Sumário. 1. Introdução. 2. Popper e o conceito de falseabilidade. 3. A conjuntura pós-positivista. 4. Argumentação jurídica. 4.1 Breves notas sobre a Tópica de Viehweg. 4.2 Breves notas sobre a Retórica de Perelman. 4.3 Breves notas sobre a Lógica Informal de Toulmin. 4.4 A Teoria da Argumentação de Alexy. 5. Do papel da falseabilidade dentro da argumentação jurídica. 6. Conclusão. Referências.
Resumo
O presente artigo pretende fazer uma breve análise acerca da contribuição que a noção de falseabilidade, principal condição de cientificidade de uma teoria na visão do filósofo Karl Popper, pode fornecer para a argumentação jurídica. Busca-se obter uma primeira impressão sobre ser ou não possível falar-se em controle crítico de enunciados jurídicos, especialmente de decisões judiciais.
1. Introdução
Uma das características que qualifica um bom jurista é a sua capacidade de argumentação, havendo, inclusive, quem a considere como a principal característica para tal qualificação. Com efeito, a habilidade em aduzir argumentos que sejam capazes de convencer os demais interlocutores se revela essencial no desempenho de várias, senão todas, profissões jurídicas.
No entanto, há que se concordar com Horácio Wanderley Rodrigues quando este afirma que a produção do conhecimento na área do Direito se revela “parecerística” buscando sempre comprovar a hipótese proposta, mas em nenhum momento testá-la. Segundo o referido autor, isto ocorre porque ela repete no campo científico a mesma estrutura da pesquisa profissional, qual seja, a de buscar e/ou construir argumentos que comprovem a hipótese apresentada, ou seja, busca-se “vencer a discussão”[1].
Ocorre que, embora tal procedimento possa se revelar produtivo na atuação profissional, vencendo causas para advogados ou evitando que os juízes tenham suas decisões reformadas pelas instâncias superiores (possibilitando que mantenham as convicções que o levaram à decisão), na área acadêmica esta postura não é a mais adequada, pelos menos segundo a visão aqui adotada. Isto porque, o objetivo da ciência não é, ou não deveria ser, o estabelecimento de uma determinada doutrina, mas sim a produção de conhecimento.
Para Karl Popper, o propósito da ciência não é a obtenção de enunciados absolutamente certos. A conquista da verdade absoluta, a seu ver, é inatingível. Para ele, a ciência deve consistir numa busca por uma aproximação constante da verdade, através de consecutivas substituições das teorias científicas por outras que se revelem melhores[2]. Esta busca é concretizada comparando-se as conclusões de cada teoria com a realidade empírica e substituindo as teorias menos adequadas à realidade pelas mais adequadas.
Popper defende que o critério de cientificidade que propõe atende a tal objetivo e se revela fértil para este desiderato. A falseabilidade, ou seja, a possibilidade de uma teoria hipotética poder eventualmente ser refutada em razão da dissociação com a realidade empírica constatada é para Karl Popper condição sine qua non para que a teoria possa ser considerada científica[3].
Por outro lado, a pretensão de possibilitar um controle intersubjetivo dos enunciados jurídicos, em especial das decisões judiciais, é um problema sobre o qual grandes juristas têm se debruçado ao longo do tempo e que, não obstante, ainda inquieta tanto os pesquisadores do Direito quanto os destinatários do Direito aplicado até a época atual[4].
Aqui, pretendemos uma breve análise sobre a medida em que o pensamento de Popper pode auxiliar nessa questão, deveras espinhosa.
2. Popper e o Conceito de Falseabilidade
Tendo em vista a proposta do presente artigo, faz-se necessário, antes de tudo, expor alguns pontos chaves do pensamento epistemológico de Popper para, só em seguida, partir para uma avaliação sobre sua aplicação ao que poderia ser chamado de teoria da argumentação jurídica.
Neste sentido, cabe ressaltar que Popper rompe tanto com os pressupostos empiristas erigidos por Francis Bacon quanto com o racionalismo de Renée Descartes[5]. O primeiro entendia que a origem do conhecimento estava na observação isenta dos fatos, enquanto o segundo considerava que esta origem estava na intuição intelectual das idéias claras, daquilo que se apresentava óbvio para o pesquisador e a partir do que poderia, a partir de uma cadeia de deduções lógicas, chegar às questões científicas mais complexas[6].
Para Karl Popper o conhecimento não começa de percepções ou observações ou de coleção de fatos ou números, mas sim de problemas. Ocorreria uma tensão entre conhecimento e ignorância porque o problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento.
Discorrendo acerca das ciências sociais, Popper defendeu que seu método não deveria ser diferente daquele das ciências naturais, devendo consistir em: a) experimentar possíveis soluções para certos problemas; b) tentar refutar a solução imaginada; c) se uma solução foi refutada com sucesso, tentar outra solução; d) se ela resiste à crítica, aceita-se a mesma temporariamente (até que eventualmente venha a ser refutada com sucesso). Assevera o autor que se a solução não é passível de teste, não deve ser aceita como científica, pois a objetividade da ciência repousa na objetividade do método crítico. Entretanto, a tarefa do cientista jamais se encerra, porque, independentemente do tempo que uma teoria sobreviveu às críticas, será sempre possível que venha a ser refutada no futuro. Inclusive, o filósofo citado ressalta que: “Procedendo deste modo, você deve estar consciente do fato de que a objetividade nas ciências sociais é muito mais difícil de alcançar (se puder totalmente ser atingida), do que nas ciências naturais, pois uma ciência objetiva deve ser 'isenta de valores'”.[7]
Esta última advertência, na concepção aqui adotada, há que ser recebida com temperamentos, sob pena de total inutilidade da discussão aqui travada. Com efeito, não parece ser possível a operacionalização de um Direito isento de valores.[8] Assim, embora provavelmente uma objetividade plena não seja factível no Direito, o que a discussão em torno da argumentação jurídica procura é justamente reduzir tanto quanto possível as possibilidades de decisionismo na prática jurídica, fornecendo critérios que possibilitem algum nível de controle racional das decisões efetuadas no âmbito do Direito.
3. A Conjuntura Pós-Positivista.
A questão ora proposta adquire uma importância singular diante do cenário pós-positivista que atualmente se apresenta perante a ciência do Direito, cenário este caracterizado por uma reaproximação do Direito com a ética e os valores e por uma considerável relativização da força das regras nas decisões judiciais (se comparada com a força que a possuíam no cenário positivista que dominou a filosofia do Direito até a primeira metade do século XX).
Com efeito, o critério da refutabilidade foi proposto por Karl Popper como delineador dos limites entre a ciência e a metafísica[9]. Algumas teorias seriam perfeitamente testáveis, outras pouco testáveis e outras não testáveis. Estas não teriam interesse para os cientistas e poderiam ser qualificadas como metafísicas.
Durante o positivismo, justamente pela pretensão de conferir cientificidade ao Direito, buscou-se uma demarcação rígida entre o Direito e os valores, devendo as decisões jurídicas se fundamentar na análise da validade formal das leis, potencialmente aplicáveis, e em um processo de subsunção dos fatos às leis para extração das conseqüências jurídicas.
Ocorre que este modelo não se mostrou convincente e tampouco conseguiu se sustentar da forma como proposto. Por um lado, a adoção de uma postura legalista e formalista acabou servindo para legitimar abusos Estatais e mesmo ofensas aos direitos humanos. Como a questão da validade das leis era abordada apenas (ou majoritariamente) sob a perspectiva formal, houve a admissão de conteúdos legais que hoje seriam inconcebíveis no âmbito de um Estado Constitucional de Direito. Por outro lado, o modelo proposto acabou, em grande parte, não refletindo o que acontecia na prática jurisprudencial, diante da insuficiência do modelo subsuntivo para o Direito.
Com efeito, Karl Larenz leciona que o legislador, ao estatuir uma norma, deixa-se guiar por certas intenções e considerações de justiça e que sua aplicação (mesmo num pretenso modelo de subsunção) implica em acolher de modo adequado a valoração contida na norma ao julgar o caso. Assim, é peculiaridade da ciência do Direito e da jurisprudência terem de tratar quase exclusivamente com valorações. Até mesmo a decisão sobre se as premissas fáticas se adequam ou não às previsões normativas implica em valoração, restando equívoco acreditar que a aplicação das normas se esgota num procedimento lógico de subsunção[10].
Com a flexibilização das premissas positivistas e a ascensão dos princípios a um protagonismo no ordenamento jurídico, houve uma reaproximação entre o Direito e os valores. Ocorre que neste cenário, cresceu também o anseio por um critério que seja capaz de oferecer, ainda que minimamente, alguma possibilidade de controle crítico das decisões judiciais. A segurança jurídica se viu de certa forma afetada pela possibilidade do afastamento de normas leis (mesmo as válidas) e de decisões fundamentadas em princípios, muitas vezes implícitos.
Ana Paula de Barcellos e Luís Roberto Barroso, em artigo conjunto, também abordaram o tema aqui retratado[11]. Os autores fazem uma breve análise histórica da filosofia do Direito partindo do jusnaturalismo moderno (século XVI), passando pelo positivismo que dominou o pensamento jusfilosófico ao longo do século XIX e primeira metade do século XX , e desembocando no pós-positivismo, termo que vem obtendo certo consenso doutrinário para a designação do atual estágio da filosofia do Direito.[12]
Segundo os autores, o pós-positivismo, no contexto do qual observamos a crescente ascensão do papel dos princípios dentro do ordenamento jurídico, é uma denominação provisória para um ideário difuso que trabalha relacionando valores, princípios e regras (aspectos da denominada nova hermenêutica constitucional) e a teoria dos direitos fundamentais, no bojo da qual o princípio da dignidade da pessoa humana recebe o papel de eixo central. Neste mesmo contexto ocorre a valorização dos princípios, a incorporação dos mesmos nos textos constitucionais com o reconhecimento de sua normatividade pela ordem jurídica, tudo isto estruturado de forma a possibilitar uma reaproximação entre Direito e Ética, cujo afastamento tinha ocorrido durante o reinado do positivismo.[13]
Passando ao largo do dissenso acerca dos melhores critérios para a distinção entre princípios e regras, aqui se concorda com os referidos autores quando afirmam que no estágio atual da filosofia do Direito a Constituição é visualizada como um “sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central”[14].
Manuel Atienza leciona que os déficits do jusnaturalismo e do positivismo como concepções do Direito explicam a gestação de uma nova perspectiva jurídica que possui alguns traços característicos, entre os quais se pode citar: a) a importância outorgada aos princípios como elementos necessários de um sistema jurídico; b) a tendência a considerar as normas a partir do seu papel no arrazoamento prático, e não da sua estrutura lógica; c) a importância da hermenêutica como processo racional conformador do Direito; d) a consideração da validade material das normas, além da formal; e) a insuficiência do legalismo e a necessidade de uma interpretação conforme aos princípios constitucionais; f) a tendência de integração entre as esferas da razão prática: Direito, moral e política; g) a idéia de que a razão jurídica, como razão prática, se guia não somente pelo êxito, mas também pela pretensão de correção e justiça; h) a importância da argumentação jurídica como característica essencial de uma sociedade democrática; i) a convicção de que existem critérios objetivos que outorgam um caráter racional à prática da justificação das decisões, ainda que se aceite que existe mais de uma resposta correta para certos casos.[15]
Entre os diversos princípios constitucionais amplamente debatidos pela doutrina e largamente mencionados na jurisprudência em decisões importantes, encontra-se o princípio da proporcionalidade. A discussão sobre o mesmo se revela, ao mesmo tempo, encantadora e aterrorizante. A leitura do que já foi afirmado sobre o referido princípio encanta porque se apresenta como instrumento para a solução de casos que antes já foram considerados até mesmo insindicáveis judicialmente. Por outro lado, a conjectura sobre o que não se discute sobre o mesmo aterroriza porque ele pode servir de pretexto para grandes abusos e uma subversão da ordem democrática.
O princípio da proporcionalidade tem sido apresentado pela doutrina e pela jurisprudência como uma espécie de panacéia para todas as questões de ponderação relativas à solução de casos difíceis. [16] Não há dúvida que o desenvolvimento teórico realizado acerca da noção de proporcionalidade se revelou como um importante instrumento que possibilitou uma abordagem racional (izável) de problemas jurídicos de difícil enfrentamento, tal como o controle de atos discricionários da Administração Pública ou das leis que importam em restrições aos direitos fundamentais.
Não obstante, sem uma fundamentação adequada, o referido princípio apenas desloca o âmbito do abuso de discricionariedade da decisão legislativa ou executiva para a decisão judicial. Ressalte-se que, pelo menos em alguns aspectos, o problema do abuso da discricionariedade no âmbito judicial possui um potencial ofensivo muito maior do que o mesmo problema no âmbito dos demais poderes. Apenas para evitar um alongamento no tema, que não é o cerne do presente trabalho, citam-se, a título exemplificativo, duas razões para tal afirmação.
A primeira se refere à questão da legitimação democrática. Os membros do poder executivo e legislativo são legitimados através do processo eleitoral justamente para a tomada de decisões de cunho político que estão intimamente ligadas à idéia de discricionariedade. Assim, importantes temas dependem de uma valoração para uma definição normativa (ex. pesquisas com células tronco, despenalização do aborto, redução da maioridade penal, políticas públicas relativas aos direitos sociais, entre outros). Ocorre que, pelo menos em tese, cabe aos poderes políticos, legitimados através do processo democrático eleitoral, e não ao judiciário realizar esta valoração. Este somente pode interferir naquelas decisões na medida em que se apresentem incompatíveis com a constituição, mas não para substituir a vontade daqueles poderes pela sua própria.
A segunda razão se relaciona com o fato de uma das funções do poder judiciário consistir justamente no controle dos atos dos demais poderes. Primeiro porque o abuso da discricionariedade nos outros poderes pode ser sanado através do controle judicial, enquanto que as decisões judiciais não são passíveis de controle externo[17]. Segundo porque, se no controle de um vício o judiciário repete justamente o vício que pretendia remediar, simplesmente não houve o desempenho da função a que se propôs a decisão judicial.
4. Argumentação jurídica.
Conforme foi assinalado na introdução, a habilidade de aduzir bem argumentos e de convencer outras pessoas é essencial em diversas carreiras jurídicas. Mas, apesar disso, muitos juristas renomados (provavelmente a maioria deles) jamais se preocuparam em estudar, e muito menos em discutir, o que se entende por argumentação jurídica ou conjecturar sobre uma teoria da argumentação jurídica. Isto não os impediu de argumentar com proficiência.
Tal fato não retira a relevância do tema ora abordado, seja no campo teórico, onde esta relevância parece incontestável, seja no campo prático, uma vez que o desenvolvimento adequado de uma teoria da argumentação jurídica pode servir de ponto de apoio para o profissional do Direito em vária de suas tarefas. Aqui, pretende-se concentrar na utilidade de uma teoria deste tipo no controle crítico de decisões judiciais nos casos difíceis.
Neste sentido, já foi destacado que esta tarefa é bastante complicada num contexto pós-positivista onde um dos elementos com maior grau de objetividade envolvido na argumentação, as regras, perderam em grande parte seu caráter determinante nas decisões judiciais.
Manuel Atienza afirma que o Estado Constitucional pressupõe não só a distribuição de formal de poder, mas a existência de certos conteúdos que limitam e condicionam a produção, a interpretação e a aplicação do Direito. Não bastaria a referência à autoridade (competência) e a procedimentos (validade formal), mas se requer também um controle quanto ao conteúdo material do Direito, o que supõe um incremento da tarefa justificativa dos órgãos públicos e uma maior demanda por argumentação jurídica.[18]
O constitucionalismo moderno incorporou grande parte do conteúdo e dos valores de justiça disseminados pelo jusnaturalismo racionalista do século XVIII, e afastou a tese de alguns positivistas de que o Direito poderia ter qualquer conteúdo. Entretanto, o mero recurso ao jusnaturalismo não parece ser suficiente para superar a insuficiência do positivismo[19]. O Direito natural é constituído por um conjunto de dogmas que não contribuem para a conferência de maior racionalidade ao Direito e o jusnaturalismo não parece ter se preocupado com o discurso jurídico justificativo.
Num contexto positivista, a questão passava primariamente pela decisão sobre a validade formal das normas. Se a norma era válida, ou seja, se foi elaborada conforme os procedimentos constitucionalmente determinados, e se os fatos analisados podiam ser subsumidos à norma, aplicava-se a conseqüência prevista no texto normativo para aqueles fatos[20]. A tarefa do juiz, pelo menos em tese, envolvia menos oportunidades em que a solução do caso dependia necessariamente da realização de valorações subjetivas.
A ascensão dos princípios a uma posição protagonista no ordenamento jurídico, conforme mencionado no tópico anterior, se revelou interessante do ponto de vista de uma reaproximação entre Direito e Ética e como instrumento para administração (aproximação) de justiça. Reduziu-se a possibilidade de se vivenciar atrocidades e atentados contra os direitos humanos “legitimados” pelo ordenamento jurídico, como se observou na Alemanha nazista ou mesmo nas ditaduras totalitárias da América Latina no terceiro quarto do século XX.
Por outro lado, agravou para o jurista do século XXI um problema cuja solução ainda não se consegue vislumbrar, qual seja, o problema da justificação das decisões judiciais. Se esta tarefa se revelava hercúlea num contexto positivista, tornou-se ainda mais difícil nas circunstâncias atuais. Como justificar, de forma racional, decisões baseadas fundamentalmente na ponderação de princípios?
Em obra dedicada ao estudo da teoria da argumentação jurídica, Manuel Atienza faz uma análise de algumas contribuições para o tema: a tópica de Viehweg, a nova retórica de Perelman e a lógica informal de Toulmin. Devido à natureza deste trabalho, aqui cabe apenas uma exposição das características principais sobre cada uma destas contribuições, ressaltando que se trata da visão de Atienza sobre cada uma delas.[21]
4.1 Breves notas sobre a Tópica
Desta forma, a tópica de Viehweg, como foi percebida por Atienza, poderia ser resumida como uma técnica do pensamento problemático que opera através do recurso à noção de topoi ou lugares-comuns cuja finalidade principal é a busca e exame de premissas que auxiliem a fundamentar a argumentação sobre determinado tema. O que a caracteriza é ser um modo de pensar no qual a ênfase recai nas premissas, e não nas conclusões.[22]
As premissas tópicas ou topoi constituem: “proposições que parecem verdadeiras a todos ou aos mais sábios, e dentre esses também a todos ou à maior parte, ou aos mais conhecidos ou famosos”.[23]Assim, a argumentação tópica é realizada através do recurso a premissas que são alvo de um consenso qualificado e a partir das quais a argumentação pode ser prosseguida de forma lógica. Ela parte, assim, de enunciados verossímeis e se desenvolve mediante um tecido de silogismos e não mediante longas deduções em cadeia.
Entretanto a tópica se revelou inadequada, ou pelo menos insuficiente, para a justificação de decisões em casos difíceis. É fácil perceber que ela se limita a sugerir um inventário de premissas utilizáveis na argumentação, mas não fornece critérios para estabelecer uma hierarquia entre eles. Ora, uma das questões mais importantes da metodologia do Direito atualmente, no que diz respeito à justificação de decisões judiciais, é possibilitar um controle crítico da ponderação de princípios. A tópica, assim, é insuficiente para o objetivo de atribuir racionalidade à decisão judicial.
4.2 Breves notas sobre a Retórica (moderna)
Em seguida Atienza analisa a proposta da retórica de Perelman como teoria da argumentação[24]. Esta proposta teria como origem a distinção entre raciocínio lógico-formal (dedutivo) e raciocínio dialético ou retórico. Na dedução a passagem das premissas para a conclusão é necessária, premissas verdadeiras implicam numa conclusão verdadeira (desde que decorra logicamente das premissas). Já a argumentação jurídica ocorreria no terreno do plausível. Os argumentos retóricos serviriam não para demonstrar uma verdade evidente, mas para demonstrar a plausibilidade de uma decisão.
A retórica seria um processo em que os elementos interagem constantemente, no que se distingue da concepção dedutiva baseada num raciocínio em cadeia. O encadeamento de idéias, segundo a concepção cartesiana, implicava em que a cadeia de proposições era tão forte quanto o elo mais fraco da cadeia. Se qualquer das proposições é refutada, a conclusão perde seu sustento. Na retórica, a queda de uma das premissas não implicaria necessariamente na queda da conclusão (decisão), uma vez que esta se baseia, geralmente, em premissas autônomas.
Devido à exigüidade deste trabalho, citam-se apenas mais duas das características da retórica de Perelman identificadas por Atienza. A primeira é que um dos pontos centrais da teoria de Perelman é a noção de auditório universal. Assim, o jurista deveria construir sua argumentação de forma a tentar convencer um auditório imaginário apenas com o uso da linguagem. A segunda é que, por se tratar de um discurso prático, não se pretende a objetividade, mas a imparcialidade.
Embora represente um desenvolvimento em relação à tópica[25], a retórica de Perelman não se revelou suficiente para uma teoria da argumentação jurídica ideal (ou próxima a este ideal). Entre as diversas críticas que foram dirigidas à referida teoria analisa-se apenas as duas que mais se relacionam com o objetivo do presente texto.
Assim criticou-se a extrema dependência da noção de força de um argumento em relação a fatores que ficariam de fora da possibilidade de controle crítico, o que, em última análise, apenas desloca o problema de um ponto da argumentação para outro. Neste sentido, a força do argumento dependeria da intensidade da aceitação pelo auditório, da relevância do argumento para os propósitos do orador e do auditório, da possibilidade de refutação e das reações de um auditório considerado hierarquicamente superior. Criticou-se ainda: a ausência de uma abordagem quanto à estrutura que o argumento deveria possuir (a relação entre as premissas e a conclusão); a ausência de previsão de regras sobre a combinação dos critérios que definem a força do argumento.[26]
4.3 Breves notas sobre a lógica informal.
A teoria da argumentação de Toulmin pretendeu deslocar a atenção da teoria lógica para a prática lógica, uma lógica aplicada na resolução de problemas práticos do cotidiano, fundamentada na forma como o ser humano naturalmente raciocina para este objetivo e, assim, escolheu como modelo a jurisprudência. Um argumento bem fundado seria aquele que resiste à crítica e é capaz de apresentar um caso que atenda aos requisitos exigidos para um veredicto favorável.[27]Por outro lado, a racionalidade do interlocutor está diretamente relacionada com sua abertura aos argumentos dos demais. Reconhecer a força das razões e procurar contestá-las é atitude racional. O mesmo não se diz da atitude que consiste em ignorar as razões contrárias ou contestá-las com asserções dogmáticas.
Conforme a teoria ora analisada, quatro elementos básicos distintos poderiam ser distinguidos num argumento: a pretensão, a razão, a garantia e o respaldo.[28] A pretensão constitui o ponto de partida e chegada no proceder argumentativo. É aquilo que se afirma inicialmente e sobre cuja correção se buscará convencer os demais interlocutores. As razões correspondem aos fatos que dariam ensejo à conclusão, mas ainda que o adversário concorde com as razões, pode discordar que delas decorra a pretensão formulada. As garantias são os enunciados gerais que permitem a passagem das razões para a conclusão (numa argumentação jurídica, as normas).
Finalmente, existem os respaldos que devem ser utilizados para demonstrar a validade, a relevância e o peso das garantias, principalmente quando há possibilidades diferentes de passar das razões para a pretensão cabendo ao interlocutor demonstrar que sua garantia é superior às demais. Enquanto os enunciados das garantias são hipotéticos o respaldo geralmente se exprime através de enunciados categóricos sobre fatos.
Fornece-se um exemplo a fim de facilitar uma visualização da teoria em funcionamento. Assim, numa argumentação com o fim de demonstrar o direito a uma indenização em decorrência de acidente de trânsito ter-se-ia: como pretensão a alegação da vítima de que tem direito à indenização; como razões, a narração das circunstâncias que envolveram o acidente; como garantia, o enunciado de dever-ser no sentido de que aquele que causa dano a outrem deve indenizar o dano; e como respaldo o art. 927 do Código Civil que estabelece a obrigação de indenizar para aquele que causa dano a outrem por ato ilícito.
Naturalmente, trata-se apenas de um exemplo simplificado de argumentação. Conforme Atienza:
A pretensão de um argumento pode funcionar também como uma razão a favor de uma nova pretensão; as razões podem se converter em pretensões, que precisam, portanto, de um novo argumento para ser justificadas; e a garantia também pode ser vista como a pretensão de um novo argumento, e, nesse caso, o que antes era o respaldo passará a cumprir, agora, a função das razões, colocando-se com isso a necessidade de uma nova garantia para passar das razões à pretensão etc.[29]
Ressalta-se ainda que os diferentes elementos da argumentação funcionam de forma interdependente e que, para que seja possível a argumentação e a discussão sobre a força dos argumentos é necessário que haja um ponto de partida em comum. Em última instância, o que funcionaria como respaldo final seria o senso comum.
Ao contrário do que ocorre na lógica dedutiva, em que a passagem das premissas para a conclusão ocorre de maneira necessária, na lógica informal, geralmente, as razões, a garantia e o respaldo prestam à pretensão um apoio não definitivo, que costuma se manifestar por meio de qualificadores modais como "presumivelmente" ou "provavelmente". Ademais, o apoio pode ocorrer apenas em determinadas condições. Determinadas circunstâncias chamadas de condições de refutação podem afetar ou aniquilar a força dos argumentos.
Após uma análise dos tipos de argumentos e os tipos de falácia (formas incorretas de argumentação), cuja reprodução não cabe na presente obra, Manuel Atienza faz algumas críticas à lógica informal exposta por Toulmin. Assim, a lógica informal se aproximaria melhor de uma teoria da argumentação capaz de fornecer uma espécie de guia para o exercício prático da argumentação. Aqui, o foco estaria nos argumentos, não nas técnicas argumentativas. Apesar do progresso, a lógica informal de Toulmin ainda não seria suficiente como teoria da argumentação porque continuaria padecendo de uma falta de mediação convincente entre os planos de abstração que representam o lógico e o empírico.
4.4 A Teoria da Argumentação de Robert Alexy
Provavelmente, a mais bem sucedida teoria da argumentação desenvolvida até hoje, pelo menos em termos de aceitação por outros doutrinadores, seja aquela que foi desenvolvida por Robert Alexy, ainda na década de 80 do século passado.
O autor parte do pressuposto de que, no limite, a fundamentação jurídica sempre diz respeito a questões práticas, ou seja, àquilo que é obrigatório, proibido e permitido. O discurso jurídico é, por isso, um caso especial do discurso prático geral, caracterizado pela existência de uma série de condições restritivas, às quais a argumentação jurídica se encontra submetida e que, em resumo, se referem à vinculação à lei, ao precedente e à dogmática[30].
Há quem considere que a teoria da argumentação desenvolvida por Alexy constitua uma adaptação da teoria do discurso de Habermas ao âmbito do Direito. Para Manuel Atienza: “A teoria de Alexy significa, por um lado, uma sistematização e reinterpretação da teoria do discurso prático habermasiana e, por outro lado, uma extensão dessa tese para o campo específico do Direito”.[31]
Para Alexy, o discurso jurídico se relaciona com a justificação de um caso especial de afirmações normativas, que são aquelas que expressam julgamentos jurídicos. Esta justificação ocorre em dois planos apartados. Na justificação interna busca-se fundamentar porque uma determinada conclusão decorre das discutidas. Na justificação externa busca-se fundamentar a correção e a validade das premissas aduzidas.[32]
O conceito de argumentação jurídica consiste na apresentação de um número de regras que devem ser seguidas e de formas que ela tem que assumir para que possa reivindicar a condição de racional. Se a discussão está de acordo com as regras e formas propostas, seu resultado pode ser chamado de correto. Como caso especial do discurso prático, o discurso jurídico é limitado pelas leis (válidas), pelos precedentes e pela dogmática, ocorrendo num âmbito mais restrito que o discurso prático geral, o que possibilita um maior grau de racionalidade e controle[33].
O próprio Alexy ressalta que a racionalidade não pode ser confundida com objetividade absoluta ou com a noção de certeza. As formas, regras e condições especiais que circunscrevem a argumentação jurídica permitem mitigar as incertezas que envolvem o discurso prático geral, mas não permite eliminá-las. Isto não retira a relevância do tema ora discutido. Mesmo nas ciências naturais, costumeiramente opostas ao Direito como paradigmas de cientificidade a certeza é inatingível. Assim, não é a certeza, mas a conformação com determinados critérios condições e regras que garantiria à jurisprudência seu caráter racional.[34]
A teoria da argumentação de Alexy envolve um intricado complexo de regras e procedimentos através dos quais defende que seria possível atingir um nível razoável de racionalidade nas decisões judiciais. Não é possível, nem de forma resumida, a reprodução de tais regras no presente trabalho, entretanto é possível ressaltar que a questão da falseabilidade não passou despercebida por Alexy, o que pode ser percebido entre outros, pelo seguinte trecho:
Se uma norma é apenas discursivamente possível, então mesmo com um consenso não se pode falar de justificação definitiva. Pode haver muitas razões para a rejeição de uma norma que tenha sido geralmente aceita até o momento. As interpretações de necessidade podem mudar. Pode-se revelar que o conhecimento empírico usado até aqui é inadequado. Certas conseqüências diretas e indiretas podem não ter sido levadas em conta. [...] As normas discursivamente possíveis, portanto, só devem ser consideradas justificadas por enquanto. Permanentemente, elas são falsificáveis.[35]