue recuperar os seus custos de investigação e desenvolvimento (CANOTILHO; MACHADO; RAPOSO, 2008 p. 13-14).

Muitas vezes, entretanto, isso significa um obstáculo à população no acesso ao medicamento que necessita, tendo em vista que seu preço se torna exorbitante às camadas menos favorecidas.

Num país de desigualdades sociais como o Brasil, o alto preço exigido pelos laboratórios por medicamentos que muitas vezes são necessários à sobrevivência em meio a determinadas doenças, acaba por acarretar o perecimento dos cidadãos que não tem capacidade econômica para adquiri-los.

Essa situação afronta em demasia a eqüidade social, criando uma categoria inferior de cidadãos, que se vêem à margem dos tratamentos médicos que necessitam, sem ter a quem recorrer, pois nem sempre o judiciário consegue atender a todas as demandas na área em questão.

Importa esclarecer que anteriormente a 1996, a proteção às patentes era quase inexistente e levava a conflitos internacionais, geralmente com os Estados Unidos da América (MARQUES, 2000).

Os EUA inclusive já impuseram ao Brasil sanções comerciais por não existirem leis de proteção à patente dos medicamentos.

“A associação dos fabricantes americanos de drogas farmacêuticas (Pharmaceutical Manufacturing Association – PMA) divulgou inúmeras matérias na mídia internacional chamando o Brasil de "país pirata"” (MARQUES, 2000, p. 4).

Todo esse panorama alterou-se com o advento da Lei n. 9.279 de 14 de maio de 1996, o novo código das patentes, que passaria a vigorar a partir de abril de 1997.

Essa legislação passou a incluir produtos e processos farmacêuticos, e, dentre eles, os medicamentos, adequando a legislação brasileira aos regramentos de propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Todavia, diante do interesse social evidente, o legislador pátrio incluiu, na Lei 9.279, de 14 de maio de 1996, dispositivo que previa o licenciamento compulsório de patentes, para exploração pelo Poder Público (artigo 71)[17].

A lei citada prevê o licenciamento compulsório apenas em casos de “emergência nacional” ou “interesse público”, e que a licença concedida nessas condições será “temporária” e “não exclusiva”, buscando ainda não prejudicar os direitos de seu titular.

Note-se que os requisitos para patentear um determinado produto “[...] devem ser buscados cumulativamente durante a análise do pedido de patente”, pois, do contrário, “[...]uma invenção que não cumpra qualquer um dos requisitos legais não deve ser considerada patenteável [...]” (AMARAL et al., 2010).

O § 1º do artigo 2º do Decreto n. 3.201, de 6 de outubro de 1999, que regulamentou o artigo 71 da Lei 9.279, de 14 de maio de 1996, estabeleceu que a expressão “emergência nacional” significa “[...] o iminente perigo público, ainda que apenas em parte do território nacional”.

Da mesma forma, referido Decreto conceituou “interesse público” como sendo “[...] os fatos relacionados, dentre outros, à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou sócio-econômico do País”.

Em linhas gerais, consoante a Lei 9.279, de 14 de maio de 1996 (artigos 73 e 74), o pedido de licenciamento compulsório deverá consubstanciar-se em proposta a ser oferecida ao titular da patente, que terá prazo para manifestar-se a respeito, podendo apresentar contestação, que resultará nas diligências para se apurar os fatos e chegar a uma decisão coerente.

Quanto à remuneração a ser paga ao detentor da patente, conforme preconiza a lei, seu valor será estipulado por comissão designada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), para a qual concorrerão os órgãos e entidades da administração pública direta ou indireta, federal, estadual ou municipal, com informações necessárias a subsidiar seu arbitramento.

Após isso, a decisão competirá ao INPI, em decisão passível de recurso.

A lei estabelece ainda o prazo de um ano para o licenciado explorar a patente, sob pena de cassação da mesma a pedido do titular da patente, bem assim que ao licenciado fica assegurado o direito de defender a patente bem como cedê-la, conjuntamente com parte do empreendimento que a explore.

O Decreto n. 3.201, de 6 de outubro de 1999 também estabeleceu a regra de competência para o ato do Poder Executivo Federal que declarar a emergência nacional ou o interesse público como sendo do Ministro de Estado responsável pela matéria em causa (artigo 3º).

Ainda foram previstas no mesmo texto legal as condições específicas para o licenciamento compulsório e hipóteses nas quais as mesmas ficam dispensadas de atendimento, em razão da situação concreta.

Exemplificativamente falando, com fundamento nesses preceitos legais, o Brasil procedeu ao licenciamento compulsório do Efavirenz, do laboratório Merck Sharp & Dohme, usado no tratamento da AIDS, ocorrido aos 4 de maio de 2007 (BRASIL, 2007[18]).

Paralelamente, houve um aumento no movimento internacional de luta por acesso a medicamentos, que envolve representantes de organismos internacionais, ONG’s e governos.

A necessidade de garantir o acesso a medicamentos vem sendo reiterada em diversos foros internacionais, entre os quais merece destaque a Declaração Ministerial acerca do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS) da Organização Mundial do Comércio (OMC) e Saúde Pública – conhecida como declaração de Doha, assinada em novembro de 2001, em Doha, Catar, na qual se reafirma o direito dos países de implementar o Acordo TRIPS da OMC, de modo a melhor atender aos interesses da saúde pública (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2001).

Em tal declaração, a OMC reconheceu as preocupações referentes ao impacto da propriedade intelectual no preço dos medicamentos, além de admitir que o Acordo TRIPS não impede, nem deve impedir que os países membros da OMC adotem medidas para proteger a saúde pública, reiterando ainda, que o referido Acordo pode e deve ser interpretado e aplicado de maneira que apóie os países membros a proteger a saúde pública e, em particular, promover o acesso aos medicamentos.

Evidente assim, o impacto mundial da questão das patentes dos medicamentos versus o direito do acesso à saúde dos indivíduos, e o crescente consenso da preponderância deste em relação àquela, como motor da adoção de medidas mais radicais.

De acordo com Carvalho, “o direito às patentes farmacêuticas, que é individual, encontra-se limitado pelos interesses sociais, ou seja, ocorre uma conjugação da esfera individual e social” (2007).

Desta feita, segundo o entendimento internacional mais recente, inclusive respaldado pela OMC, quando a patente de um medicamento consistir em impedimento que os cidadãos tenham garantido seu direito à saúde, a alternativa é o licenciamento compulsório do mesmo.

Assim, toda vez que restar demonstrado o devido interesse público, deve o governo proceder ao licenciamento compulsório de medicamentos, em prol da saúde pública, garantindo, todavia, ao detentor da patente, que o uso do medicamento será não-comercial, não-exclusivo e sua exploração, temporária, mas prorrogável enquanto perdurar o interesse público, assegurando-se a remuneração devida ao detentor da patente.

De acordo com a Agência do Estado (2007), a prática do licenciamento compulsório para produtos farmacêuticos é utilizada com freqüência tanto por países desenvolvidos, como por exemplo, Itália e Canadá, quanto por países em desenvolvimento.

O licenciamento compulsório, em si, é utilizável sempre que necessário, dentro dos casos previstos na lei nacional e em atenção ao TRIPS. Todavia ele não deve consistir em uma política pública, mas sim como elemento de controle e de equilíbrio que possibilite a sustentabilidade da concretização de um direito à saúde, em outras palavras, de um acesso adequado aos medicamentos (BARBOSA; SILVA; AVANCINE, 2009, p. 2586).

A questão das patentes dos medicamentos e seu licenciamento compulsório pelo governo, assim, mostra-se como mais um instrumento de garantia do direito à saúde, e, portanto, à vida, respeitando os princípios insculpidos na Constituição Federal, além de estar de acordo com regras internacionais de direito, conforme restou evidenciado acima.

1.5 Violações do direito à saúde

Considerando-se que, como até aqui restou demonstrado, é o Poder Público o maior responsável pelo atendimento à saúde da população. Não causa estranheza que seja o mesmo o campeão de reclamações por violações a esse mesmo direito.

Assim sendo, nos moldes aqui já considerados, em se tratando de direito fundamental das pessoas, a saúde deve merecer proteção integral por parte do Estado, mediante assistência que garanta a efetividade daquele direito em todos os planos, sejam preventivos, de manutenção e de recuperação.

O dever genérico de proteção à saúde é do Estado, não apenas compreendido o Estado-membro da Federação, mas o Estado em todos os seus níveis, isto é, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, cada um na medida de suas atribuições.

Por tal razão, esse direito não pode ser restrito, tendo em vista que não se fundamenta em regras de mera intenção ou de normas programáticas, que jamais seriam capazes de atender às demandas da sociedade brasileira.

Nesse aspecto, as violações cometidas pelo Poder Público dizem respeito eminentemente à situação do fornecimento de medicamentos e tratamentos à pessoa enferma.

O Poder Público, infelizmente, tem adotado uma postura de inflexibilidade no tocante ao tema, editando normas de organização administrativa interna que acabam por prejudicar os cidadãos, impedindo-os de exercer seus direitos constitucionais.

Exemplificativamente, nessa seara, o Poder Público tem adotado um sistema de classificação “por complexidade” dos diversos medicamentos e tratamentos existentes, restringindo seu fornecimento a determinadas unidades de saúde, de acordo com os artigos 24; 25; 26 e 27 da Portaria nº 204/GM de 29 de janeiro de 2007[19].

Assim sendo, na esfera municipal, exemplificativamente falando, as pessoas encontram dificuldades em encontrar medicamentos para o tratamento de moléstias que não se encontram dentre as mais simples, porém, igualmente não se revestem de grande complexidade, como é o caso do diabetes mellitus.

Ou então, na esfera municipal encontram-se medicamentos apenas para tratar a modalidade mais endêmica da moléstia, ficando aquelas menos comuns relegadas a outras esferas administrativas.

Essa discriminação, não encontra proteção nos textos constitucionais que são fontes do Direito à Saúde Brasileira, conforme restou evidenciado até aqui.

Muitas vezes o cidadão comum é obrigado a realizar deslocamentos longos, prejudiciais ao seu estado de saúde, justamente porque seu município de residência não dispõe, ou se nega, a fornecer o medicamento de que necessita, atribuindo a obrigação ao Estado membro, ou outro órgão.

O mesmo tem ocorrido com os tratamentos médicos necessários, incluindo aí, dentre outros, intervenções cirúrgicas e o fornecimento de próteses e órteses diversas.

O resultado dessas violações ao direito à saúde é um grande número de ações judiciais, onde se pleiteiam os medicamentos ou tratamentos negados, invocando-se as garantias constitucionais e infra-constitucionais existentes em nosso ordenamento jurídico[20].

Comprovando ao que foi defendido no presente trabalho, via de regra nossas Cortes têm dado total procedência a tais demandas, assegurando dessa forma a necessária proteção da saúde da população. Essa proteção se dá especialmente no âmbito cível, concedendo-se mandados de segurança e obrigando o Estado ao fornecimento, por exemplo, de medicamentos. Trata-se de legítima expressão do texto constitucional, que dispõe ser o Estado garantidor do direito à saúde de toda a população.[21]

Como se percebe, o Poder Judiciário atua, nesses casos, como fiscal direto do direito à saúde, garantindo aos cidadãos sua ampla concretização e a remoção de quaisquer barreiras burocráticas e arbitrárias levantadas pelos gestores do Poder Público

Inclusive, conforme esclarece Gouvêa, “conclui-se, portanto, que a orientação recente do STJ é francamente favorável ao reconhecimento de direito ao fornecimento de medicamentos pelo Estado” (GOUVÊA, 2003, p. 103-104).

Mas, cuidando ainda das violações do direito à saúde, há que se consignar que boa parte delas também pode ser debitada à esfera privada.

Em especial, notam-se os abusos praticados pelos seguros-saúde, que trazem prejuízos não só à saúde, mas também materiais, à população que dos mesmos se serve.

Quando se trata dos planos de saúde, as violações costumam se restringir à negativa de cobertura de procedimentos, tratamentos ou medicamentos, o que também enseja a propositura de ações judiciais, nas quais o Poder Judiciário tem se mostrado suficiente para garantir as prerrogativas dos prejudicados, tal como ocorre no caso das violações do Poder Público. Neste sentido, foi editada a Súmula 469 do STJ[22] que consolida o entendimento pacificado do STJ de que a atividade dessas empresas é regida pelo CDC, como pode-se verificar no Resp 267.530 julgado em 14 de dezembro de 2.000 pela quarta turma do STJ[23].

Ainda, dentre as violações ao direito à saúde comumente noticiadas, encontram-se o erro médico e aquelas concernentes à qualidade dos produtos farmacêuticos produzidos, que por sua vez dizem respeito à eficácia destes.

Pode-se ainda afirmar que, na seara privada, as violações decorrem, também, do abuso do poderio econômico, concretizado, por exemplo, na aplicação de reajustes atuais a planos de saúde antigos, gerando aumentos de até 80% (oitenta por cento) em prejuízo dos consumidores (FIGUEIREDO, 2006).

A controvérsia somente foi resolvida a partir do ajuizamento de demanda pela União, de onde advieram Termos de Compromisso onde buscou-se a solução que mais se adequava ao binômio direito à saúde/viabilidade dos planos de saúde  (FIGUEIREDO, 2006).

Ressalte-se que, no caso dos planos de saúde, a fiscalização e proteção dos direitos dos consumidores, enquanto no plano governamental, incumbe à Agência Nacional de Saúde (ANS), à qual, por força do art. 4º, XXXVI, da Lei n. 9.961, de 28 de janeiro de 2000, cabe “articular-se com os órgãos de defesa do consumidor visando à eficácia da proteção do consumidor de serviços privados de assistência à saúde, observado o disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor”.

Muito embora esta última modalidade de violação ao direito à saúde possa decorrer de simples erro material (como é o caso, por exemplo, de farmácias de manipulação que entregam medicamentos formulados inadequadamente aos seus clientes), é certo que existe também um enorme mercado paralelo de medicamentos falsificados, além de outras fraudes, que consistem no objeto do presente trabalho.

Sobre a autora
Daniela Novelli Scarpa

Farmacêutica, formada pela Universidade de Marília - Unimar. Advogada, formada pela Universidade do Oeste do Paraná - Unioeste. Pós-graduanda em Direito Constitucional pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCARPA, Daniela Novelli. Fraude em medicamentos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3244, 19 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21795. Acesso em: 24 nov. 2024.

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