5 Medida de segurança analisada à luz da lei n° 10.216/2001
Não é de hoje a necessidade de nova análise sobre a matéria que versa o Código Penal e a Lei de Execução Penal no que diz respeito à medida de segurança. Com a inovação na política de saúde mental, visualiza-se um tratamento ao “doente mental infrator”[14] que vai muito além da simples segregação em manicômios judiciais.
A lei n° 10.216/2001, conhecida como lei Antimanicomial ou lei da Reforma Psiquiátrica, ordena acerca da proteção e dos direitos das pessoas com transtornos mentais, trazendo inclusive em seu próprio corpo a garantia de informação dos direitos dos doentes mentais durante o atendimento.
As espécies de medidas de segurança permanecem sendo as mesmas, mas uma das visíveis mudanças é a inversão no modelo de tratamento. Conforme o art. 4° da Lei n° 10.216/2001, a internação só se dará “quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, além de dever ser devidamente motivada por um “laudo médico circunstanciado”, como segue no art. 6°.
O Código Penal toma a internação como regra em situação de agente punido com reclusão e vê o tratamento ambulatorial como último caso, desempenhando papel de “alternativa” o juiz submeter o inimputável que pratica fatos típicos e antijurídicos ao tratamento médico sem internação, observado no art. 97 do CP. Conceito tal confronta com a abertura proporcionada por precedente do Superior Tribunal de Justiça:
A medida de segurança, enquanto resposta penal adequada aos casos de exclusão ou de diminuição da culpabilidade, previstos no art. 26, caput e parágrafo único, do Código Penal, deve ajustar-se, em espécie, a natureza do tratamento de que necessita o agente inimputável ou semi- imputável do fato-crime.
A alteração logo na base do tratamento se deu pela percepção do agravamento da loucura proporcionado pelo hospital de custódia e de internação, em sua insuficiência para trazer a cura aos doentes mentais.
Outro ponto a ser discutido é quanto ao tempo de duração da medida de segurança. Primeiramente, fazer referência a um tempo indeterminado pode consubstanciar em pena perpétua, proibida pela Constituição Federal, em seu art. 5°, XLVII, “b”. Este fato surge devido à vinculação do prazo da medida de segurança ao fim da periculosidade do agente, constituindo em violação à cláusula pétrea e à dignidade da pessoa humana, com tal tratamento cruel. Além de não ser autorizada tal pena, é linha tênue aquela que separa quais os indivíduos que oferecerão perigo a sociedade dos ditos “inofensivos”, em vista que nenhuma certeza de qualquer perícia ou estudo pode ditar previsões de comportamentos humanos.
Apesar de a lei silenciar, cabe destacar que o Supremo Tribunal Federal já considerou a possibilidade de limite máximo de 30 anos para a medida de segurança em analogia ao art. 75 do CP. Bitencourt é uma das vozes de aprovação à decisão quanto ao prazo máximo de duração desta sanção:
Certamente, essa limitação temporal representou o começo de uma caminhada rumo à humanização da odiosa medida de segurança esquecida pelos doutrinadores de escol que consomem milhares de resmas de papel teorizando sobre a culpabilidade e os fins e objetivos da pena, mas furtam-se a problematizar a desumanidade e a ilegitimidade das medidas de segurança, por tempo indeterminado, cuja natureza não discrepa da pena, bem como de sua finalidade principal, que é inconfessadamente, a de garantir a ordem e a segurança públicas.[15]
O prazo mínimo (1 a 3 anos) que o Código Penal estabelece no seu art. 97, § 1° para o tratamento, e este identificado ao relacionar-se com a punição do delito, se reclusão ou detenção, são características das medidas de segurança que não couberam figurar na lei da Reforma Psiquiátrica, tendo visto a finalidade permanente da terapêutica exposta de reintegração do paciente.
A lei Paulo Delgado (lei 10.216 de 2001) humaniza o tratamento ao autor de infração penal, sendo ele imputável ou semi-imputável, possibilitando sua inserção no meio social, através da acolhida da família e da comunidade. Essa valorização do princípio da dignidade humana, assegurado pela Constituição Federal, não é possível com o sistema hospitalocêntrico. É possível observar a inserção da noção de cidadania aos cuidados com saúde mental e que a Reforma Psiquiátrica tem como pontos, segundo Paulo Jacobina:
a) abordagem interdisciplinar da saúde mental, sem prevalência de um profissional sobre o outro; b) negativa do caráter terapêutico do internamento; c) respeito pleno da especificidade do paciente e da natureza plenamente humana da sua psicose; d) discussão do conceito de cura não mais como devolução ao paciente da sanidade perdida, mas como trabalho permanente de construção de um sujeito (eu) ali onde parece existir apenas um objeto de intervenção terapêutica (isso); e) denúncia das estruturas tradicionais como estruturas de repressão e exclusão; f) não neutralidade da ciência; g) reconhecimento da inter-relação estreita entre as estruturas psiquiátricas tradicionais e o aparato jurídico-policial.[16]
A adição de dignidade na forma de assistência ao “doente mental infrator” é de grande efeito, para quem sofre um duplo processo de marginalização, por ter cometido um crime e por ter sua saúde mental debilitada.
Com essa nova análise desta sanção penal tratada, passa a configurar um objetivo atrelado mais à integração social do que à prevenção da atividade delitiva, obsevado no art.4, § 1º da lei 10.216 01: “O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.” Além disso, temos no § 3º do mesmo que: “é vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares [...]”, visando o processo de desinstitucionalização.
6 A realidade da Reforma Psiquiátrica no Brasil: avanços e limitações
Elenca a lei Antimanicomial em seu art. 3o: “É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais [...].” Logo, o Estado não pode se esquivar do seu dever de propiciar condições ao devido tratamento ao doente mental.
A discussão de como possuir equipes de saúde com uma terapêutica tão desenvolvida é a que surge, cabendo lembrar que nenhum indivíduo deve sofrer consequências por falhas do Estado. Mesmo com linhas de financiamento geradas pelo Ministério da Saúde, ainda há dificuldade nos provimentos para atenção a rede da saúde mental.
Os “doentes mentais infratores” devem ser, no mínimo, amparados por seus familiares, que exercem papel fundamental na construção de uma política pública de saúde mental, tanto na forma de acolhida real como também na luta aos direitos de pessoas que culturalmente sofrem com a dupla exclusão por serem criminosos e “loucos”.
Outro empecilho encontrado diz respeito à carência de profissionais com formação técnica e teórica necessária para efetivar qualidade de atendimento, que deve ser garantida em todas as regiões do país.
O modelo de atenção à saúde mental que vem sendo proposto, aberto e de base comunitária, oferta uma variedade de serviços tais como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), o Programa de Volta para Casa, o Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria) e o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH); os quais, vale ressaltar, vem possibilitando a redução de milhares de leitos psiquiátricos no país.
Os CAPS, oferecidos no Sistema Único de Saúde (SUS), são unidades de atendimento com atenção intensiva e diária às pessoas portadoras de transtornos mentais, com acolhida junto à comunidade, promovendo a reinserção e a melhoria de qualidade de vida. Referenciados a estes Centros, devem estar os Serviços Residenciais Terapêuticos, que atendem à necessidade de moradia do portador de doença mental grave, egresso ou não de hospital psiquiátrico.
Um dos instrumentos mais efetivos, no que se refere à reintegração social, é o Programa de Volta para Casa, que proporciona auxílio-reabilitação psicossocial por meio de pagamento mensal.
O PNASH/Psiquiatria promove vistoria e controle sobre a qualidade na assistência dos hospitais psiquiátricos do Sistema Único de Saúde, em forma de avaliação ao funcionamento, a estrutura e a adequação ao sistema de atenção à saúde mental. Ocorrendo a verificação de qualidade e a redução efetiva de leitos, o PRH adota como ferramenta política a recomposição de diárias hospitalares. Este Programa recebeu aprovação do Ministério da Saúde em 2004, no intuito de reduzir progressivamente os leitos em hospitais psiquiátricos a partir dos hospitais de grande porte.
O último levantamento do Ministério da Saúde sobre a Rede de Atenção Psicossocial no Brasil mostrou o Piauí entre os estados com melhor cobertura de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), passando da média de 0,03 em 2002 para 0,91 em 2011. Paraíba (1,27), Sergipe (1,16), Rio Grande do Sul (1,07), Ceará (0,95) e Rio Grande do Norte (0,92) obtiveram desempenho superior ao Estado que em sexto lugar, possui 45 CAPs. O índice registrado do Brasil chegou a 0,72 CAPS por 100.000 habitantes.
A recomendação do Ministério da Saúde é que para cada município com mais de 20 mil habitantes exista ao menos 1 CAPS. Todavia, dos 1650 municípios com este número populacional, apenas 971 possuem a indicação mínima do órgão governamental. Tais dados extraídos de recente análise do Tribunal de Contas da União comprovam a insuficiência desse serviço de saúde, existindo previsão para somente em 2015 atingir o aconselhado pelo Ministério da Saúde.
Conquista notória foi a edição da Resolução nº 4, de 30 de julho de 2010, pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária que reforça a adoção da “política antimanicomial”, em seu §1 º, art. 1º: “devem ser observados na execução da medida de segurança os princípios estabelecidos pela Lei 10.216/2001[...].”
Umas das últimas importantes alterações na Política de Saúde Mental do Brasil, se refere à instituição, através da Portaria 3088, da Rede de Atenção Psicossocial para pessoas em sofrimento decorrente de transtorno mental, consumo de crack, álcool e outras drogas. Possui entre suas diretrizes enumeradas no art. 2, o respeito aos direitos humanos, atividades que propiciem a integração social e garantia de acesso e qualidade dos serviços. Com a prioridade dada à Rede, analisa-se como investimento para o ano de 2012 o capital de R$ 200 milhões a mais do que já é utilizado para a assistência existente, além da instituição de novas modalidades de serviços.
7 Conclusão
O que se observa ao fim de todo esse estudo é que a forma como o Código Penal trata as medidas de segurança reflete as antigas teorias biodeterministas, que são arraigadas pela ideia de impossibilidade de cura do “louco criminoso”, atrelando ao caráter da sanção tratada, um caráter significativamente preventivo.
Por esse entendimento de irreversibilidade, durante muito tempo, permaneceu o pensamento que a internação era o meio ideal para o tratamento do “doente mental infrator”. Contudo, o que se notou foi uma execução responsável por maus-tratos, abandono, e até mesmo mortes. Com prazo indeterminado para seu fim, em muitos casos, a medida de segurança chega a ser uma sentença de prisão perpétua, consistindo em uma verdadeira afronta à dignidade da pessoa humana.
Entretanto, constata-se com o desenvolvimento do trabalho que essa função preventiva desta sanção penal não se mostra o bastante para o devido tratamento aos semi-imputáveis e aos imputáveis que cometem crimes, vez que não levam em conta a pessoa do infrator, mas buscam de imediato a proteção da sociedade contra “loucos malfeitores da lei”. Surge então a necessidade de nova análise da medida de segurança, com revisão de suas características e objetivos.
Assim então, nascem os ideais da Reforma Psiquiátrica, voltados principalmente à reabilitação e ressocialização dos doentes mentais. Esses ideais se consolidam na realidade, passando por uma longa caminhada histórica até chegar ao triunfo, com a lei 10.216 de 2001. Tal lei antimanicomial visa à assistência integral ao paciente debilitado de sua saúde mental, baseado em um atendimento de atenção e cuidado à pessoa, com a desinstitucionalização gradativa dos “manicômios judiciários”.
Apesar dessa conquista, cabe ressaltar que a lei é insuficiente, devendo se buscar uma maior melhoria ao tratamento dos “doentes mentais infratores”, com mais recursos destinados ao atendimento extra-hospitalar, profissionais especializados e engajamento do governo.
A promoção de humanidade e dignidade, necessárias a qualquer pessoa humana, deve sempre estar acima de tudo, não podendo ser esquecida mesmo quando a loucura for partícipe ou autora do crime.
Referências
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Notas
[1] RUBIN, Aline Librelotto et al. A evolução da medida de segurança: Da loucura Moral à lei n 10.216/2001. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria. v .3, n. 3, p. 90-101, set. 2008
[2] RUBIN, Aline Librelotto et al. op. cit., p. 90-101
[3] CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: UERJ, USP, 1998, p. 74.
[4] FOUCAULT, Michel. Os anormais. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 69.
[5] Idem. Ibidem.
[6] RUBIN, Aline Librelotto et al. op. cit., p. 90-101
[7] RUBIN, Aline Librelotto et al. op. cit., p. 90-101
[8] JÚNIOR, Miguel Reale et al. Penas e medidas de segurança no novo código. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
[9] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 691.
[10] Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. 2005, Brasília. Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil, Brasília, 2005.
[11] Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. 2005, Brasília. Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil, Brasília, 2005.
[12] Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. 2005, Brasília. Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil, Brasília, 2005.
[13] Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. 2005, Brasília. Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil, Brasília, 2005.
[14] Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro. Jornal do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ano 2, n. 10.
[15] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 787.
[16] JACOBINA, Paulo. Direito Penal da Loucura: Medida de Segurança e Reforma Psiquiátrica. Boletim dos Procuradores da República n. 70. abr. 2006, p. 91.