Considerações finais
Além de tudo o que foi abordado, há um fator fundamental, e que se encaixa nos cuidados paliativos que mencionamos, que é o preparo psicológico de todos os envolvidos, especialmente do médico, como bem sopesou o médico Carlos Alberto Pessoa Rosa, em artigo intitulado “Mortalis: os médicos e a morte”:
Se alguém perguntar: estará um cidadão com uma doença incurável em condições psíquicas para decidir pela sua vida? Eu responderei, como médico, com outra pergunta: estará o profissional preparado para aceitar a sua impotência, e poupar sofrimento ao paciente?
(…)
O médico não pode ser técnico, juiz e executor. Muito menos Deus. Sua função tem que ser a de um conselheiro, de um cidadão conhecedor de seus deveres e direitos, de um cidadão que tem de aprender a respeitar os direitos alheios, mesmo que isso em algum momento vá frontalmente contra aos seus princípios e conhecimentos.[16]
Até mesmo porque, muito dependerá do médico, como bem concluiu a psicóloga Ingrid Esslinger, em “De quem é a vida, afinal?”:
Em termos de minha pesquisa, ficou evidenciado eu só pode haver dignidade no processo de morrer de cada paciente e de seus familiares se for dada a mesma dignidade à equipe de saúde que presta esses cuidados.[17]
E não poderia ser diferente. Em uma situação de morte iminente, familiares e equipe médica morrem um pouco também, não no sentido de acompanhar fisicamente quem se foi, mas no sentido de ver bem de perto a finitude da vida. Portanto, melhor se todos estiverem empenhados em fazer valer a dignidade.
Para termos noção da diferença que estas observações trazem para o tratamento de um paciente terminal, reproduzimos um diálogo dentre o já citado médico Carlos Alberto Pessoa Rosa e uma paciente que não queria ouvir a palavra “câncer”:
- Doutor, eu tenho uma condição para aceitar o senhor como meu médico.
- Qual é a condição? Perguntei-lhe.
- Doutor, se for câncer eu gostaria que o senhor não me dissesse.
- Agora a senhora me colocou numa situação difícil. Veja bem, qualquer coisa que eu lhe diga, a partir de agora, carregará o peso de uma mentira, mesmo não o sendo. Disse-lhe.
- Não faz mal doutor, basta que o senhor me trate, eu estou satisfeita.
Os exames confirmaram câncer de estômago com metástases disseminadas. No retorno tivemos o seguinte diálogo:
- O que eu tenho, doutor?
- A senhora tem uma doença para a qual a ajuda que eu posso lhe oferecer é muito limitada. Talvez quimioterapia e alívio da dor. Disse-lhe.
- Doutor, sendo assim eu quero ser tratada em casa. Gostaria de saber se o senhor me acompanharia.
Tentei explicar-lhe que em algum momento poderia precisar levá-la para o hospital para uma transfusão.
- Doutor, isso o senhor pode fazer em casa, não é? Assim poderei ficar com os meus.
Na época, já habituado a tratar pacientes em casa, e sem dúvida da qualidade de vida que esse tratamento trazia ao paciente, aceitei o que ela me pediu. Não tenham dúvidas de que a angústia que o profissional passa nessa situação, como já disse anteriormente, é muito maior do que a eu sentiria num ambiente hospitalar onde se dividem responsabilidades com outras pessoas, e somos menos acossados pelos parentes que na residência, mas estou convicto de que o paciente tem uma morte mais digna. Seu pudor não é violentado como nos hospitais, em seu ambiente ainda pode dar ordens, arrumar suas coisas, ouvir seu rádio ou ver seu programa de televisão predileto; enfim, ali continua a viver.
A paciente morreu em sua casa, sabendo estar com doença incurável, mas em nenhum momento ela me permitiu, ou se permitiu, a usar a palavra câncer.[18]
Que este tipo de diálogo possa ser repetido, tornando esta relação com a morte mais uma relação de vida com qualidade do que vida em quantidade. Afinal, manter a vida a qualquer custo, quando já se tentou todos os meios, é pagar os seus bons momentos com um sofrimento que de positivo nada mais poderá acrescentar.
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Notas
[1] Na França a eutanásia é ilegal, mas o Código Penal distingue entre a prática passiva (abstenção terapêutica ou não assistência a pessoa em perigo) e ativa (provocar a morte), que continua a ser vista como um homicídio.
Há países que não autorizam a eutanásia e nem o suicídio assistido, mas excluem a punibilidade de quem comete homicídio piedoso, como é o caso do Uruguai (Código Penal de 1934).
Comparando à situação uruguaia, podemos citar a Doutora Maria Helena Diniz, que em sua obra “O estado atual do biodireito” ensina que os Códigos Penais da Alemanha e da Itália encaixam a eutanásia no tipo de homicídio atenuado por motivo piedoso, não se admitindo absolvição nem perdão judicial.
Em Oregon, nos Estados Unidos da América, o suicídio assistido foi legalizado em 1997.
[2] Página 126 da obra citada.
[3] Como bem sintetizou André Mendes Espírito Santo, em “Ortotanásia e o direito à vida digna”, sua dissertação de Mestrado em Direito nesta Universidade, “eutanásia é a morte antes de seu tempo, a distanásia é, por sua vez, a morte depois do tempo, e ambas se contrapõem à ortotanásia: a morte no tempo certo.”.
[4] Página 203 da obra “Educação para a Morte: Temas e Reflexões”.
[5] Curiosamente, a sugestão inicial era para que a inclusão desta novidade se desse no artigo 121 do Código Penal, no Capítulo I, “Dos crimes contra a vida”, mas concluída a audiência pública, houve consenso de que melhor seria que o acréscimo se desse no Capítulo III, que trata “Da periclitação da vida e da saúde”.
O consenso foi gerado após a manifestação do Dr. Paulo Silveira, Presidente da União dos Juristas Católicos, para quem nos casos de ortotanásia não cabe falar em crime porque não se trataria de acelerar ou antecipar a morte, mas tão-somente de se evitar a adoção de determinados tratamentos extraordinários e desproporcionais que, com custos gravosos para o próprio paciente em estágio terminal e para a sua família, prolongariam artificialmente a vida. De nossa parte, entendemos que melhor seria a manutenção do texto original do projeto, inserindo a excludente de ilicitude no capítulo que trata dos crimes contra a vida, pois, por mais que a ortotanásia tenha motivos humanitários, a não manutenção da vida tem como resultado a morte e não simplesmente a exposição a perigo da vida ou da saúde do paciente: “Exclusão de ilicitude. § 6º Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão. § 7º A exclusão de ilicitude a que se refere o parágrafo anterior faz referência à renúncia ao excesso terapêutico, e não se aplica se houver omissão de meios terapêuticos ordinários ou dos cuidados normais devidos a um doente, com o fim de causar-lhe a morte.”.
[6] Artigo 1º, III, da Constituição Federal: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III - a dignidade da pessoa humana.”.
Artigo 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”
[7] Página 204 de “Limites da Ciência”, de Maria Garcia.
[8] Página 205 da mesma obra.
[9] Página 34 do artigo “Mercantilização do corpo humano, mercado de órgãos, sangue, fetos barriga de aluguel. Aspectos ético-jurídicos”, constante dos Cadernos do IFAN nº 10, 1995.
[10] Escolhe-se a região supraespinhal em vez da infraespinhal porque mesmo em caso de morte encefálica pode haver reflexo osteotendinoso, cutâneo abdominal, cutâneo plantar em flexão ou extensão, ereção peniana, arrepio e reflexo pela retirada dos membros, entre outros.
[11] Diante da falta de consenso, a Resolução não regulamentou a detecção da morte encefálica em prematuros e crianças com menos de sete dias de vida.
[12] O Eletroencefalograma é realizado através da colocação de eletrodos no couro cabeludo, com auxílio de uma pasta condutora que, além de fixá-los, permite a aquisição adequada dos sinais elétricos que constituem a atividade elétrica cerebral. Inicialmente é feito um registro espontâneo da atividade elétrica cerebral durante a vigília (paciente acordado). Se possível, essa atividade é registrada também durante a sonolência e o sono. O registro em todos esses estados aumenta a sensibilidade do método na detecção de diversas anormalidades.
[13] A Espectroscopia por RM permite a detecção da atividade metabólica cerebral através do espectro de atividade de substâncias como N-acetil-aspartato (NAA), considerado um marcador da atividade neuronal normal. A Ressonância Magnética Funcional (RMF) permite o mapeamento do fluxo sangüíneo cerebral regional durante o repouso e durante ativação, com alta resolução de imagens que esse método proporciona. Duas outras modalidades de estudo de imagem permitem a avaliação funcional cerebral: Tomografia por Emissão de Fóton Único (SPECT) - permitem a quantificação indireta do metabolismo cerebral através da mensuração do fluxo sangüíneo regional, possibilitando a realização de estudos seriados, importantes na monitorização evolutiva da doença; e Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) - detecta a utilização metabólica cerebral regional da glicose e do oxigênio através da captação da atividade de radiofármacos (Carbono, Nitrogênio, flúor e Oxigênio). Sua aplicação prática, no entanto, é ainda restrita por seu alto custo operacional.
[14] Ausência de trânsito de sangue no cérebro detectada por meio de técnicas como a tomografia.
[15] Página 195 da obra “Educação para a Morte: Temas e Reflexões”.
[16] Página 82 do periódico “Temas de Bioética”, Cadernos do IFAN nº 10, 1995.
[17] Página 231 da obra citada.
[18] Páginas 83 e 84 do mesmo periódico.