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Responsabilidade civil dos pais nos casos de abandono afetivo dos filhos

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Agenda 17/05/2012 às 18:48

Doutrinadores sustentam que não há monetarização do afeto ao estabelecer uma indenização e tampouco se trata de obrigar os pais a amarem seus filhos, mas sim de deixar claro que devem cumprir com os deveres inerentes à maternidade e paternidade.

“Mais que fotos na parede ou quadros de sentido, a família é possibilidade de convivência.”

(Luiz Edson Fachin)

“É o outro, é o seu olhar, que nos define e nos forma. Nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro”.

(Umberto Eco)

RESUMO

A presente pesquisa visa à análise dos argumentos doutrinários e jurisprudenciais acerca da possibilidade de indenizar as pessoas vítimas de abandono afetivo. Não há consenso entre a doutrina e a jurisprudência, sendo relevante a análise dos argumentos apresentados para defesa dos posicionamentos favoráveis e contrários. A família evolui conforme as modificações dos valores sociais preservados em cada época. Com o passar do tempo o afeto ganhou espaço central nas relações familiares, constituindo-se em fundamento da família e guia para o convívio de seus membros. Logo, deve ser almejado e assegurado em todo e qualquer grupo familiar, sendo a família instrumento para desenvolvimento de direitos fundamentais da pessoa. Dada a relevância do afeto, a Constituição Federal determina que o direito à convivência familiar e pleno desenvolvimento físico e mental da criança e do adolescente sejam deveres dos pais, do Estado e de toda a sociedade. Nesse contexto, questiona-se sobre a aplicação da responsabilidade civil aos casos de abandono afetivo.

PALAVRAS-CHAVE: Abandono afetivo. Dano moral. Ato ilícito. Responsabilidade Civil.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 FAMÍLIA E AFETO. 2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONCEITO DE FAMÍLIA. 2.2 A ATUAL VALORIZAÇÃO DA AFETIVIDADE NA RELAÇÃO ENTRE PAIS E FILHOS. 2.3 NORMAS PROTETIVAS DO AFETO NAS RELAÇÕES ENTRE PAIS E FILHOS. 3 RESPONSABILIDADE CIVIL. 3.1 CONCEITO DE RESPONSABILIDADE CIVIL. 3.2 APLICAÇÃO NOS CASOS DE ABANDONO AFETIVO. 4 POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS. 4.1 NA DOUTRINA. 4.2 JURISPRUDÊNCIA. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS. ANEXOS.


1 INTRODUÇÃO

O conceito de família, bem como sua estrutura e seus princípios norteadores evoluíram ao longo dos séculos e permanece em modificação diante do constante movimento da sociedade.  Assim, permanente é o debate sobre temas relativos ao Direito de Família, isso porque esta é a instituição basilar do grupo social, sendo o primeiro grupo com o qual o ser individual tem contato. É no convívio familiar que o indivíduo conhece os limites, a relação com o outro e tem percepção da convivência social necessária ao ser humano, é nesse pequeno grupo social que a criança desenvolve sua personalidade.

Tão valiosa é a existência da família que a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto normas específicas para proteção da família, além de princípios gerais também aplicáveis ao Direito de Família. Dentre os princípios específicos, encontra-se o princípio da afetividade.  A afetividade modificou a idéia de família como instituição formada por pai, mãe e filho, possuindo aquele o pátrio poder, a prerrogativa de ser dono de sua família. A família tornou-se plural, ligada essencialmente pelo afeto.

Nesse contexto surge a discussão acerca da possibilidade de responsabilização civil daquele que priva seu filho de afeto, não lhe oferece a dignidade preconizada constitucionalmente, ofendendo a saúde psicológica da criança ou adolescente. Discute-se sobre a importância do convívio familiar para formação da personalidade do indivíduo e se a ausência dessa relação em razão do abando por um dos pais é passível de responsabilização.

Alguns entendem que seria conferir um valor pecuniário ao amor e que não cabe ao direito obrigar que alguém ame outrem. Em sentido contrário, outra parte de doutrinadores entende que a responsabilidade civil tem hoje caráter pedagógico, não apenas compensador, pois é certo que a quantia em dinheiro não compensaria os danos ocasionados em razão do abandono.

A questão já chega ao Poder Judiciário e não há consenso dentre os julgadores, havendo decisões reconhecendo a responsabilidade civil e outras negando. Portanto, o debate ocorre no presente momento, está sendo construída uma nova visão no que tange o Direito de Família, a responsabilidade civil e, precipuamente, a importância da presença familiar para desenvolvimento da criança, bem como a abrangência da expressão convívio familiar.

Diante do exposto, a pesquisa que fundamenta este trabalho monográfico se propõe a analisar a possibilidade de aplicação da responsabilidade civil nos casos de abandono afetivo, centralizando-se nas seguintes questões de pesquisa: a) Existem normas assecuratórias do afeto no ordenamento brasileiro vigente?; b) Há preenchimento dos pressupostos para aplicação da responsabilidade civil?; c) Quais os argumentos favoráveis à responsabilização civil por abandono afetivo na doutrina? d) Qual a posição predominante nos Tribunais? e) Quais os fundamentos das decisões judiciais?

A partir das questões que nortearam a pesquisa realizada, o objetivo geral deste trabalho monográfico é analisar as visões doutrinárias e posições jurisprudenciais acerca da responsabilidade civil por abandono afetivo, enfatizando argumentos que sustentam cada posicionamento. Entre os objetivos específicos, a pesquisa se propõe a refletir sobre a possível aplicação da responsabilidade civil em decorrência de abandono moral; expor aspectos históricos da família; elucidar a importância atual do afeto nas relações familiares; abordar os pressupostos da responsabilidade civil; verificar o enquadramento da conduta de abandono nos elementos da responsabilidade civil; analisar os argumentos favoráveis na doutrina; observar os posicionamentos jurisdicionais; e refletir sobre a existência de obrigação de indenizar em razão do abandono moral.

No que tange à relevância do estudo proposto, ressalta-se que estudar a possibilidade de aplicação da responsabilidade civil nos casos de abandono afetivo vai além de questões jurídicas, pois envolve aspectos sociais, tendo em vista a influência que a família exerce sobre a sociedade, constituindo-se em primeiro grupo social com o qual o homem tem contato, local em que desenvolve sua personalidade e conhece os valores e o modo como deve conviver com os demais integrantes da sociedade.

A partir desse entendimento, a pesquisa realizada é uma importante oportunidade para estimular a reflexão sobre o Direito como ciência social que nasce com o escopo de organizar a convivência social. Ademais, revela o reconhecimento do afeto e da família como instrumento para inicial desenvolvimento do ser humano, devendo ser observada não apenas sob a égide de interesses privados, mas, especialmente, do interesse público que a instituição provoca.

Por outro lado, ao destacar a importância da família e do afeto questiona-se a necessidade ou não de se responsabilizar os pais que se ausentam da relação familiar deixando de orientar seus filhos e de oferecer-lhes condições adequadas para o desenvolvimento da sua personalidade, bem como para usufruir dos direitos fundamentais que possui. A responsabilidade civil, para alguns, aparece como meio eficaz para coibir a conduta de abandono e evitar que maior número de crianças e adolescente fique sem orientação correta de como viver em sociedade.

O estudo ganha maior relevância por, chegarem ao Judiciário, questões relacionadas ao tema e ainda não haver consenso quanto à aplicação ou não do instituto sendo necessárias pesquisas que exponham os debates e analise os aspectos principais a fim de fornecer material para a formação de opinião acerca do assunto.

Para elaboração deste trabalho monográfico, realizou-se um estudo de natureza qualitativa, utilizando-se de uma pesquisa de nível exploratório com o uso de fontes eminentemente bibliográficas. A pesquisa qualitativa parte de uma questão mais ampla que se define ao longo do estudo, sem necessidade da elaboração de hipóteses.

Com a pesquisa bibliográfica, que abrange a análise da literatura selecionada, pode-se estruturar a monografia em cinco partes. Inicialmente, além desta introdução, aborda-se evolução da família e inclusão do afeto em sua estrutura, posteriormente, apresentam-se aspectos gerais da responsabilidade civil bem como a observação dos seus elementos em conjunto com o abandono afetivo para que, em seguida, analisem-se as posições doutrinárias e jurisprudenciais. Por fim, encontram-se as conclusões, seguidas das referências.

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2. FAMÍLIA E AFETO

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONCEITO DE FAMÍLIA

Com o decorrer do tempo, os homens evoluem e alteram sua forma de pensar e de se relacionar, em razão disso, modificam seu modo de constituírem laços e formarem uma família. Nesse contexto, o que se entende por família hoje, há algumas décadas possuía outros significados para o Direito, que se viu, de certa forma, obrigado a adequar-se à realidade existente no meio social, modificando suas regras sobre a família e o próprio conceito desta. Assim, asseveram Cristiano Farias e Nelson Rosenvald:

Com efeito, a família tem o seu quadro evolutivo atrelado ao próprio avanço do homem e da sociedade, mutável de acordo com as novas conquistas da humanidade e descobertas científicas, não sendo crível, nem admissível, que esteja submetida a idéias estáticas, presas a valores pertencentes a um passado distante. [1]

Importante notar que esse dinamismo inerente à sociedade não adormece, portanto, no futuro, a visão atual de família e a interpretação de suas normas não serão iguais às do momento atual, pois a sociedade permanece em evolução e exigindo do Direito o regramento de novos conflitos. Nesse sentido, continuam os autores alhures citados, “a família, enfim, não traz consigo a pretensão da inalterabilidade. Ao revés, seus elementos fundantes variam de acordo com os valores ideais predominantes em cada momento histórico.” [2]

Conforme Ana Carolina Brochado Teixeira, “os contornos da família de hoje não são os mesmos de outrora. Antes hierarquizada, matrimonializada e masculinizada, passou a ser mais democrática, humana, igual e plural.” [3] Portanto, na história evolutiva da família, “toma-se como ponto de partida o modelo patriarcal, hierarquizado e transpessoal da família.” [4] A família era inicialmente centrada no homem, que detinha todo o poder sobre os demais membros do grupo familiar e exercia de modo exclusivo o pátrio poder.  Esposa e filhos eram propriedades do homem, sujeitos a toda e qualquer vontade deste, havia uma verticalidade, sobrepondo-se a vontade do homem sobre a dos demais membros da família. Ademais, somente por meio do casamento constituia-se uma família, o ambiente familiar era necessariamente matrimonializado. E ainda, havia uma feição econômica em torno da família, vista como unidade produtiva, unida por laços eminentemente patrimoniais, cujo fim era a formação e perpetuação do patrimônio. [5] Portanto, a família de outrora representava os valores presentes na sociedade de seu tempo, quais sejam, casamento, patrimônio, hierarquia masculina e a própria família como instituto em si.

No entanto, novos valores passaram a imperar no meio social, a mulher conquistou espaço maior do que lhe era conferido. Em 1962, a Lei nº 4.121 deu o primeiro passo para modificar o ordenamento brasileiro, em especial o Código Civil de 1916, a fim de superar a idéia de ser o homem o único detentor do pátrio poder, como acima mencionado, proprietário da família. A lei em comento estabeleceu que a viúva, ainda que contraísse novo casamento, seria a titular e poderia exercer o poder familiar, rechaçou, assim, a situação em que os filhos da viúva que casasse novamente ficariam sob tutela do novo marido, fato indesejável, haja vista que a mãe, defensora de seus filhos, não possuía o direito de proteger os interesses destes, por vezes, opostos aos anseios do marido, detentor de poder sobre eles. Além desse avanço, a mesma lei ainda estabeleceu que a mulher não se tornaria relativamente incapaz por ocorrência do casamento, como vigia na época. [6] Portanto, para Maria Isabel Pereira da Costa, “a lei nº 4.121/62 marcou uma nova fase no Direito de Família – o início da família tendente à igualitária.” [7]

Porém, foi a Constituição Federal de 1988 que “estabeleceu bases sólidas para criar a família igualitária. Revoga tacitamente todos os artigos do Código Civil e da legislação ordinária que contrariem o princípio da igualdade constitucional entre os sexos e/ou cônjuges.” [8] A Lei Maior de 1988, chamada de Constituição Cidadã, expressou a democratização da sociedade brasileira - o que influiu também nas relações familiares - e instituiu como princípios fundamentais a igualdade e a dignidade da pessoa humana. Assim, a família deixou de ter caráter institucional para ter caráter instrumental, melhor dizendo, passou a ser meio para realizar concretamente a dignidade da pessoa humana com vivência da igualdade e solidariedade entre seus membros, ao invés de ser o próprio fim, justificada em si mesma, devendo ser protegida acima das pessoas que a integram. [9] Com isso, a família atualmente pode ser constituída não apenas por meio do casamento e não envolve apenas laços biológicos, mas também afetivos, não é mais possível distinguir filhos oriundos da relação matrimonial de filhos oriundos de outras relações, por exemplo, posto que a valorização atual é da concretização da dignidade da pessoa humana e da igualdade dos membros desse grupo familiar.

Diante dessa constante evolução, não é possível determinar um conceito fixo para família, nem mesmo sob uma única ótica e amplitude. Segundo Andréa Aldrovandi e Rafael Lazzarotto Somioni[10], as formas de organização da sociedade correspondem de modo idêntico às formas de organização da família, assim, conforme o contexto histórico a família possuirá identidades diversas, tais como religiosa, biológica, afetiva, econômica, política, dentre outras. Desse modo, inicialmente, em análise etimológica do vocábulo, família se relacionava com aspectos patrimoniais, referindo-se à propriedade de escravos, enquanto hoje possui conotação múltipla e plural.[11]

Maria Isabel Pereira da Costa [12] bem explica os variados conceitos de família: em sentido amplo, a família envolve todos os descendentes de um ancestral comum, consangüíneos ou afins; o sentido restrito, baseado no art. 1592 do Código Civil brasileiro, considera família todos aqueles que se unem por consanguinidade em linha reta e colateral até o 4º grau; e, seria a família formada apenas por pais e filhos, em sentido restritíssimo.

A autora apresenta, ainda, o conceito de ordem histórico-filosófica de João de Matos Antunes Varela:

A família é o grupo social primário mais importante que integra a estrutura do Estado. Como sociedade natural, correspondente a uma profunda e transcendente exigência do ser humano, a família antecede nas suas origens o próprio Estado. Antes de se organizar politicamente através do Estado, os povos mais antigos viveram em família. [13]

No mesmo sentido, José Russo[14] entende ser a família uma realidade sociológica, modificando-se ao longo do tempo. Para o autor, a família patriarcal romana era o grupo de pessoas submetidas à autoridade absoluta de um chefe ou o grupo de famílias submetidas a uma autoridade única; a família comunitária medieval formava-se somente por meio do casamento, com grande influência religiosa, e visava à produção doméstica; por fim, conceitua a família nuclear, reduzida a pais e filhos, haja vista a Revolução Industrial, a mudança para a cidade e desvalorização da mão-de-obra.

Atualmente, por influência dos ideais humanitários e igualitários, preservados na Magna Carta de 1988, a família possui conceito plural, múltiplo, como acima mencionado. Vários são os vínculos que unem os membros do grupo familiar, biológico ou afetivo, e diversas são as formas de constituir família, por meio de casamento, união estável ou até mesmo família monoparental. O ponto central para formação da família moderna é o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana, vista como o ambiente indispensável para o desenvolvimento da personalidade dos cidadãos, não podendo o ser humano abrir mão dessa convivência no início de sua existência. [15]

Corroborando o exposto, Cristiano Chaves de Farias e de Nelson Rosenvald conceituam a família atual:

Sendo assim, a família é, inegavelmente, a instituição social primária, podendo ser considerada um regime de relações interpessoais e sociais, com ou sem a presença da sexualidade humana, com o desiderato de colaborar para a realização das pessoas humanas que compõem determinado núcleo. [16]

Com caráter instrumental que possui hoje, a família se constitui como “núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e de promoção da dignidade de seus integrantes” [17], somente assim devendo ser tutelada.

2.2. A ATUAL VALORIZAÇÃO DA AFETIVIDADE NA RELAÇÃO ENTRE PAIS E FILHOS

Observa-se que o pilar da família atual é o afeto, haja vista que não há como atingir o pleno desenvolvimento da personalidade do ser, com respeito a sua dignidade, fazendo uso da autoridade de um dos membros que subjuga os demais, anula suas opiniões e impede seu desenvolvimento pessoal.

Sem dúvidas, é na família que se tem a primeira visão do mundo, das obrigações como cidadão, do respeito por si e pelos outros. As experiências que se tem no núcleo familiar definem o modo como a pessoa irá conviver na sociedade, isto é, os principais conceitos do ser nascem primeiro na família para depois ganhar a sociedade de modo que a personalidade da vida adulta depende dos primeiros anos de vida da pessoa. Essas orientações e experiências ganham especial relevo na relação entre pais e filhos, em razão da proximidade do vínculo existente, como bem afirma Rodrigo da Cunha Pereira: “O que é essencial para a formação do ser, para torná-lo sujeito e capaz de estabelecer laço social, é que alguém ocupe, em seu imaginário, o lugar simbólico de pai e de mãe.” [18]

Além da proximidade do vínculo existente entre os filhos e seus pais, estes são responsáveis por criarem pessoas com autonomia, capazes de responder por seus atos, o que não é alcançado apenas com o sustento e a prestação de alimentos. [19] Conforme Gustavo Ferraz de Campos Mônaco e Maria Luiza Ferraz de Campos, a responsabilidade dos pais para com os filhos significa fazer-se presente e desempenhar funções, isto é:

cuidar, prover e zelar pelo desenvolvimento biopsicossocial e emocional da prole, promovendo os cuidados de sobrevivência, saúde, educação, desenvolvimento cultural, intelectual e esportivo, além de subjetivá-lo, ou seja, transformar um ser, a princípio regido por respostas instintivas, em um ser com características únicas e diferenciadas que promovem sua individualidade e dignidade. [20]

Portanto, o afeto é o ponto central para constituição e desenvolvimento salutar de uma família, em especial dos filhos, que necessitam de um relacionamento afetivo com os pais para o desenvolvimento sadio da sua personalidade.  O afeto recebido dos pais proporciona às crianças uma compreensão melhor dos problemas modernos, maior capacidade de superação frente aos obstáculos e equilíbrio emocional. As experiências vividas no início da vida irão determinar como o ser irá se comportar em sociedade, se agressivamente ou respeitando os demais integrantes do grupo social.

Nesse sentido, Maria Isabel Pereira da Costa afirma que “a principal função da família é, sem dúvida, a de criar as condições para o desenvolvimento da personalidade dos filhos a fim de que se tornem dignos integrantes da sociedade, sabendo respeitar a dignidade de todos.” [21] Percebe-se, assim, o caráter instrumental da família, visto que a família não se justifica mais por ser apenas um instituto em si mesmo, mas, somente devendo ser compreendida e protegida ao passo que, por meio do afeto, representa um ambiente adequado para desenvolvimento de seres aptos a viverem em sociedade. A autora é ainda mais incisiva ao afirmar que “ensinamentos dessa natureza não se fazem com truculência nem com omissão de carinho ou afeto” [22] e conclui que “o afeto é um dos elementos indispensáveis para seu desenvolvimento saudável como cidadão e como membro de uma sociedade democrática” [23].

Sendo assim, torna-se inaceitável uma relação entre pais e filhos que não seja fundada no afeto, somente por meio deste é possível a orientação de como os filhos devem se comportar em sociedade, a demonstração das condutas a serem seguidas e como se desenvolve um relacionamento com os membros da sociedade. Nas palavras de Gustavo Ferras de Campos Mônaco e de Maria Luiza Ferraz de Campos, ser pai ou mãe significa ocupar lugares na “rede de relações familiares, promovendo assim o desenvolvimento e o cuidado efetivo com o seu filho” [24], quer dizer, é necessário estar presente na vida da criança, conduzindo-a no desenvolvimento de sua dignidade.

Infere-se, portanto, que a relação entre pais e filhos, além de jurídica, é, sobretudo, fática, advém diretamente da reprodução e torna os pais responsáveis por seus filhos de forma “incondicional, ampla e irrestrita” [25]. Essa responsabilidade esta intimamente ligada com o poder familiar e deve existir de modo contínuo e perene enquanto os filhos se encontrarem em situação de dependência dos pais. Normalmente, o rompimento dessa dependência somente ocorre com a aquisição da plena capacidade para todos os atos da vida civil, após o decorrer do tempo em que se supõe que o indivíduo possui compreensão total de seus atos e dos efeitos destes. O poder familiar não pode ser renunciado, constitui-se em um poder-dever decorrente da situação fática de ser pai ou mãe, é um “poder jurídico, pois tem caráter de múnus, de feixe de poderes e deveres atribuídos pelo Estado para serem exercidos em prol unicamente dos filhos” [26], existindo mesmo após o rompimento do vínculo matrimonial [27].

Sabe-se, porém, que há uma distinção entre o dever-ser e o ser [28], por isso, ainda é possível perceber na sociedade o descaso de alguns pais e mães em relação a seus filhos, além do abandono material, é presente o abandono afetivo, aspecto este, como já visto, a ser perseguido por todo grupo familiar, em especial, com relação aos filhos, dependentes desse sentimento para pleno desenvolvimento de sua dignidade e personalidade. Há significativo número de pais que não desejam qualquer contato com seus filhos, abrem mão do direito à convivência – direito este fundamental da criança e irrenunciável – e permanecem reproduzindo-se sem arcar com o poder-dever de se fazer presente na vida das crianças que gerou. As consequências sociais são prejudiciais, tendo em vista o aumento de crianças que vivem nas ruas ou daquelas que, apesar de freqüentarem boas escolas, alimentarem-se dignamente e viverem em uma residência confortável, desconhecem o que significa amor e afeto, não aprenderam a se relacionar com os demais e vivem ou retraídas ou conhecendo apenas valores materiais, nesse ponto, destaca-se que pais que convivem com seus filhos constantemente também podem negar-lhes afeto, por exemplo, com indiferença e insensibilidade [29].

Como bem afirma Maria do Rosário citada por Maria Isabel Pereira da Costa, “não basta por um ser biológico no mundo, é fundamental complementar a sua educação com a ambiência, o aconchego, o carinho e o afeto indispensáveis ao ser humano.” [30] É necessário que os pais atuem com responsabilidade na construção biopsíquica da criança, desde o momento da concepção, seja esta desejada ou não [31]

O importante é notar que, no dizer de Cristiano Chaves de Farias e de Nelson Rosenvald:

 o afeto caracteriza a entidade familiar como uma verdadeira rede de solidariedade. Constituída para o desenvolvimento da pessoa, não se permitindo que uma delas possa violar a natural confiança depositada por outra, consistente em ver assegurada a dignidade humana, assegurada constitucionalmente. [32]

E que, “é necessário preencher uma demanda de amor e afeto que é inerente ao ser humano, principalmente daquele que está em fase de crescimento, de firmar seus valores, de desenvolvimento da sua personalidade,” [33] a paternidade e a maternidade devem ser exercidas com tempo, dedicação, disponibilidade e trabalho.  Portanto, o afeto é o pilar da relação entre pais e filhos, aspecto esse reconhecido fática e juridicamente como meio adequado para que a família seja instrumento de desenvolvimento e preservação da dignidade humana, sendo ambiente de garantia dos direitos básicos do ser humano, tais como educação, convivência familiar, saúde física e mental.

2.3.  NORMAS PROTETIVAS DO AFETO NAS RELAÇÕES ENTRE PAIS E FILHOS

O Direito, como ciência social que é, tem como função primordial regular fatos sociais [34], as situações mais relevantes para a sociedade e, ainda, induz determinadas ações para o benefício de todo o grupo social, assim, cada indivíduo abre mão de algumas condutas prejudiciais aos direitos dos demais em benefício do interesse público. Logo, diante da importância que o afeto representa hoje nas relações familiares, torna-se indispensável conhecer as normas, existentes no ordenamento jurídico brasileiro, destinadas à proteção do afeto.

Há, atualmente, um “fenômeno de constitucionalização ou personalização do Direito Civil, através do qual a pessoa humana assumiu o centro da ordem jurídica” [35]. Assim, a Constituição Federal, em seu artigo 227 impõe ao Estado, à família e à sociedade em geral o dever de garantir às crianças os seguintes direitos fundamentais:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.[36]

Nesse artigo, o legislador constituinte desejou garantir à criança e ao adolescente, de forma específica e prioritária, direitos já assegurados em seu artigo 5º, além de acrescentar outros direitos. Como bem leciona Maria Isabel Pereira da Costa:

 essa prioridade se traduz no dever de todos de atender o melhor interesse da criança e do adolescente, o que se constitui em um dos princípios constitucionais que garantem um direito fundamental da criança e do adolescente. [37]

Assim, deve ser realizado cada um desses direitos fundamentais dos filhos. O direito à vida exige uma vida digna, com desenvolvimento da personalidade do ser em toda a sua plenitude, a dignidade é entendida aqui não apenas como um valor inerente ao ser humano, mas como uma construção contínua a partir do relacionamento com o outro, desenvolvendo sua identidade e personalidade. A saúde envolve não só a saúde física, mas também a psicológica, somente podendo ser assegurada em um ambiente em que prevalece o afeto. Do mesmo modo que a educação deve ser entendida de modo amplo, não se restringido apenas “ao ensino pedagógico, mas antes de tudo abarcar fatores que contribuam para a sua cultura geral, com o intuito de permitir a conformação de sua índole e de seu sentimento de responsabilidade, tudo com vistas a transformar a criança em um membro útil da sociedade.” [38]

O artigo em comento determina ainda o direito à convivência familiar, que representa uma experiência essencial para a efetivação da dignidade humana - norma-fim de todo o ordenamento jurídico – e para a construção da personalidade. A convivência familiar ou o direito à experiência familiar é, para Ana Carolina Brochado Teixeira, um “ato jurídico dialético, dialógico, que tem suas bases fincadas na alteridade e na percepção da própria importância para o outro” [39].

Ademais, o artigo 229, ainda, da Magna Carta afirma que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores” [40]. A criação, segundo Taísa Maria Macena Lima:

está diretamente ligada ao suprimento das necessidades biopsíquicas do menor, o que a atrela à assistência, ou seja, à satisfação das demandas básicas, tais como os cuidados na enfermidade, a orientação moral, o apoio psicológico, as manifestações de afeto, o vestir, o abrigar, o alimentar, o acompanhar física e espiritualmente. [41]

Normas infraconstitucionais também visam à proteção desses direitos já garantidos constitucionalmente a fim de efetivar o Texto Maior do ordenamento jurídico brasileiro. O Código Civil [42], nos seus artigos 1.566, IV, 1.566, 1.567 e 1.579, ao tratar da relação conjugal, estabelece o dever dos cônjuges o “sustento, a guarda e educação” dos filhos, determinando que a relação conjugal seja conduzida de modo a realizar os interesses de ambos nos cônjuges e dos filhos, ressaltando que mesmo após o rompimento do vínculo conjugal, permanecem os deveres para com os filhos e inalteradas os vínculos paterno-filiais.

No artigo 1.634, incisos I e II, o Código Civil[43] reafirma a valorização à companhia familiar, atribuindo aos pais o dever de ter os filhos em sua companhia, além de educá-los e criá-los[44]: Art. 1.634 Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I – dirigir-lhes a criação e a educação; II – tê-los em sua companhia e guarda.

O Estatuto da Criança e do Adolescente também apresenta normas protetivas do afeto, tais como os artigos 3º e 22:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 22 Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. [45]

Nota-se que a legislação vigente estabelece o direito-dever de fornecer afeto como elemento de formação da personalidade, isso porque o afeto é um dos elementos indispensáveis para desenvolvimento saudável do ser como cidadão e como integrante de uma sociedade democrática.[46] Como ressalta Sérgio Resende de Barros, “o lar sem afeto desmorona e nele a família se decompõe. Por isso, o direito ao afeto constitui – na escala da fundamentalidade – o primeiro dos direitos humanos operacionais da família”. [47] O autor destaca ainda que “o amor deve prevalecer, porque ele faz do indivíduo humano um ser humano” [48].

No mesmo sentido, Ana Carolina Brochado Teixeira afirma que:

poderíamos morrer ou enlouquecer se vivêssemos em uma comunidade na qual, sistematicamente, todos tivessem decidido não nos olhar jamais ou comportar-se como se não existíssemos... Não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. [49]

Diante disso, é que o Direito se propõe a estabelecer normas garantidoras do afeto, determinando que o poder familiar deva ser exercido continuamente, de forma perene enquanto os filhos dependerem dos pais e sempre no interesse daqueles, buscando a orientação para a vida em sociedade, a fim de desenvolver a personalidade e preservando a dignidade de crianças e adolescentes.

Como bem conclui Maria Isabel Pereira da Costa:

o tratamento carinhoso e respeitoso é, sem dúvida, o que melhor atende ao interesse da criança e do adolescente. Então, se faltar o carinho, o afeto e o respeito pela personalidade da criança, que está em fase de formação, se está negando a essa criança um direito fundamental protegido pela constituição. [50]

Assim, o direito ao afeto está positivado na Constituição Federal e em normas infraconstitucionais, sendo função de todos os membros da sociedade, dos pais primar pela efetivação dessas normas, as concretizando em suas relações diárias, e do Estado disponibilizando meios para a construção de ambientes saudáveis ao desenvolvimento do ser.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Amanda Oliveira Gonçalves. Responsabilidade civil dos pais nos casos de abandono afetivo dos filhos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3242, 17 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21799. Acesso em: 22 nov. 2024.

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