2 A FRAUDE E A FALSIFICAÇÃO DE MEDICAMENTOS
2.1 Os Medicamentos e Suas Espécies: Definições Fundamentais
Para se considerar a hipótese de fraude e falsificação de medicamentos, se faz necessário, primeiramente, estabelecer suas definições fundamentais, de tal maneira que se possa compreender satisfatoriamente a matéria.
No intuito de estabelecer esses parâmetros, importa primeiro fazer uma breve retrospectiva da História da Farmácia, para dessa forma facilmente apreender o conceito de medicamento.
Falando brevemente para não perder o escopo da presente monografia, a Farmácia é “[...] a segunda parte da medicina, que ensina a escolha, preparo e a mistura dos medicamentos [...], passou por quatro períodos históricos, sendo chamados de Período Religioso, Período Filosófico, Período Experimental e Período Científico (AIACHE. M; AIACHE. S; RENOUX, 1998, p. 19).
O Período Religioso, que data de antes de 1000 a.C., foi marcado pela relação direta entre os tratamentos e medicamentos à invocação de divindades, com a estreita relação entre as doenças e espíritos ou divindades malignas.
Apesar da predominância dessa visão mística, já havia alguns esboços do que poderia ser considerada a farmacêutica moderna, como ocorreu nas culturas Chinesa e Babilônica.
O Período Filosófico iniciou-se no ano 1000 a.C. e durou até 900 d.C. No mesmo, destacam-se a influência dos gregos e de seu pensamento racional, seguindo para os romanos, que deram Claudius Galenus, ou Galeno, tido como o Pai da Farmácia.
O terceiro período, dito Experimental, iniciou-se na Idade Média e perdurou até o Século XVII. Nele nota-se a influência dos árabes que viveram na Europa, tendo ocorrido a experimentação com compostos a partir de ervas, que eram depois relatados aos monges cristãos, que anotavam os resultados obtidos.
A imprensa, recém surgida, serviu para difundir esses conhecimentos, na forma de tratados denominados Antidotários. Surgem as primeiras regulamentações da profissão de boticário, o correspondente ao nosso farmacêutico, inclusive iniciando as primeiras inspeções desses estabelecimentos, com objetivos de garantir a qualidade dos seus produtos.
Por fim, tem-se o quarto período, designado Científico, que começou com as descobertas de cientistas famosos como Lineu e Lavoisier, e perdura até os dias de hoje, com a Farmácia se desenvolvendo conjuntamente com a própria Ciência, como a conhecemos hoje.
Dos primórdios dessa fase já se dão as descobertas de medicamentos considerados modernos, como a aspirina (AIACHE; AIACHE; RENOUX, 1998), que foi descoberta por acaso, e foi sintetizada pelo químico da Bayer, Felix Hoffmann em 1899, sendo o primeiro medicamento a ser sintético na história da farmácia sendo que sua patente pertenceu à Bayer até o final da Primeira Guerra Mundial, quando os alemães foram derrotados (BARROS, 2010).
A atividade de Farmácia e conseqüentemente a produção de medicamentos, profissionalizam-se e aos poucos assumem as formas e aparências que hoje conhecemos.
Assim, de início, para compreender o conceito histórico de medicamento, importa adentrar àquele de ato farmacêutico.
Segundo Patrice Roussel, historiador da farmácia, o ato farmacêutico pode ser assim definido: “Saber obter, conservar as matérias primas ou as drogas simples, dar a forma necessária e, a seguir, misturá-las para compor o medicamento prescrito pelo médico [...]” (ROUSSEL apud AIACHE. M; AIACHE. S; RENOUX, 1998, p. 19).
Do conceito de ato farmacêutico acima, pode-se inferir que os medicamentos consistem em matérias-primas ou drogas simples que, obtidas por um profissional e devidamente conservadas, são misturadas para compor um medicamento de tal sorte que o mesmo seja útil ao tratamento de determinada moléstia, prescrito por um médico.
Entretanto, muito embora essa definição possa ser facilmente apreensível, e apresentar uma extensão adequada para os fins científicos, em termos práticos ela se mostra pouco útil, servindo apenas de base às definições que vieram provenientes de leis e regulamentos da área da saúde adotados pelas nações.
No Brasil, os conceitos especialmente empregados pelos órgãos fiscalizadores como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2012), que define ato farmacêutico como sendo um ato privativo do farmacêutico por seus conhecimentos adquiridos durante sua formação acadêmica como perito do medicamento, são mais sintéticos e técnicos, tomando por base textos legais e normas administrativas, mostrando-se mais adequados aos fins jurídicos.
De acordo com o Portal da Educação (2008)[24], são ainda conceitos fundamentais em se tratando de medicamentos:
Fármaco (pharmacon = remédio): possui estrutura química conhecida; propriedade de modificar uma função fisiológica já existente e não cria função.
Medicamento (medicamentum = remédio): é um fármaco com propriedades benéficas, sendo comprovadas cientificamente.
Assim sendo, pode-se dizer que todo medicamento é um fármaco, mas nem todo fármaco é um medicamento.
Droga (drug = remédio, medicamento, droga): é uma substância que modifica a função fisiológica com ou sem intenção benéfica.
Remédio (re = novamente; medior = curar): é uma substância animal, vegetal, mineral ou sintética. Pode ser usado nos procedimentos de ginástica, massagem, acupuntura e banhos. Na fé ou crença; influência: são usados com intenção benéfica.
Placebo (placeo = agradar): tudo o que é feito com intenção benéfica para aliviar o sofrimento: fármaco/medicamento/droga/remédio (em concentração pequena ou mesmo na sua ausência), a figura do médico (feiticeiro).
Nocebo: efeito placebo negativo, sendo que nesse caso o medicamento prejudica a saúde.
Assim sendo, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, medicamento é todo “Produto farmacêutico com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico” (ANVISA, 2012). Pode-se ainda encontrar a seguinte definição:
produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico. É uma forma farmacêutica terminada que contém o fármaco, geralmente em associação com adjuvantes farmacotécnicos (ANVISA, 2012).
Pode-se a partir do conceito dado pela ANVISA, definir medicamento como sendo um fármaco que tem por objetivo curar, aliviar a dor e previnir alguma doença, como no caso das vacinas, ou mesmo para auxiliar no diagnóstico de alguma doença como exemplo dos contrastes usados em ressonâncias magnéticas, tomografias.
Ainda segundo a classificação adotada pela ANVISA (2012), os medicamentos podem ser bioequivalentes, biológicos, biotecnológicos, de controle especial, de dispensação em caráter excepcional, de uso contínuo, de venda livre, essenciais, de interesse em saúde pública, de referência, fitoterápicos, fitoterápicos novos, fitoterápicos tradicionais, fitoterápicos similares, genéricos, homeopáticos, homeopáticos industrializados isentos de registro, homeopáticos industrializados passíveis de registro, inovadores, para atenção básica, não prescritos, órfãos, similares e tarjados.
Medicamentos Bioequivalentes, são equivalentes farmacêuticos que, quando administrados na mesma dose molar e nas mesmas condições experimentais, não apresentam diferenças estatisticamente significativas em relação à biodisponibilidade[25].
Medicamento Biológico, é um produto farmacêutico, de origem biológica, o mesmo é tecnicamente obtido ou elaborado, com a finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico[26].
Medicamentos Biotecnológicos, é um medicamento biológico, sendo tecnicamente obtido ou elaborado por procedimentos biotecnológicos, tendo finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico[27].
Medicamentos de Controle Especial, são medicamentos entorpecentes ou psicotrópicos e outros relacionados pela ANVISA, podendo causar dependência física ou psíquica[28].
Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional, são medicamentos utilizados em doenças raras, geralmente com custo elevado, cuja dispensação atende a casos específicos[29].
Medicamentos de uso Contínuo, são medicamentos empregados no tratamento de doenças crônicas e/ou degenerativas, os quais são utilizados continuamente[30].
Medicamentos de Venda Livre, são medicamentos cuja dispensação não requerem autorização, ou seja, receita expedida por profissional[31].
Medicamentos Essenciais, são medicamentos considerados básicos e indispensáveis para atender a maioria dos problemas de saúde da população[32].
Medicamentos de Interesse em Saúde Pública, são utilizados no controle de doenças que, em certa comunidade, têm magnitude, transcendência ou vulnerabilidade relevante; sua estratégia básica de combate é o tratamento dos doentes[33].
Medicamento de Referência, é um produto inovador, com registro no órgão federal responsável pela vigilância sanitária e comercializado no País. Na ocasião do registro, comprovou-se cientificamente junto ao órgão federal competente, sua eficácia, segurança e qualidade[34].
Medicamento Fitoterápico, é um medicamento farmacêutico obtido por processos tecnologicamente adequados, sendo utilizadas exclusivamente matérias-primas vegetais, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico. Caracteriza-se pela sua eficácia, pelos riscos de seu uso, e pela reprodutibilidade e constância de sua qualidade. Na composição, se incluir substâncias ativas isoladas, de qualquer origem, e associações destas com extratos vegetais, o mesmo não é considerado medicamento fitoterápico[35].
Medicamento Fitoterápico Novo, apresenta eficácia, segurança e qualidade, sendo comprovado cientificamente junto ao órgão federal competente, no momento do registro do mesmo, o qual pode servir de referência para o registro de similares[36].
Medicamento Fitoterápico Tradicional, é elaborado a partir da planta medicinal, de uso alicerçado na tradição popular. Não há comprovações conhecidas ou informadas, de risco à saúde do usuário, sendo que sua eficácia ocorre através de levantamentos etnofarmacológicos e de utilização, documentações tecnocientíficas ou publicações indexadas[37].
Medicamento Fitoterápico Similar, assim como o fitoterápico considerado de referência, esse medicamento contém as mesmas matérias-primas vegetais, na mesma concentração de princípio ativo ou marcadores, utilizando a mesma via de administração, forma farmacêutica, posologia e a mesma indicação terapêutica[38].
Medicamento Genérico, é um medicamento similar a um produto de referência ou inovador, sendo intercambiável com estes. É produzido, geralmente, depois da expiração ou renúncia da proteção patentária, ou então, de outros direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB ou, na sua ausência, pela DCI[39].
Medicamento Homeopático, de acordo com a Farmacopéia Homeopática Brasileira, são preparações manipuladas de forma específica de acordo com regras farmacotécnicas bem definidas[40]. De acordo com o princípio da similitude, toda apresentação farmacêutica destinada a ser ministrada, com finalidade preventiva e terapêutica, obtida pelo método de diluições seguidas de sucussões e/ou triturações sucessivas[41].
Medicamento Homeopático Industrializado Isento de Registro, é um medicamento simples (com um único componente ativo de Matéria Médica Homeopática estabelecida), considerando todas suas formas farmacêuticas derivadas, sem marca ou nome comercial, compreendendo somente as dinamizações decimais e centesimais, a partir da primeira dinamização destas escalas oficiais. Obrigatoriamente, sua preparação deve seguir os métodos oficiais descritos na Farmacopéia Homeopática Brasileira, edição em vigor, e na ausência em seu conteúdo, compêndios oficiais reconhecidos pela Anvisa[42].
Medicamento Homeopático Industrializado Passível de Registro, é um medicamento simples (componente único) ou composto (com 2 ou mais componentes), com marca ou nome comercial. Deve seguir, na sua preparação, obrigatoriamente, os métodos oficiais descritos na Farmacopéia Homeopática Brasileira, edição em vigor, e compêndios oficiais reconhecidos pela Anvisa, dinamizados. Constituída por substâncias de comprovada ação terapêutica, a fórmula do medicamento está descrita nas matérias médicas homeopáticas, ou nos compêndios oficiais ou estudos clínicos ou revistas indexadas[43].
Medicamento Inovador, esse medicamento apresenta em sua composição ao menos um fármaco ativo que tenha sido objeto de patente, mesmo já extinta, por parte da empresa responsável pelo seu desenvolvimento e introdução no mercado no país de origem, e disponível no mercado nacional. Geralmente, o medicamento inovador é considerado medicamento de referência, todavia, na ausência do mesmo, a Anvisa indicará o medicamento de referência[44].
Medicamentos para Atenção Básica, são produtos necessários à prestação do elenco de ações e procedimentos compreendidos na atenção básica de saúde[45].
Medicamentos não Prescritos, a dispensação desses medicamentos não requer de prescrição por profissional habilitado[46].
Medicamentos Órfãos, são medicamentos utilizados em doenças raras, sendo que sua dispensação atende a casos específicos[47].
Medicamento Similar, aquele que contém o mesmo ou os mesmos princípios ativos do medicamento de referência registrado no órgão federal, responsável pela vigilância sanitária, apresenta a mesma concentração, forma farmacêutica, via de administração, posologia e indicação terapêutica, preventiva ou diagnóstica. Esse medicamento pode diferir somente em características relativas ao tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos, devendo sempre ser identificado por nome comercial ou marca[48].
Medicamentos Tarjados, esses medicamentos necessitam da prescrição do médico ou dentista e apresentam, em sua embalagem, a tarja (vermelha ou preta), indicativa desta necessidade49.
Tais classificações consideram aspectos dos medicamentos como condições de produção, origem, efeitos adversos, especialidade da aplicação, tipo do tratamento a que se destinam, autorização para comercialização, relevância social, inovação, matérias primas, intercambialidade, se pertencentes ou não à alopatia, isopatia ou homeopatia e se dependem ou não de prescrição médica.
Muito embora esse rol de conceitos seja pouco aprofundado, considerando-se a complexidade da Farmácia e medicamentos, é suficiente para os fins pretendidos no presente trabalho.
2.2 Fraude e Falsificação: Conceito e Espécies
Uma vez definido o que é medicamento e quais as definições básicas para melhor compreendê-los, faz-se necessário analisar os conceitos de fraude e falsificação, para, a partir da consideração concomitante dessas premissas, chegar-se a contento ao objeto deste trabalho.
Pode-se conceituar a fraude, em sentido técnico e bem amplo, “como o emprego de artifício malicioso para enganar uma pessoa e levá-la a praticar uma ação, que sem isso não praticaria” (FRANCO et al., 1993, p. 1143).
Desse entendimento não divergem os doutrinadores pátrios, como se infere da seguinte lição:
Esses efeitos são especialmente sentidos se as condutas dos fornecedores de produtos alimentícios forem fraudulentas. Este vocábulo, do latim fraus, fraudis, significa erro ou engano, e fraudes alimentares podem ser definidas como ‘atuação de fatores circunstanciais ou deliberadamente provocados, que incidindo, isoladamente ou em combinação sobre os alimentos, desmerecem-nos comercial e biologicamente, tornando-os, assim, passíveis de restrições legais quanto ao consumo’. Levam o consumidor a erro no tocante aos ‘caracteres organoléticos, de composição química, do equilíbrio percentual de seus constituintes normais e, ainda, à quebra das boas condições do seu estado sanitário, acarretando, destarte, aos consumidores, prejuízos não só de ordem biológica, como, também, de ordem econômica (ESQUIVEL, 2009, p. 61).
A fraude tem sido caracterizada também como o “[...] engodo fraudulento que espolia a vítima” (RT 329/121 apud MIRABETE, 1994, p. 278).
A falsificação, por sua vez, pode ser sinteticamente obtida segundo definição de medicamento falsificado do Seminário Nacional de Identificação de Medicamentos Falsificados, realizado em Brasília, em 1998: “Produto rotulado deliberadamente e fraudulentamente em forma enganosa, quanto à sua identidade e/ou origem” (SEADI, 2002, p. 66).
Dessa definição, temos que a falsificação de medicamento consiste em rotular deliberadamente e fraudulentamente um produto, de tal sorte a atribuir-lhe identidade e/ou origem de medicamento real que, na realidade, não possui.
Para especificar esse conceito, Esquivel explica que:
Um produto será considerado falsificado quando possuir a aparência de produto legítimo sem que o seja, por não possuir, no todo ou em parte, os elementos do produto original ou por não proceder de seus verdadeiros fabricantes ou produtores ou do local ou região de sua produção ou confecção (2009, p. 112).
A partir dessa lição, podemos efetivamente concluir que a falsificação é espécie do gênero fraude, inclusive enquadrando-se, dependendo da forma com que é manufaturada, no conceito de fraude por alteração:
Nessa seara, é possível ocorrer a falsificação de medicamentos nos seguintes níveis:
a) não contém nenhum princípio ativo;
b) contém princípio ativo diferente do declarado no rótulo;
c) contém o(s) princípio(s) ativo(s) em quantidade e/ou forma diferente da declarada no rótulo e pode conter impurezas (não conforme);
d) contém o(s) princípio(s) ativo(s) em quantidade correta, mas a origem é falsa;
e) contém o(s) princípio(s) ativo(s) em quantidade correta, a origem é genuína, mas a cadeia de distribuição é clandestina (SEADI, 2002, p. 67).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1992 em Genebra, quando houve o primeiro encontro internacional sobre medicamentos falsificados, definiu o conceito de medicamentos falsificados, nesse sentido,
Como a ausência de uma definição aceita mundialmente poderia dificultar a troca de informações e limitar o conhecimento da extensão do problema, durante o primeiro encontro internacional sobre medicamentos falsificados na Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra em 1992, com a participação dos Estados-membros, da Interpol, da Federação Internacional da Indústria de Medicamentos (IFPMA), dentre outras instituições, foi acordado que medicamentos falsificados são aqueles rotulados de forma intencional e fraudulenta quanto à origem e/ou identidade, aplicável tanto a produtos genéricos como aos de marca, podendo apresentar ingredientes corretos ou incorretos, sem princípios ativos ou com quantidade insuficiente de princípios ativos ou com embalagem falsificada (WORLD HEALTH ORGANIZATION apud NOGUEIRA; VECINA NETO, 2011, p. 114).
Ainda com base nos autores do artigo citado acima, temos uma definição apesar de não ser oficial sobre medicamentos irregulares, que nas palavras dos autores são:
aqueles que não atendem aos padrões de qualidade exigidos ou não estão de acordo com a legislação vigente e, portanto, englobam além dos medicamentos falsificados, os medicamentos sem registro, adulterados, contrabandeados ou com prazo de validade vencido (NOGUEIRA; VECINA NETO, 2011, p. 114).
É preciso, a esta altura, evidenciar ainda que houve discussão doutrinária a respeito da diferenciação entre fraude civil e fraude penal.
“Muitos autores não fazem distinção entre o ilícito civil e o penal, cuja diferença se situaria em uma área obscura, em que não é possível extremar, com segurança, as raias do ilícito civil e do ilícito penal” (MIRABETE, 1994, p. 279).
A doutrina dominante, no entanto, considera penal a fraude quando o sujeito visa a um fim ilícito[49].
É evidente e manifesto, que a fraude de medicamentos enquadra-se na categoria fraude penal, pelas violações aos mais basilares direitos previstos em nossa Constituição, que decorre da sua prática.
Desta forma, pode-se conceituar a fraude ora considerada como sendo o uso de artifício malicioso para enganar uma pessoa e levá-la a praticar uma ação, sem o qual não a praticaria, sendo seu resultado um lucro ilícito do agente, e a violação dos direitos e garantias individuais dos cidadãos.
De tais conceitos, infere-se se tratar a fraude de gênero de ilícito penal, que pode ser praticado por vários métodos.
Daí, pode-se classificar as fraudes em medicamentos em corrupção, adulteração e alteração (SEADI, 2002, p. 66-67).
Em se tratando de medicamentos e produtos similares, a fraude pode atingir a própria composição do medicamento, (o fármaco, geralmente em associação com adjuvantes farmacotécnicos) ou seus caracteres exteriores, tais como marca, embalagem, etc.
Corrupção consistiria em tomar por base o produto genuíno e degradá-lo a tal ponto que seja considerado estragado. Neste caso, o medicamento original existe antes da prática criminosa.
Na adulteração, o medicamento pré-existente é modificado para pior, preservando-se ou até mesmo melhorando seu aspecto exterior.
O conceito de adulteração de medicamento pode ser aferido, analogicamente, àquele de adulteração de alimento, o qual já foi devidamente estabelecido pela doutrina:
Pode-se dizer que o alimento adulterado é aquele que foi privado, total ou parcialmente, de seus elementos característicos, ou porque estes foram simplesmente suprimidos, ou por terem sido adicionadas nele substâncias inferiores ou inertes, substâncias não autorizadas ou utilizadas em quantidade superior à permitida, ou quando aproveitados produtos que já não poderiam ser destinados ao consumo. Trata-se de uma verdadeira fraude, já que o consumidor é enganado quanto às características do alimento adquirido, acreditando estar livre de elementos que afetem sua saúde (v.g. ser puro e estar livre de aditivos) ou possuir determinadas propriedades que na verdade inexistem (ESQUIVEL, 2009, p. 80).
O que fica claro é que, em se tratando de adulteração, faz-se necessária a participação comissiva do agente, que realiza uma das condutas retro-descritas no intuito de enganar o consumidor, levando-o a adquirir um produto com propriedades diversas das anunciadas.
Por fim, a alteração dá-se pela modificação da qualidade do medicamento, com a supressão de características inerentes ao mesmo, “Nesse caso, não há a concorrência direta do indivíduo, decorrendo a mesma da desídia ou da infringência de técnicas apropriadas, configurando conduta culposa do agente” (ESQUIVEL, 2009, p. 62-63).
“A doutrina considera ainda a ocorrência de fraude por falsificação, que consiste na comercialização de um produto com aparência de legítimo sem que o seja” (ESQUIVEL, 2009, p. 112).
Como se percebe em todas essas figuras, há a presença de um ato visando ludibriar a vítima, com a intenção de obter um lucro ilícito, mediante a comercialização de medicamentos que não fornecem a resposta terapêutica farmacologicamente esperada.
2.3 Brasil, Paraíso dos Falsificadores?
O Brasil ostenta uma reputação desfavorável perante o mundo quando o assunto é falsificação.
“O primeiro registro de falsificação de medicamento no Brasil data de 1877, sendo o produto falsificado a água inglesa, em 1991, foram encontradas 9 (nove) marcas de tetraciclina falsificadas” (NOGUEIRA; VECINA NETO, p. 119).
Ainda de acordo com os autores acima:
No período de 1997 e 1998, a prática de falsificação se agravou, sendo registrados 172 casos de falsificação pelo Ministério da Saúde. Entre estes, está a falsificação pela máfia de medicamentos do produto Androcur, indicado para o tratamento de câncer de próstata, da empresa Schering do Brasil, levando ao agravamento da doença e a óbito pelo menos 5 pacientes que utilizavam o medicamento (NOGUEIRA; VECINA NETO, p. 119).
De acordo com informações do site do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), com base em dados fornecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), um terço dos medicamentos vendidos no Brasil são falsos.
Nas palavras do presidente da ETCO, Roberto Abdenur[50], o comércio ilegal faz circular anualmente a quantia entre R$ 5 bilhões e R$ 8 bilhões, sendo resultado do comércio de medicamentos roubados, contrabandeados, falsos ou ilegais.
Ainda conforme as informações do ETCO, em nível global, a falsificação de medicamentos é responsável por 10% do total de medicamentos comercializados, o Instituto ainda aponta para outro dado alarmante da Organização Mundial da Saúde (OMS), que segundo os levantamentos dessa organização os medicamentos pirateados causaram um prejuízo fiscal na ordem US$ 35 bilhões em todo o mundo só no ano de 2009, a OMS estimou que esse prejuízo ultrapassaria a ordem dos US$ 60 bilhões no ano de 2010.
Segundo artigo publicado pela advogada Monyca Canella Mota, o progresso das falsificações no país é crescente e preocupa, pois está até mesmo retirando postos de trabalho da indústria:
Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Software (ABES), mais da metade dos programas de computador hoje utilizados no Brasil são falsificados. Na indústria fonográfica, foram computados prejuízos da ordem de R$ 700 milhões somente em 2001, com a perda de receitas resultante da comercialização de cópias ilegais. Números dessa ordem se repetem nos diversos segmentos da economia atingidos pela pirataria.
Numa progressão assustadora, o chamado "mercado paralelo" vem engolindo o mercado formal, redundando na primazia da ilegalidade sobre a legalidade e produzindo uma inversão de valores nunca antes vista (MOTA, 2002, s/n).
No que tange aos medicamentos, o panorama não é mais animador.
O Brasil está hoje em oitavo lugar no ranking mundial dos países que mais comercializam medicamentos, totalizando US$ 10 bilhões por ano.
Segundo a farmacêutica Eliane Lazzaroni, palestrante do VIII Congresso Brasileiro de Farmácia Hospitalar, realizado de 24 a 26 de novembro de 2011, em se tratando de falsificação de medicamentos, “O Brasil é o segundo colocado no ranking dos países da América Latina perdendo apenas para o Peru” (LAZZARONI, 2011).
De acordo com Lazzaroni (2011), em se considerando o mercado mundial de medicamentos, dados apontam que entre 10 e 15% dos remédios vendidos são falsificados.
Apurou-se ainda que, nos países em desenvolvimento, os principais medicamentos falsificados que são comercializados são analgésicos, anti-hipertensivos e antibióticos.
Prossegue ainda a farmacêutica Eliane Lazzaroni: “Assusta por ser um medicamento mais simples sendo falsificado e consumido, mas isso se deve à dificuldade de acesso das comunidades menos abastadas” (2011).
Assim, a falsificação de medicamentos atinge justamente as camadas mais baixas do extrato social, que são, conforme já mencionado no presente trabalho, as mais carentes em termos de saúde e mais dependentes do governo para se manterem sadias.
O panorama é bastante grave, pois, no que concerne à repressão à pirataria, tanto as entidades nacionais quanto as internacionais reconhecem que, não obstante o Brasil haver promulgado leis modernas sobre propriedade industrial e direito autoral, essas leis ainda não são efetivas, especialmente porque o país ainda não dispõe de órgãos reguladores eficientes nem de uma polícia especializada, devidamente preparada para coibir infrações.
Nesse sentido, pode-se ainda destacar que, no Brasil, as polícias contam com poucos recursos mesmo para coibir a prática dos delitos mais comuns, como furto, roubo e homicídio.
A velocidade extrema com que esses produtos ilícitos são colocados no mercado paralelo, muitas vezes antes mesmo do produto original, assim como a facilidade com que os mesmos podem ser encontrados, são indícios claros da profissionalização dos criminosos, num patamar que somente sua associação com o crime organizado justifica a atual situação.
Baseando-se na lista de produtos falsificados publicada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)[51], no ano de 2008, pode-se ter idéia do alvo dos falsificadores, sendo o campeão de falsificação o medicamento para tratamento de disfunção erétil, o Ciallis produzido pela empresa farmacêutica Eli Lilly do Brasil Ltda., seguido pelo Viagra (que possui a mesma indicação terapêutica do Ciallis), produzido pelo Laboratório Pfizer Ltda., ainda na lista da ANVISA pode-se encontrar os medicamentos esteróides Deca-Durabolin e Durateston, ambos produzidos pela Organon do Brasil Ind. e Com. Ltda.
Em geral, o quadro das falsificações no ano de 2009 não sofreu alterações no que diz respeito aos tipos de medicamentos que são alvos da falsificação, como mostra a divulgação da ANVISA[52] em seu site em 14 de abril de 2009. Abaixo segue texto da notícia.
Entre os medicamentos falsificados nos três primeiros meses de 2009 estão principalmente cópias de medicamentos usados para disfunção erétil, como Ciallis e Viagra. A falsificação de medicamentos é considerada crime hediondo, com penas que podem chegar a 15 anos de prisão (BRASIL, 2009).
Fato é que, apesar de possuirmos legislação, em tese, adequada, ainda não houve uma iniciativa eficaz, rápida e específica das autoridades ou da sociedade civil para combater o fenômeno, permitindo assim o seu alastramento.
É fato também que, recentemente, ações organizadas, sob a forma de forças-tarefas, ou “operações” no combate à falsificação, têm sido realizadas pelo Poder Público, objetivando não apenas coibir a prática, mas orientar o consumidor, na tentativa de criar uma cultura que supere a atualmente prevalente, onde apenas o benefício econômico imediato é procurado pela maioria das pessoas.
Foi editada a Lei nº 11.903 de 14 de janeiro de 2009, que dispõe sobre o rastreamento da produção e do consumo de medicamentos por meio de tecnologia de captura, armazenamento e transmissão eletrônica de dados, visando garantir a segurança e eficácia dos medicamentos, onde se prevê o rastreamento dos produtos em toda a cadeia farmacêutica até seu consumo por meio de tecnologia de captura, armazenamento e transmissão eletrônica de dados (BRASIL, 2009).
Essas iniciativas, contudo, mais do que o clamor popular, têm sido envidadas em razão do prejuízo causado aos vários segmentos da indústria afetados, bem assim as críticas da comunidade internacional ao Brasil, pela aparente tibieza no combate a esses delitos.
É preciso, portanto, que haja uma melhoria da fiscalização à prática desses delitos, com a tomada de medidas administrativas mais rígidas e com a criação de uma departamento de fiscalização realmente eficaz, com um número suficiente de pessoas preparadas tecnicamente para combater esse tipo específico de delito, além disso se faz necessário a conscientização da população sobre os perigos do uso de medicamentos falsificados, de origem duvidosa, e de qualidade não comprovada, citando como exemplo, devido a nossa proximidade ao Paraguai, os medicamentos provenientes daquele país, onde a legislação e fiscalização são precárias, quando não inexistentes, dentre outros tantos exemplos de riscos à saúde em que a população se encontra, seja por falta de conhecimento, seja por baixo poder aquisitivo, quando fazem uso de “medicamento alternativos”como as tão conhecidas garrafas e preparos.
No tocante aos medicamentos, a gravidade da matéria, por cuidar da saúde da população e, portanto, em última instância, seu direito à vida, deveria ensejar nas autoridades governantes a realização de medidas duras contra o delito, punindo-se com rigor e severidade os seus perpetradores.
Ainda, sem que haja a devida orientação da sociedade civil, com o uso de campanhas maciças de esclarecimento, com enfoque especial nos danos que as falsificações trazem ao país, não só monetários, como também arranhando a reputação do Brasil no exterior, não há como se esperar um êxito nesse difícil combate.
A aplicação da lei atualmente vigente, de forma eficaz, já bastaria para reduzir consideravelmente o problema das falsificações, o que, todavia, não ocorre, devido às inúmeras dificuldades administrativas de que padece o Brasil, que vão desde a falta de recursos até mesmo a falta de pessoal especializado.
A permanecer a situação intocada, dificilmente o país não ficará conhecido como “o paraíso dos falsificadores”.