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A Constituição Federal brasileira e o mercosul

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3. A REVISÃO CONSTITUCIONAL

Em que pese a posição de alguns juristas brasileiros ao defenderem a interpretação extensiva do parágrafo único do artigo 4 º da Constituição brasileira, conseguindo enxergar em tal dispositivo o permissivo constitucional necessário à consolidação de uma ordem jurídica comunitária no âmbito do MERCOSUL, é, sobretudo, no campo econômico que a Carta Magna brasileira tem-se revelado disfuncional em relação ao pleno cumprimento dos objetivos traçados no artigo 1º do Tratado de Assunção. A revisão constitucional poderia dirigir-se, genericamente, a dois aspectos: rever o parágrafo integracionista para dar-lhe preeminência sobre as disposições que lhe são equivalentes; alterar o capítulo econômico, objetivando possibilitar concretamente uma interdependência ativa entre as economias dos países-membros do bloco. De um modo geral, poder-se-ia pensar na introdução de um artigo tratando da aplicabilidade direta no direito interno brasileiro das normas e tratados internacionais, bem como de dispositivos que resultem na aceitação inconteste de decisões, resoluções e laudos de órgãos supranacionais de caráter político (Conselho e Comissão) ou jurídico (Tribunal de Justiça) do MERCOSUL. (ALMEIDA, in BILA N.º 09, p 18).

Ao se iniciar o processo da revisão constitucional de 1993/94, foi retomada a discussão da necessidade de inclusão de uma regra constitucional destinada a dar efetividade à diretriz de integração internacional do Brasil. A revisão, no entanto, não se viabilizou e a reforma somente se iniciou em 1995, quando o debate especificamente voltado ao tema da integração mereceu algum destaque.

Foi proposta no Congresso Nacional uma emenda constitucional destinada a acrescentar dois novos parágrafos ao artigo 4º da Constituição, de modo a possibilitar a vigência imediata de diretivas e decisões tomadas por organismos internacionais, desde que nos tratados que o Brasil tivesse firmado, ratificados pelo Congresso, fosse prevista a hipótese de tais decisões serem tomadas por órgãos supranacionais. Nesse caso, estas passariam a ter vigência imediata como um direito supranacional, independentemente do mecanismo tradicional da recepção.

O autor da proposta, deputado Adroaldo Streck (PSDB/RS), elaborou-a com base no artigo 8.º da Constituição de Portugal, justificando que os parágrafos propostos "objetivam ampliar o tratamento constitucional das relações internacionais da República Federativa do Brasil, em particular quanto à América Latina" (Proposta Revisional n.º 001079 - 1, de 02.12.93). O § 1.º da proposta reconhece a aplicabilidade do direito internacional, como parte integrante do direito brasileiro; o § 2.º acolhe e sintetiza o atual parágrafo único; o § 3.º concede vigência imediata na ordem interna brasileira às normas emanadas das organizações internacionais das quais o Brasil seja parte, desde que estabelecidas em tratado.

O artigo 4º recebeu o maior número de propostas revisionais (vinte e oito no total). No seu relatório sobre processo revisional, o deputado Nélson Jobim (PMDB/RS), considerando suas características comuns, dividiu as propostas encaminhadas em quatro grupos, a saber: a)o grupo formado pelas propostas que visam a solucionar os problemas que advirão da adesão do Brasil a uma comunidade de Estados, subdividido na corrente que defende que os atos de direito comunitário somente deverão vigorar no Brasil, após deliberação do Congresso Nacional, na corrente que propõe a formação de uma Comissão Mista congressual para examinar e acompanhar a implementação de todos os atos relativos à integração e na corrente que advoga a vigência imediata na ordem jurídica interna brasileira dos atos originários de organizações internacionais das quais o Brasil seja parte (na forma da proposta descrita no parágrafo anterior); b) o grupo composto pelas propostas revisionais que tencionam modificar o teor do parágrafo único do artigo 4º, de modo a ampliar o universo da integração, circunscrita aos Estados latino-americanos; c) o grupo composto das propostas que desautorizam o Brasil a reconhecer territórios ou governos de Estados ocupados por forças militares externas; d) por último, o grupo das propostas revisionais que visam a acrescentar novas disposições aos incisos do atual artigo 4º, tais como repúdio ao golpismo, à sabotagem, ao tráfico internacional de entorpecentes etc. Houve, ainda, propostas que atribuíam aos tratados e demais compromissos internacionais hierarquia superior às leis, bem como propostas que recomendavam a supressão do artigo 4º, por considerá-lo desnecessário e demagógico.

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O parecer do relator concluiu, com base na proposta revisional do deputado Streck, pela conveniência e oportunidade da inclusão de dois novos parágrafos ao referido artigo 4º da Constituição Brasileira, passando o atual parágrafo único a se constituir no § 3.º, nos termos do substitutivo proposto, com as seguintes alterações, destacadas em itálico:

"1º- As normas gerais ou comuns de Direito Internacional Público são parte integrante do ordenamento jurídico brasileiro.

2º- As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte vigoram na ordem interna, desde que expressamente estabelecido (sic) nos respectivos tratados constitutivos".

3º- mantém o teor do parágrafo único da atual Constituição.

Submetida à votação, a proposta recebeu 168 votos a favor e 144 contrários, verificando-se, ainda, 7 abstenções. Entretanto, por não ter atingido o quórum mínimo legal favorável de 293 votos, ou seja, maioria absoluta, a proposta foi considerada rejeitada pelo Congresso Nacional.


4. LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS À IMPLANTAÇÃO DO TRATADO DE ASSUNÇÃO

Diante de todo o exposto, pode-se inferir, em consonância com a análise feita por DALLARI (1997, p. 113), em artigo intitulado O Mercosul perante o Sistema Constitucional Brasileiro, que, em face do Tratado de Assunção e do MERCOSUL, o sistema constitucional brasileiro apresenta as seguintes deficiências, apontadas aqui genericamente:

a) Equipara o Tratado de Assunção, do ponto de vista jurídico, à generalidade dos tratados internacionais, tendo seu conteúdo, em virtude da jurisprudência, força equivalente à das leis ordinárias, podendo ser por elas modificado.

b) Não há clareza no texto constitucional para a definição acerca da cogência das decisões emanadas das instâncias deliberativas dos órgãos do MERCOSUL.

Em conferência proferida em maio de 1995, no XVI Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, Francisco Rezek afirmou que "o MERCOSUL não tem personalidade jurídica; não é uma organização, apenas um tratado em plena operação; tem um sistema de tomada de decisão fundado na reunião de autoridades dos quatro países". Na opinião de Dalmo DALLARI (op. cit., p. 114), mesmo com a entrada em vigor do Protocolo Adicional de Ouro Preto, que expressamente conferiu personalidade jurídica ao MERCOSUL, a situação que embasava essas avaliações não sofreu alteração substancial. Persiste a diretriz intergovernamental do Tratado de Assunção, de onde não emanam, como regra geral, normas jurídicas de Direito Internacional Público, dotadas de auto-aplicabilidade. As deliberações tomadas nas instâncias decisivas do MERCOSUL não se constituem, a rigor, em normas jurídicas em sentido estrito, mas em determinações políticas que condicionam os Estados-membros à promoção de medidas jurídicas necessárias à recepção no ordenamento jurídico interno das referidas decisões. A falta de obrigatoriedade das normas abre espaço para aumentar o campo da discricionariedade dos governos em cumprir as decisões do bloco apenas quando lhes forem interessantes, sob vários aspectos, podendo tais condutas atingir o próprio espírito do processo integracionista. O artigo 42 do Protocolo de Ouro Preto assim dispõe: "As normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no Artigo 2 deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país" (grifo nosso). São normas obrigatórias, porém não são autoaplicáveis. Entre os quatro integrantes do MERCOSUL, a situação de descompasso jurídico e de superficialidade dos debates em torno do tema básico da integração, no território brasileiro é especialmente preocupante, considerando-se o fato de ser o Brasil o maior e mais rico país do bloco. A inserção internacional do país, em bases sólidas e justas, é condição de crescimento e de competitividade num mundo marcado pela globalização e pela regionalização da economia. O fato econômico precisa ser demarcado e configurado pelo fato jurídico, imprimindo-se-lhe critérios de segurança e certeza. A alteração jurídica fundamental reside na mudança do texto constitucional dos dispositivos que ainda regulam um momento social, político e econômico anterior aos rumos que o mundo rapidamente tomou na última década. A ordem jurídica da atualidade revela-se comunitária, baseada nos princípios da aplicabilidade direta do direito proveniente dos órgãos comunitários nos ordenamentos internos nacionais; na primazia do direito comunitário sobre os direitos nacionais e na harmonização da interpretação e aplicação do direito comunitário nos Estados integrantes do bloco comunitário (OTERMIN, in BILA N. 8. Fonte: www.mre.gov.br 28/06/98). É nesse sentido que o MERCOSUL deve ser consolidado, caso se pretenda manter os propósitos da integração.

Sinteticamente, defendemos a alteração dos dispositivos constitucionais relativos à soberania e independência nacional, vinculando a expressão destes ao princípio geral estabelecido no parágrafo integracionista (art. 4º - parágrafo único), com precedência sobre as demais regras, reformulando e compatibilizando com a diretriz integracionista todos os demais dispositivos que, direta ou indiretamente, apresentem alguma ligação com o tema.


NOTAS

1. Estipulados pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, aberta à assinatura em 1969 e em vigor desde 27 de janeiro de 1980.

2. V. "Cuadernos Constitucionales". Universidade de Valência. Espanha.

3. Entretanto, convém lembrar a afirmativa de HESSE (1991, p. 21): "Se pretende preservar a força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela (a Constituição) incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária", ou seja, direitos fundamentais e deveres, divisão de poderes e possibilidade de concentração de poder, federalismo e unitarismo.

4. "Art. 177. Constituem monopólio da União:

(...)".

"Art. 178. A lei disporá sobre:

(...)

§ 1º. A ordenação de transporte internacional cumprirá os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.

§ 2º. Serão brasileiros os armadores, os proprietários, os comandantes e dois terços, pelo menos, dos tripulantes de embarcações nacionais.

§ 3º. A navegação de cabotagem e a interior são privativas de embarcações nacionais, salvo caso de necessidade pública, segundo dispuser a lei."

5. Apesar de encontrarmos referências no sentido de que a autoria do chamado parágrafo integracionista pertenceria a Franco Montoro- PMDB/SP, em entrevista pessoal que fizemos com o ex-senador Marcondes Gadelha PFL/PB, obtivemos a confirmação de ser de sua autoria a emenda que trata da integração, expressa no parágrafo único do art. 4º da Constituição Federal Brasileira.


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Sobre a autora
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa

professora de Direito da UFPB, João Pessoa (PB), mestra e doutoranda em Direito Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FEITOSA, Maria Luiza Pereira Alencar Mayer. A Constituição Federal brasileira e o mercosul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2192. Acesso em: 23 nov. 2024.

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