Há casos em que a morte é desejada, tanto pelo próprio paciente, que quer se ver livre do estado em que se encontra, quanto da equipe médica e/ou do plano de saúde, que não têm mais interesse na causa, ou até mesmo pelo familiar, seja por compaixão, seja pela intenção de obter algum benefício (herança, pensão, alívio pela economia de tempo e dinheiro) ou por alguma mágoa ou desprezo.
Para estes casos alguns países descriminalizaram o homicídio ou criaram o perdão judicial, como Bélgica, Holanda e Luxemburgo, que autorizam a eutanásia, e como a Suíça, que autoriza o suicídio assistido.[1]
A ortotanásia já não era novidade, como medida suspensiva do tratamento que cause mais sofrimento ao paciente terminal do que efetivo resultado positivo.
Até o Vaticano já havia se pronunciado em 1980 pela ortotanásia, por meio da Declaração da Eutanásia. Na verdade, o documento deveria se chamar Declaração da Ortotanásia, haja vista defender o duplo efeito em relação ao paciente terminal: diminuição da dor com a possibilidade de morte em vista da descontinuidade de tratamento considerado inútil.
No Brasil, entretanto, nenhuma destas modalidades tem respaldo legal. Eutanásia, suicídio assistido e ortotanásia são considerados crime de homicídio. Nossa comunidade jurídica tem receio em autorizar estas práticas. Afinal, não faz parte da nossa cultura lidar assim tão desapegadamente com a morte.
Mas e quando a morte é iminente e ela não é desejada?
Pensemos no caso do paciente terminal. Como tratá-lo dignamente? E o médico, que se dedica a salvar vidas e se vê em uma situação que tem que decidir se continua ou suspende o tratamento? E a angústia da família, que nem sempre pode custear um melhor tratamento para o paciente? E a ansiedade de quem aguarda um órgão na fila de transplante?
Até onde poderia chegar a Ciência para adiar a morte, uma vez que as vedações legais estão voltadas para a antecipação da morte e não para o seu adiamento forçado, a chamada distanásia?
Tentaremos abordar estas questões nas próximas linhas.
Para facilitar o entendimento, dividiremos o artigo em dois itens, em forma de questão. Primeira: até onde pode ir a Ciência? Até quando há vida?
1) Até onde pode ir a Ciência?
Que viveremos mais, isso não há mais quem duvide.
Já há estudos com data de implantação prevista, dando ideia de como o paradigma da longevidade mudará. O discurso irá para além das dietas saudáveis e dos exercícios físicos regulares.
É o que a Revista Superinteressante de fevereiro de 2010 trouxe, com a capa “Ele pode ser imortal”:
Os remédios
As pílulas, injeções e medicamentos que impedirão o envelhecimento das células do seu corpo
Injeções de telomerase
Impedem que as células definhem
Sem telomerase, nossas células correm riscos a cada divisão celular. Durante o processo, os cromossomos presentes nelas podem ser mutilados. Danificadas, as células envelhecem. Doses periódicas de telomerase garantiriam que os cromossomos ficassem inteiros.
Previsão de uso: 2025
Células-troncoRenovam nosso estoque de células
São células que podem recuperar tecidos danificados e fazer o trabalho de outras que tenham morrido ou sofrido danos (como os gerados na divisão celular). Injeções de células-tronco poderão virar tratamento de rotina em consultórios.
Previsão: 2025
Fome em pílulas
Simulam a falta de alimentos no corpo
A restrição calórica faz com que o corpo entre em alerta, descartando proteínas danificadas e protegendo as células de radicais livres. Remédios que induzem esse estado de alerta já estão em testes com humanos.
Previsão: 2015
Água pesada
Protege as células dos radicais livres
Radicais livres são moléculas que roubam elétrons de outras, danificando-as. Para evitar o "furto", átomos têm de estar fortemente ligados entre si. Na água, a ligação entre oxigênio e hidrogênio é vulnerável. Se trocarmos hidrogênio por deutério, a molécula fica mais resistente. Uma fórmula da água com deutério já está em testes.
Previsão: 2020
Fontes David Sinclair, Ray Kurzweil, Retrotope.
A tecnologia
As peças e os robôs que vão se incorporar a seu corpo para que ele dure mais
Órgãos artificiais
Peças sobressalentes
Se algum órgão der defeito, bastará criar um novo. Assim: células do paciente são retiradas e cultivadas em laboratório. Com a ajuda de moldes, cria-se o órgão artificial. Bexigas já estão sendo produzidas assim nos EUA.
Previsão: 2015
Nanorrobôs
Faxineiros dentro do corpo
Um exército de robôs-médicos, do tamanho de células, arrumaria os defeitos do nosso organismo. Limparia artérias e destruiria vírus, bactérias e tumores, antes que nosso corpo sofresse qualquer dano.
Previsão: 2030
Do ponto de vista humanitário, estas notícias são bem-vindas, o problema é quando este conhecimento científico é utilizado para se fazer clonagem humana, manipular genes, desequilibrando o princípio da seletividade natural, ou programar epidemias que atingem muitos e beneficiam poucos.
Mas e no caso de morte iminente, a Ciência não conseguiria adiá-la?
Sabemos que sim, mas a que custo? Até onde adiar significaria aliviar o sofrimento dos envolvidos?
A psicóloga Maria Julia Kovács, na obra “Educação para a Morte: Temas e Reflexões”, traz luz a estes questionamentos:
O que é morte com dignidade provoca grandes discussões entre os profissionais da área de cuidados paliativos. Nas mortes consideradas como boas são arrolados os seguintes aspectos: ter consciência, aceitar, se preparar, estar em paz e ter dignidade. As mortes ruins são aquelas onde estes aspectos não estão presentes e ocorrer: negação, falta de aceitação e forte expressão dos sentimentos, especialmente raiva. [2]
Estes cuidados paliativos fazem parte do tratamento chamado ordinário, próprio da ortotanásia, em oposição ao extraordinário, que leva à distanásia (manutenção da vida do paciente terminal que em condições normais de tratamento já teria falecido)[3].
Embora pareça fácil, admite a psicóloga em questão:
Uma outra questão polêmica, já mencionada, é a diferença entre o que se considera como tratamento ordinário ou extraordinário. Uma traqueostomia para facilitar a respiração pode ser considerada como tratamento ordinário para um paciente com doença irreversível. Submeter este mesmo paciente à hemodiálise pode ser considerado medida extraordinária, uma vez que só prolonga a vida, sem perspectiva de melhora.[4]
Por se tratar de tema de difícil resolução, não há ainda no Brasil uma lei de âmbito federal regulando o que vem a ser tratamento ordinário e nem extraordinário.
O que há é o Projeto de Lei nº 6.715/2009, que está tramitando na Câmara dos Deputados, para incluir no Código Penal um artigo que autoriza a ortotanásia, ou seja, descriminaliza a abstenção do uso de meios desproporcionais e extraordinários[5]:
Art. 136-A. Não constitui crime, no âmbito dos cuidados paliativos aplicados a paciente terminal, deixar de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários, em situação de morte iminente e inevitável, desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.
§ 1º A situação de morte iminente e inevitável deve ser previamente atestada por 2 (dois) médicos.
§ 2º A exclusão de ilicitude prevista neste artigo não se aplica em caso de omissão de uso dos meios terapêuticos ordinários e proporcionais devidos a paciente terminal.
Interessante registrar que, por ocasião deste projeto, adveio um substitutivo, de autoria do Deputado José Linhares, do PP do Ceará. Este sim, ao prever os cuidados paliativos, define os tratamentos ordinários e os extraordinários e no seu artigo 4º autoriza a ortotanásia:
SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI Nº 6.715, DE 2009
(Apensos os PL 3002/2008, 5008/2009 e 6544/2009)
Dispõe sobre os cuidados devidos a pacientes em fase terminal de enfermidade.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Esta lei dispõe sobre os cuidados devidos a pacientes que se encontrem em fase terminal de enfermidade.
Art. 2º Todo paciente que se encontra em fase terminal de enfermidade tem direito a cuidados paliativos proporcionais e adequados, sem prejuízo de outros tratamentos que se mostrem necessários e oportunos.
Parágrafo único. Na aplicação do disposto no caput, buscar-se-á que o paciente tenha alívio da dor e do sofrimento, preservando-se, sempre que possível, sua lucidez e o convívio familiar e social.
Art. 3º Para os fins desta lei, considera-se:
I - paciente em fase terminal de enfermidade: pessoa portadora de enfermidade avançada, progressiva e incurável, com prognóstico de morte iminente e inevitável, em razão de falência grave e irreversível de um ou vários órgãos, e que não apresenta qualquer perspectiva de recuperação do quadro clínico;
II - cuidados paliativos: medidas que promovem, usualmente com enfoque multiprofissional, a qualidade de vida dos pacientes e o alívio do sofrimento, especialmente relacionadas ao diagnóstico precoce, à avaliação e ao tratamento adequado tanto da dor quanto de outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual;
III - cuidados básicos, normais ou ordinários: cuidados necessários e indispensáveis à manutenção da vida e da dignidade de qualquer paciente, entre os quais se inserem a alimentação; a hidratação, garantidas as quotas básicas de líquidos, eletrólitos e nutrientes; a higiene; o tratamento da dor e de outros sintomas de sofrimento; e a ventilação não invasiva, quando necessária;
IV - procedimentos e tratamentos proporcionais: procedimentos ou tratamentos cujo investimento em equipamentos e pessoal mostra-se proporcional aos resultados esperados, com relação favorável à qualidade de vida do paciente, e que não impõem aos pacientes sofrimentos ou contrariedades em desproporção com os possíveis benefícios deles decorrentes;
V - procedimentos e tratamentos desproporcionais: procedimentos ou tratamentos que não preencham os critérios de proporcionalidade expressos no inciso IV deste artigo;
VI - procedimentos e tratamentos extraordinários: procedimentos ou tratamentos não usuais, inclusive aqueles em fase experimental, cujo único objetivo seja prolongar artificialmente a vida;
VII - médico assistente: profissional médico responsável pela assistência ao paciente em fase terminal de enfermidade;
VIII - junta médica especializada: junta médica formada por no mínimo três médicos, de cuja composição façam parte pelo menos um psiquiatra e um médico de especialidade relacionada ao caso clínico específico do paciente, vedada a participação do médico assistente.
Art. 4º Havendo solicitação do paciente em fase terminal de enfermidade, ou na sua impossibilidade, de sua família ou de seu representante legal, é permitida a limitação ou suspensão, pelo médico assistente, de procedimentos e tratamentos desproporcionais ou extraordinários.
§1º Na hipótese da impossibilidade de manifestação da vontade do paciente e caso este tenha, anteriormente, enquanto lúcido, se pronunciado contrariamente à limitação ou à suspensão dos procedimentos de que trata o caput, tal manifestação deverá ser respeitada.
§2º A solicitação de limitação ou suspensão dos procedimentos de que trata o caput será submetida a análise de junta médica especializada, para ratificação ou não da conduta.
§3º O paciente ou seu representante legal poderá desistir da limitação ou suspensão dos procedimentos de que trata o caput, a qualquer tempo, sem necessidade de justificação.
Art. 5º O médico assistente tem o dever de:
I - assegurar-se da existência de doença em fase terminal;
II - assegurar que o paciente ou seu representante legal receba informações completas sobre o seu caso, que incluam no mínimo: a) diagnóstico; b) prognóstico; c) todas as modalidades terapêuticas existentes para o caso específico; d) alternativas para controle da dor e de outros sintomas do sofrimento.
III - facultar ao paciente, à sua família ou ao seu representante legal a solicitação de uma segunda opinião médica;
IV - assegurar o direito a alta hospitalar ao paciente que solicite limitação ou suspensão de procedimentos e tratamentos desproporcionais ou extraordinários.
Art. 6º Devem ser registrados no prontuário médico do paciente:
I - a solicitação escrita para limitação ou suspensão de procedimentos e tratamentos considerados desproporcionais ou extraordinários, sempre fundamentada, devendo ser preenchida e assinada pelo paciente, por sua família ou por seu representante legal;
II – o diagnóstico emitido pelo médico assistente e o provável prognóstico;
III – o diagnóstico, o prognóstico provável e a opinião da junta médica especializada que ratificou ou não a opinião do médico assistente;
IV – a descrição dos aconselhamentos feitos ao paciente ou ao seu representante legal.
Art. 7º Esta Lei entra em vigor noventa dias após sua publicação.
O Conselho Federal de Medicina – CFM já vem trabalhando com estes conceitos, tanto que editou em 2006 a Resolução nº 1.805, que estipula que, na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.
Mas como se trata apenas de uma resolução, a conversão do projeto de lei em comento e de seu substitutivo viriam a calhar.
No Estado de São Paulo existe a Lei 10.241 desde 1999, conhecida como “Lei Mário Covas”, que em seu artigo 2º prevê como direito do usuário dos serviços de saúde no Estado recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida, mas, além de não dispor sobre o que vem a ser extraordinário, seu fundamento de validade é discutível.
Há quem defenda que o direito constitucional à vida deve prevalecer sobre o princípio da dignidade humana[6]. Entendemos que não há esta disputa, pois acreditamos que o princípio da dignidade da pessoa humana existe para garantir a vida.
Para o constitucionalista José Afonso da Silva, a dignidade da pessoa humana é um “valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.”[7]
Para Celso Bastos, a dignidade da pessoa humana “parece conglomerar em si todos aqueles direitos fundamentais, que sejam os individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico e social.”[8]
Para a Professora Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, “O princípio da dignidade da pessoa aparece indicado, ora como princípio da personalidade, ora como princípio da individualidade, e nos obriga a um compromisso inafastável: o do absoluto e irrestrito respeito à identidade e à integridade de todo ser humano.”[9]
Tais debates justificam o porquê de ainda não ter sido aprovada uma lei de alcance nacional prevendo os cuidados paliativos e autorizando a ortotanásia. Muito menos uma lei punindo a distanásia.
Com isso fica mais fácil respondermos: até onde pode ir a Ciência?
No caso de morte iminente, inexistindo lei, a Ciência vai até onde a Ética e os recursos financeiros permitirem. Quem se sentir prejudicado deve se socorrer do Poder Judiciário.
Agora a próxima questão, não menos espinhosa, que se dá quando a decisão não é mais pela distanásia, mas sim pela aceitação da morte.
2) Até quando há vida?
Para a maioria dos religiosos, a vida continua. Para os embriologistas, existe vida até quando for possível criá-la ou mantê-la, daí o uso de células-tronco. Para os operadores do Direito há vida até a confirmação do óbito ou da sua presunção, com a figura da morte presumida, pois é da essência do Direito formalizar os eventos para produzir efeitos de ordem prática (dissolução de casamento, abertura de sucessão, etc). Entre outros.
Vimos a situação de se retardar a morte a qualquer custo, impondo até mesmo sofrimento ao paciente terminal.
Mas até que ponto realmente não há mais vida?
Considerando a Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, e alterações pela Lei 10.211/2001, a vida tem como limite a morte encefálica, cabendo ao Conselho Federal de Medicina a sua caracterização, sob pena de se prolongar a vida inutilmente ou então abreviá-la, pelas circunstâncias que expusemos no início do artigo.
Por meio da Resolução CFM nº 1.480/97, ficou consignado que a morte encefálica será caracterizada após a realização de exames clínicos e complementares em intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias.
São realizados vários exames clínicos para se verificar a atividade tronco-cerebral ou supraespinhal[10], ou seja, se o corpo reage a estímulos como pressão no leito ungueal (parte que fica debaixo das unhas das mãos e dos pés), iluminação da pupila, irritação da córnea com algum objeto, movimentação da cabeça e injeção de água muito fria ou muito quente nos ouvidos para ver se os olhos se mexem e irritação da traquéia com uma sonda para ver se o paciente tosse ou respira.
Na sequência, como ainda se está diante de probabilidades, o médico analisa o caso para ver se há apneia, ou seja, ausência de reação a forte estímulo respiratório. O pulmão é hiperventilado e depois de alguns minutos a ventilação é desligada. Se não houver reação alguma, a morte encefálica é provável.
A Resolução aconselha que entre os primeiros exames clínicos e a apneia seja feito um intervalos mínimo de acordo com a idade do paciente: a) quarenta e oito horas para pacientes que tenham entre sete dias e dois meses incompletos[11]; b) de vinte e quatro horas para pacientes que tenham entre dois meses e um ano incompleto; c) doze horas para pacientes que tenham entre um ano e dois anos incompletos; d) de seis horas para pacientes com mais de dois anos de idade.
Depois de tudo isso, ainda assim são necessários exames complementares, que deverão demonstrar de forma inequívoca: a) ausência de atividade elétrica cerebral[12] ou, b) ausência de atividade metabólica cerebral[13] ou, c) ausência de perfusão sangüínea cerebral[14].
O anexo da Resolução explicita como são feitos estes exames e os instrumentos que podem ser utilizados. Escolhe-se uma das atividades, ou a elétrica cerebral, ou a metabólica ou a perfusão sanguínea cerebral.
Em pacientes com dois anos ou mais há a necessidade de se fazer um exame complementar, utilizando um dos instrumentos indicados: 1) Atividade circulatória cerebral: angiografia, cintilografia radioisotópica, doppler transcraniano, monitorização da pressão intracraniana, tomografia computadorizada com xenônio, SPECT; 2) Atividade elétrica: eletroencefalograma; 3) Atividade metabólica: PET, extração cerebral de oxigênio.
Para pacientes com um ano de idade ou dois anos incompletos, no caso de eletroencefalograma, são necessários dois registros com intervalo mínimo de doze horas. De dois meses a um ano incompleto, dois eletroencefalogramas com intervalo de vinte e quatro horas. De sete dias a dois meses de idade (incompletos), dois eletroencefalogramas com intervalo de quarenta e oito horas.
Terminados os exames clínicos e complementares, não havendo qualquer reação do paciente, a morte encefálica é registrada no “Termo de Declaração de Morte Encefálica”, que ficará arquivado no próprio prontuário do paciente.
O Diretor-Clínico da instituição hospitalar, ou alguém por ele delegado, deverá comunicar a morte encefálica aos familiares e à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos a que estiver vinculada a unidade hospitalar.
A despeito de todos estes cuidados, há quem coloque em xeque a eficiência destes exames, como a já mencionada psicóloga Maria Julia Kovács:
Para se determinar a morte encefálica é necessário excluir aquelas situações, que apresentam características semelhantes, como é o caso de hipotermia e intoxicação por drogas. A grande diferença é que, nestas últimas situações, pode haver uma reversão dos quadros e no caso da morte encefálica a irreversibilidade é total. Daí a necessidade de se esperar pelo menos 72 horas para concluir o diagnóstico, e não apresentar a morte, mesmo que seja para fins de transplante. O problema é que os instrumentos para avaliar a morte encefálica ainda são grosseiros. O eletroencefalograma, um dos exames clássicos, apresenta distorções, pois é sabido que algumas pessoas com traçado isoelétrico se recuperaram. Outro exame que também é utilizado é a angiografia; entretanto, trata-se de procedimento extremamente invasivo, que pode causar danos adicionais. Então o dilema se coloca: é válido realizar um exame para se saber se ocorreu morte encefálica, e aí poder causar uma lesão que pode ser o motivo da morte?[15]
A Professora de Direito Maria Celeste Cordeiro Leite Santos faz outra importante observação, na obra “Morte Encefálica e a Lei de Transplante de Órgãos”:
A nossa preocupação maior fica, porém, com o estabelecimento de critérios relativos, e em descompasso com as legislações médicas mundiais mais avançadas, como a alemã, inglesa e americana. No estabelecimento de apenas 6 horas como intervalo entre as duas avaliações clínicas que irão constatar, ou não, a morte encefálica. As referidas legislações adotam intervalo mínimo de 12 a 24 horas. Será que poucas horas a mais seria pedir muito por uma vida humana?
Achamos bastante pertinente a preocupação das Doutoras, mas, infelizmente, enquanto os ajustes não são feitos, os parâmetros aplicáveis que temos são os da Resolução 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina, como manda a Lei Federal 9.434/97, com alterações da Lei 10.211/2001.
De acordo ainda com a Resolução, para não comprometer os órgãos, a equipe médica providencia, assim que constatada a morte encefálica, um suporte artificial. A família decidirá sobre uma possível doação.
Aqui inicia uma nova fase, a de salvar outras vidas.
Esta mesma lei determina que a doação de órgãos e tecidos pode ocorrer em duas situações: de doador vivo com até quarto grau de parentesco, desde que não haja prejuízo para o doador; e de um doador morto, que deve ser autorizada por escrito por um familiar até segundo grau de parentesco.
Mas deve ser tudo muito rápido. Neste ponto o sucesso é sempre indefinido.
Em um transplante de córnea, o transplante do tecido pode ser feito até seis dias depois de constatado óbito. O fígado, se bem conservado, pode ficar até vinte e quatro horas aguardando transplante. Já o coração deve ser transplantado em no máximo quatro horas após a retirada do corpo do doador.
Obviamente, o falecido não pode ter tido doença que comprometa o funcionamento do órgão a ser doado e deve haver compatibilidade entre doador e receptor, como tipo sanguíneo, código genético, aferido pela “tipagem HLA”, além de tamanho e peso dos órgãos.
Não obstante as dificuldades, segundo o Ministério da Saúde, em 2007 a lista de espera era de 69.053 pessoas, no Brasil todo.
Certamente esta lista aumentou. O problema é que, de acordo com levantamento recente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, desde 2007 não havia um decréscimo no número de doadores. Os dados de doação no primeiro trimestre de 2011 mostram que em relação ao mesmo período no ano anterior houve uma queda de 8,3% (24,5% inferior ao que se previa). Ainda assim, o Brasil é um dos países que mais se destacam na doação de órgãos.
Poderíamos falar muito mais sobre doação de órgãos e transplante, mas como o cerne deste segundo item é saber até quando há vida, encerraremos o artigo afirmando que neste caso o que limita a Ciência é a lei, pois existe um protocolo do Conselho Federal de Medicina, fundamentado na Lei 9.434/97, com alterações da Lei 10.211/2001, que determina até quando há vida – que vai até a confirmação da morte encefálica.
Porém, de nada adiantará a previsão legal para a morte encefálica se a morte não for aceita, pois vimos no item anterior que não há limites legais à Ciência, somente éticos e financeiros. Existem a garantia do direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição Federal, inclusive do receptor do órgão, mas não uma lei que disponha sobre a distanásia.