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Medida de segurança: evolução, reforma psiquiátrica e Lei n° 10.216/2001

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Analisam-se as diversas concepções sobre o “louco infrator” ao longo do tempo, bem como o processo gradual de transformação da medida de segurança até a chegada da Lei nº 10.216/2001, considerada uma conquista da reforma psiquiátrica.

RESUMO: Através deste trabalho, busca-se analisar a evolução e a aplicação da medida de segurança no Brasil. Para isso, contextualiza-se o tema com a exposição da relação entre a loucura e o crime, destacando-se as variáveis concepções sobre o “louco infrator” ao longo do tempo. Expõe-se, em seguida, o processo gradual de transformação da medida de segurança até a chegada da Lei 10.216 de 2001, considerada uma conquista da Reforma Psiquiátrica.

PALAVRAS-CHAVE: Medida de segurança. Aplicação. Loucura. Transformação. Reforma Psiquiátrica.


1  Introdução

A busca de uma nova análise a respeito das medidas de segurança, direcionada pelas vertentes idealizadoras da Reforma Psiquiátrica, é o que mobiliza o aprofundamento no que circunda o “doente mental infrator”.

Verifica-se um estudo por meio de uma pesquisa bibliográfica sobre a inserção da Psiquiatria na esfera jurídica, a fim de entender crimes antes incompreensíveis pelos juristas, devido ao modo de execução marcado pela violação de valores que deveriam ser intrínsecos à pessoa humana.

Sendo assim, vários estudiosos passam a buscar um entrelaçamento entre o campo da loucura e da criminologia, com diversas teses sobre o referido tema. Obteve-se a constatação de heranças advindas de toda essa teorização acerca do crime versus loucura, refletindo no tratamento adotado aos doentes mentais da atualidade. É por conta da crença na impossibilidade de reversão da debilidade mental, um dos legados do estudo histórico da loucura, que se tem a aplicação da medida de segurança detendo cunho preventivo.

Há a visualização do progresso histórico da medida de segurança, com seus fundamentos e sua execução, fazendo perceber que a atual forma de aplicação dessa sanção penal vem a ser insuficiente. O que o Código Penal de 1940 erroneamente toma por base, ao adotar a sanção de caráter essencialmente preventivo, é apenas a proteção da sociedade. De tal modo, não toma em consideração que o doente mental é também pessoa humana, digna de respeito e atenção.

Sendo assim, o que se propõe é uma nova análise da medida de segurança consubstanciada com as ideias da Reforma Psiquiátrica, que traz enfoque terapêutico e humanitário, oferecendo possibilidades de reinserção do inimputável ou semi- inimputável ao seio da comunidade. Ideias estas, fortificadas com o advento da Lei 10.216 de 2001, que possibilitam um tratamento condizente a necessária dignidade dos doentes mentais.


2  Crime x loucura: evolução histórica

No final do século XIX e início do século XX ocorreu notório crescimento da criminalidade nos maiores centros urbanos do mundo. Paralelamente a isto, o fenômeno da reincidência também ganhou destaque.

Segundo Erving Goffman, em sua obra de 2007, o principal motivo dessas mudanças tem relação com o confinamento. Caso um indivíduo ficasse internado por um longo período, quando o mesmo retornasse ao convívio social poderia ser acometido pelo denominado “desculturamento”, que consiste na “desacostumação” do indivíduo, incapacidade temporária de realizar atos meramente cotidianos.[1] Outros fatores, como a marginalização de pessoas que já haviam sido presas e as desigualdades econômicas, também foram mencionados. Por conta disso, criou-se a visão do crime como hábito e do criminoso como tipo social, sendo considerado uma anomalia da sociedade.

Assim, começaram grandes discussões entre a psiquiatria e a antropologia criminal. A primeira acreditava no crime como uma doença, enfermidade incurável intrínseca do sujeito criminoso. A segunda defendia a ideia do crime-atributo[2]. Não obstante, havia também grandes embates entre médicos e antropólogos de um lado, e juízes e outros operadores do direito do outro. Tais embates contribuíram significativamente para o surgimento dos manicômios judiciários e institucionalização da medida de segurança.

Analisando brevemente o percurso das tentativas de conceituação e qualificação do criminoso, nota-se que as primeiras participações de médicos (alienistas) na área criminal ocorreram na França, por conta de pedidos dos juízes, com o intuito de desvendar crimes incompreensíveis pelo judiciário. Eram crimes cometidos sem motivação aparente, infringindo valores inerentes à condição humana e, frequentemente, marcados pela aguda frieza do agente.

Os médicos franceses, desta forma, formularam a primeira conceituação desses criminosos, fundada na ideia da “monomania raciocinante”. Assim preceitua Sérgio Carrara:

 [...] o mal poderia perturbar apenas a faculdade do “afeto” ou do “sentimento” – “monomania raciocinante” – caracterizando indivíduos que, apesar de lúcidos e inteligentes, apresentavam “distúrbios de caráter ou do senso moral”; indivíduos absolutamente maldosos, perversos, insensíveis, cruéis, refratários a qualquer admoestação ou aprendizado do bem. Com a monomania raciocinante dos franceses, identificou-se o que, entre os ingleses, foi chamado de “loucura moral” (moral insanity), denominação que esclarece ainda melhor o tipo de comportamento codificado por tal figura.[3]

Michel Foucault também contribuiu para a evolução histórica do estudo do criminoso, com a ideia dos “anormais”. Os anormais, segundo ele, poderiam ser de três espécies: o mostro humano, o indivíduo a ser corrigido e a criança masturbadora. O “monstro humano” é aquele que constitui “[...] em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza”[4]. É uma combinação do impossível com o proibido, sendo, portanto, ininteligível. É, no fundo, um monstro banalizado, cotidiano, que durante boa parte da Era Medieval serviu como modelo dos pequenos desvios de conduta.

O “indivíduo a ser corrigido” é característico dos séculos XVII e XVIII. Enquanto o monstro era visto como uma exceção, o indivíduo a ser corrigido era um fenômeno comum, naturalmente incorrigível. Assim, requeria a criação de métodos reeducativos, um tipo de “sobrecorreção” que possibilitasse ao sujeito a vida em sociedade. É a partir da figura do “indivíduo a ser corrigido” que surgiu, posteriormente, a ciência do crime ou criminologia.

Já a “criança masturbadora”, ou “onanista”, marca o fim do século XVIII e início do século XIX e abrange apenas a família burguesa. Tal figura tinha relação com um mecanismo de poder responsável por esconder a masturbação. De acordo com o ideário médico burguês vitoriano, qualquer debilidade física, patologia mental ou vício moral de uma pessoa seria oriundo da prática do onanismo.[5]

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Depois, com a formação dos primeiros conceitos de criminologia, deixou-se de lado a figura do anormal, substituída pela figura do degenerado. O defensor desta última, Bénédict-Augustin Morel, acreditava que o sujeito criminoso era portador de uma espécie de doença hereditária. Desse modo, a existência de qualquer anormalidade advinha de uma fonte orgânica, natural. Tal doença poderia ser facilmente identificada por características anatômicas incomuns do sujeito, como lábios leporinos e dedos extranumerários, que representavam a externalização do referido mal. Os comportamentos divergentes, classificados por tal conceituação, puderam ser divididos em grupos como predispostos, impulsivos, suicidas, perversos sexuais, excêntricos, cretinos, etc.

Os seguidores de Morel modificaram a figura da degeneração adaptando-a às ideias evolucionistas de Darwin, evidenciando ainda mais a organicidade do crime. Este seria, portanto, um problema bem mais médico e biológico do que moral.

Posteriormente, com a ascensão da Escola Positiva, mais precisamente de uma de suas subdivisões, a Escola Antropológica, representada principalmente por Henrico Ferri e Cesare Lombroso, surgiu a tese do “criminoso nato”. Através de estudos de cranioscopia e antropometria, os membros da Escola Antropológica identificaram nos criminosos um tipo inerente à sua essência, determinante da sua criminalidade. Atestaram que tais sujeitos possuíam características anatômicas (ausência de pêlos, por exemplo), psicológicas (vaidade, prodigalidade), fisiológicas (analgesia), além de características fisionômicas (olhar impaciente dos ladrões), próprias de quem comete crimes. O criminoso seria, então, uma figura não evoluída da humanidade, um fóssil vivo, inferior, um tipo de monstro detentor da selvageria de nossos antepassados. Daí o motivo do mau comportamento, totalmente diferente do “homem comum”. [6]

Com a eclosão das ideais da Escola Antropológica, iniciou-se um confronto de competências entre juristas e médicos/antropólogos. O motivo dessa incompatibilidade consistia na oposição das ideias do criminoso nato versus a do livre arbítrio. A ideia do criminoso nato contestou institutos basilares do Direito, como a prescrição da pena de acordo com a gravidade do crime (e não baseado no criminoso), a obrigatoriedade de lei anterior e a própria prática do crime como condição de aplicação de uma pena. Isso porque os discípulos de Lombroso afirmavam que com a simples detectação de tendência do criminoso nato, este já poderia ser submetido a uma sanção, visando, desta forma, o resguardo da sociedade. Sendo o criminoso uma forma humana não evoluída, não seria este um digno detentor de direitos inerentes à pessoa.

Os mencionados ideais influenciaram diretamente no tratamento daqueles considerados “loucos”, vez que tanto as ideias lombrosianas quanto o fenômeno da degeneração e da monomania vulnerabilizaram o propósito unicamente curativo do tratamento asilar. Quanto mais biodeterministas as teorias sobre o crime, mais nítida ficava a impossibilidade de cura dos indivíduos infratores.

Nasce assim, a atual dupla finalidade da internação em estabelecimentos psiquiátricos. De um lado, a tentativa de tratamento, de cunho notoriamente humanitário e, do outro, a detenção, através da clausura, de indivíduos vestigiosamente perigosos, a fim de proteger a sociedade contra eles.

Vale ressaltar que as teorias de Ferri e Lombroso, assim como as demais, sucumbiram com a chegada do século XX, enfraquecidas por novas teorias antropológicas e sociológicas. Entretanto, foram de grande influência para a organização do tratamento aos criminosos “loucos”, bem como para a evolução do instituto da medida de segurança, que mesmo nos dias atuais mostra-se tocada por teorias antigas.


3  O desenvolvimento da medida de segurança no Brasil

Muito antes da denominação “medida de segurança”, os Códigos Penais brasileiros já versavam sobre métodos de prevenção voltados aos casos de inexistência de responsabilidade criminal pelos incapazes que ofereciam risco à comunidade caso fossem mantidos em liberdade. [7]

Já os intérpretes das Ordenações Filipinas lecionavam que os loucos, incapazes de dolo ou culpa, não poderiam ser considerados criminosos.

O Código Penal do Império brasileiro ditava que os loucos criminosos deveriam ser enviados às casas reservadas especialmente a eles, ou entregues às próprias famílias, cabendo ao juiz criminal a discricionaridade, de acordo com o que lhe parece mais conveniente, conforme ordenava o art.12 do referido Código.

A segurança social, no Código Penal de 1890, buscou ser protegida pelo art.29, copiando o mesmo sistema da legislação imperial.

Em 1893, surgiu o projeto Vieira de Araújo, defendendo que os alienados deveriam ser internados em hospícios penais ou em local reservado nos hospícios comuns, por período suficiente para sua cura.

Em 1913, o projeto Galdino Siqueira objetivava que os inimputáveis perigosos fossem internados em manicômio, ou em hospitais de alienados em local separado, podendo, em qualquer caso, voltar a esses estabelecimentos por ordem judicial.   

O projeto de Virgílio de Sá Pereira, de 1928, inova com o conceito de “imputabilidade restrita” e força o juiz a ordenar o internamento do réu absolvido por falta de imputabilidade ou por tê-la reduzida na época do cometimento do crime.

Somente com o projeto do Código Penal de 1938, de Alcântara Machado, que a medida de segurança começou a tomar a forma que tem hoje. Em relação à imputabilidade prevê duas possibilidades: uma determina a impossibilidade de aplicação de pena àquele que “devido ao estado de alienação mental, em que se encontre no momento do crime, for incapaz de compreender a criminalidade do fato ou de se determinar de acordo com essa apreciação”, sendo submetido apenas às medidas de segurança (art.15); a outra possibilidade determina que são sujeitos à pena reduzida e também às medidas de segurança aqueles que “devido a grave anomalia psíquica, de que não resulte alienação mental, tiver minorada sensivelmente, no momento do crime, a capacidade de compreender a criminalidade do fato ou de se determinar de acordo com essa apreciação” (art.16).

Sobre as sanções, separa-as em detentivas e não detentivas. Quanto àquelas, determinam a internação em manicômio judiciário, em casa de tratamento e custódia e em estabelecimento de trabalho obrigatório (art.87,§2º). Já as sanções não detentivas prevêem a liberdade monitorada, proibição de frequentar certos lugares e o exílio local.

O requisito utilizado pelo Código Penal de 1940, antes da reforma de 1984, para caracterizar a responsabilidade penal era a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de se posicionar diante desse fato ou entendimento (art.22). Tal ideia persiste até hoje no atual art.26.

Primeiramente, nosso Código Penal de 1940 autorizava, em seu art.82, a cumulação da pena com medida de segurança. O condenado então cumpria primeiro aquela, para depois cumprir essa. Assim atestava o mencionado artigo:

Execução das medidas de segurança

Art. 82. Executam-se as medias de segurança:

I – depois de cumprida a pena privativa de liberdade;

II – no caso de absolvição, ou de condenação a pena de multa, depois de passada em julgado a sentença.

§1º A execução da media de segurança é suspensa, quando o indivíduo tem de cumprir pena privativa de liberdade.

§2º A execução da medida de segurança detentiva precede a da medida de segurança não detentiva.

Desta forma, o sujeito recebia duas sanções: uma punitiva e outra curativa. Este sistema é conhecido como “duplo binário”. O referido instituto era um verdadeiro erro, ao passo que submetia os necessitados de cura e educação primeiramente à funesta realidade da clausura, causadora do agravamento da periculosidade, que seria, depois de piorada, tratada para que fosse extinta.[8]

Nota-se que o vínculo entre punir e tratar era expresso, pois havia tanto o reconhecimento da necessidade de um tratamento curativo àqueles inimputáveis quanto à conservação do caráter punitivo através da pena.

Antes da reforma do Código Penal atual, os imputáveis também eram passíveis de receber medidas de segurança, pois a proibição de frequentar determinados lugares, a liberdade vigiada e o exílio local constituíam medidas de segurança não detentivas. Poderiam ser submetidos, à além destas, à internação em colônia agrícola, instituto de trabalho, de ensino profissional ou de reeducação, que também eram consideradas medidas de segurança detentivas. 

Hoje, somente os inimputáveis são suscetíveis a receber medida de segurança. Já os semi-imputáveis podem receber pena ou medida de segurança, dependendo da avaliação do perito. Há também uma inovação no art. 98, possibilitando a troca da pena privativa de liberdade por medida de segurança. A este novo instituto, que exclui a possibilidade de aplicação cumulativa dessas duas sanções, dá-se o nome de sistema vicariante, em substituição do duplo binário.

Outra modificação importante foi a significativa diminuição dos tipos de medida de segurança, restando apenas a internação em hospital de custódia e tratamento ambulatorial (art. 96).

O ano de 1984, além de trazer a Reforma do Código Penal, institui a Lei de Execução Penal, que traz disposições quanto à execução das medidas de segurança, ordenadas mediante expedição de guia.

Vale lembrar que a medida de segurança não é uma espécie de pena, nem possui muitas semelhanças com ela, apesar de ambas visarem o controle social. Trata-se, literalmente, de uma medida preventiva, e não retributiva. Isto é decorrente do próprio fundamento da sua aplicação, que é baseada na periculosidade do agente, não levando em consideração a culpabilidade, já que o inimputável é insuscetível de culpa pelo ilícito penal que cometeu. Por isso mesmo que o objetivo da medida de segurança é curar para prevenir, fazer cessar a periculosidade, deixando de lado a retribuição.

Teoriza-se que é por conta desta distinção que a medida de segurança subsiste por tempo indeterminado. Ora, a referida medida visa à extinção da periculosidade do agente, que deverá ser averiguada no fim do prazo mínimo de duração da referida medida ou também a qualquer tempo, se assim o juiz determinar por meio de requerimento fundamentado, segundo os arts. 175 e 176 da Lei de Execução Penal.

Assim, enquanto não for demonstrada a melhora do paciente, este não poderá ser liberado. Apenas com a efetiva melhora é que a internação extingue seu fundamento e tem cumprido seu papel.

Ademais, a referida periculosidade não necessita ser medida em cada caso. A regra é que ela seja presumida por conta da inimputabilidade do agente, em consonância com o art.26 do Código Penal, juntamente com a prática do fato típico. A periculosidade só deverá ser atestada pelo juiz quando o agente for semi-imputável (art. 26, parágrafo único), necessitando de “especial tratamento curativo”.[9]

Ressalta-se, ainda, a possibilidade de conversão de pena privativa de liberdade em medida de segurança, em caso de superveniência de doença mental, conforme o art. 183 da LEP e art. 98 do CP.


4  A Reforma Psiquiátrica

O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil se iniciou no final dos anos 70, impulsionado pela crise do estilo de assistência voltada ao hospital psiquiátrico e, sobretudo, pelo surgimento dos movimentos sociais em favor dos direitos dos pacientes psiquiátricos, numa base evidentemente humanista.

A Reforma Psiquiátrica é um processo grandioso e deveras complexo. Vai muito além da mudança normativa e das políticas governamentais de saúde. Ele é, na verdade, um conjunto de transformações de saberes, práticas, valores sócias e culturais que se fazem presentes no governo federal, estadual e municipal, nos serviços de saúde, no cotidiano das instituições psiquiátricas, nos movimentos sociais, nas universidades, na opinião pública a respeito do tratamento de deficientes mentais infratores, etc. Não obstante, a Reforma Psiquiátrica avança de forma dificultosa, enfrentando tensões, desafios e limitações, conforme será mostrado ao longo deste trabalho.

É no ano de 1978 que surge o primeiro movimento social em prol dos direitos dos pacientes psiquiátricos no Brasil: o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). Através dele são iniciadas denúncias de violência nos manicômios e da mercantilização da loucura, criticando veementemente todo o sistema de assistência psiquiátrica adotado no país. Formado por trabalhadores do movimento sanitário (movimento contemporâneo ao MTSM), sindicalistas, profissionais de saúde e familiares de pacientes internados, e inspirados na tentativa italiana de abolição dos manicômios (Lei 180/78 da Itália), o MTSM tem como uma de suas primeiras metas a interdição da Colônia Juliano Moreira, asilo no Rio de Janeiro, que no início dos anos 80 possuía mais de 2000 internos. Começam a surgir as primeiras propostas para a reorganização da assistência.[10]

Em 1987 é realizado o II Congresso Nacional do MTSM, em Bauru/SP, com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, além da I Conferência Nacional de Saúde Mental no Rio de Janeiro.

Nessa época, ocorrem dois acontecimentos de suma importância para o avanço da reforma: o surgimento do primeiro CAPS (Centro de Apoio Psicossocial) no Brasil, em São Paulo, ano de 1987, destinado à assistência integral aos pacientes com transtornos mentais e, em 1989, o começo de um processo de interferência da Secretaria Municipal de Saúde da cidade de Santos/SP, em um hospital psiquiátrico responsável por maus-tratos e mortes de pacientes, a Casa da Saúde Anchieta. É esta intervenção, divulgada nacionalmente, que demonstrou realmente a necessidade da mudança no modelo de assistência em substituição ao hospital psiquiátrico.[11]

Após a grande repercussão, foram implementados Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) em Santos, além da criação de associações, casas de apoio aos egressos do hospital e cooperativas na referida cidade. A experiência em Santos passa a ser um exemplo no país, a comprovação de que a reforma psiquiátrica era efetivamente possível.

Ainda em 1989, iniciou-se a batalha do movimento reformista na seara legislativa. Foi dada entrada no Congresso Nacional um Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado, visando à normatização dos direitos das pessoas com deficiência mental e a abolição gradativa dos manicômios no Brasil.

Através da Constituição de 1988 é fundado o SUS (Sistema Único de Saúde), configurado pela união entre os governos federal, estadual e municipal, com o objetivo de fornecer assistência de saúde gratuita à população.

A partir de 1992, os movimentos sociais reformistas, baseados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, têm êxito em aprovar leis, em vários estados brasileiros, que estabelecem a substituição, aos poucos, dos hospitais psiquiátricos por uma rede integrada de cuidados com a saúde mental.

É nos anos 90 que o Brasil assina a Declaração de Caracas e realiza a II Conferência Nacional de Saúde Mental. Neste mesmo período são aprovadas as primeiras leis federais que determinam a criação de serviços de atenção diária, com base nas experiências dos primeiros NAPS e CAPS, bem como as primeiras regras para classificação e fiscalização dos hospitais psiquiátricos.

No entanto, o ritmo de avanço dos NAPS e CAPS, nesta época, é descontínuo. As novas regulamentações do Ministério da Saúde de 1992, apesar de regulamentarem os novos serviços de atenção diária, não previam recursos financeiros voltados especialmente aos NAPS e CAPS. De igual modo, as regras para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos não previam formas efetivas para a redução de leitos. Ao fim deste período, existiam 208 CAPS funcionando no país, mas aproximadamente 93% do orçamento do Ministério da Saúde destinados à Saúde Mental continuavam reservados aos hospitais psiquiátricos.[12]

Apenas em 2001 a Lei Paulo Delgado é sancionada, mas com ressalvas ao Projeto de Lei inicial. Assim, a Lei Federal 10.216/01 modifica a assistência psiquiátrica no país, dando preferência aos tratamentos comunitários, consolidando a proteção e os direitos dos doentes mentais, mas não fornece métodos claros para a extinção gradativa dos manicômios. Apesar disso, a validade da Lei 10.216, juntamente com a realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental abrem novos caminhos para o processo de reforma psiquiátrica.

Recursos financeiros específicos são obtidos pelo Ministério da Saúde para custear os serviços substitutivos dos hospitais psiquiátricos e novos métodos são adotados para a administração, fiscalização e redução gradativa dos leitos psiquiátricos no Brasil. Desse modo, possibilitou-se que a rede de atenção diária à saúde mental avançasse para diversas regiões do país que ainda possuíam a assistência psiquiátrica voltada unicamente aos hospitais de internação.

Na mesma época foi criado o programa “De volta para casa”, que auxilia a ressocialização de pacientes “libertos”, que por muito tempo ficaram internados.

Em 2004 ocorreu, em São Paulo, o I Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, que contou com a participação de cerca de 2.000 trabalhadores e pacientes de CAPS, a fim de promover debates sobre a realidade prática, melhorias e desafios da assistência comunitária em saúde mental[13].

É nesse contexto que a reforma psiquiátrica firma-se como método oficial do governo federal, constatando 1620 CAPS no país, no fim de 2010.

Sobre as autoras
Bruna Maria Pinto Marques de Moura Fé

Bacharelanda em Direito pelo Instituto Camillo Filho, em Teresina (PI).

Nathália Maria Lins Lira

Bacharelanda em Direito pelo Instituto Camillo Filho, em Teresina (PI).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÉ, Bruna Maria Pinto Marques Moura; LIRA, Nathália Maria Lins. Medida de segurança: evolução, reforma psiquiátrica e Lei n° 10.216/2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3262, 6 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21941. Acesso em: 5 nov. 2024.

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