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O caráter laico do Estado brasileiro e as cartas psicografadas no tribunal do júri

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Agenda 23/07/2012 às 14:22

3 O TRIBUNAL DO JÚRI NO DIREITO BRASILEIRO

O também denominado Tribunal Popular tem sua origem discutida, contudo, a grande parte dos doutrinadores sobre o tema, afirma que o seu marco inicial foi a Magna Carta da Inglaterra, em 1215.

O Tribunal do Júri tem como fundamento a necessidade de que, para determinados delitos, o acusado seja julgado por pessoas populares, assim como ele. Nas palavras de Távora e Alencar (2010, p. 745):

A idéia do Tribunal popular é a de que os casos importantes sejam julgados por pessoas que formam a comunidade a qual pertence o acusado, tal como o acusado seja parte desta, vale dizer, a noção que se tem do júri popular é a de que o julgamento se dê pelos pares do réu.

 Em nosso País, inicialmente, surgiu pela primeira vez ainda no ano de 1822, no Brasil Império, tendo por fim julgar os crimes de imprensa. Para tanto, seguindo a linha de raciocínio de sua origem, era composto por 24 juízes de fato, que refletiam a imagem de cidadãos bons, honrados, patriotas e inteligentes. (GALVÃO, 2011, p. 126). Em âmbito constitucional, entretanto, apareceu pela primeira vez na chamada Constituição do Império, datada de 1824.

O Tribunal do Júri foi mantido, desta vez como garantia individual, pela Constituição da República, em 1891. Com exceção à Constituição outorgada no ano de 1937, marcada pelo início da ditadura no Brasil, todas as demais Cartas Magnas brasileiras instituíram a figura do Tribunal do Júri. (GALVÃO, 2011, p. 126).

Atualmente, a nossa Constituição Federal promulgada, de 1988, “reconhece o júri como garantia constitucional, assegurando a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII)” (MENDES;BRANCO, 2011, p. 531).

Tamanha importância dada pelo legislador constituinte ao Tribunal popular, que este foi elevado à condição de Cláusula Pétrea, não sendo possível a sua extinção por uma nova norma constitucional, podendo ter, entretanto, sua competência ampliada por lei. Trata-se de uma garantia individual.

O Tribunal popular é norteado por 4 (quatro) princípios, os quais constam do próprio texto constitucional, quando da exposição dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, em seu art. 5º, inc. XXXVIII, sendo estes: a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. [4]

Dentre os princípios apresentados, questiona-se o quão abrangeria a plenitude de defesa, ou o que poderia vir a ser utilizado pela defesa, seja técnica ou mesmo a autodefesa, perante o conselho de sentença.

A defesa técnica cabe ao profissional do direito, devidamente habilitado, podendo este valer-se “não só da utilização de argumentos técnicos, mas também de natureza sentimental, social e até mesmo de política criminal, no intuito de convencer o corpo de jurados” (TÁVORA; ALENCAR, 2010, p. 746) de sua tese.

A partir da análise das provas apresentadas durante a sessão do Júri, os jurados formarão os seus convencimentos, e votarão conforme tais. Diferentemente dos Juízes togados, os jurados não precisam motivar a razão de seus convencimentos, o que não afasta sua condição de imparcialidade, uma vez tratar-se, como se verá a seguir, de um servidor público, ainda que em colaboração com a Administração Pública.

3. 1 A FORMAÇÃO DO CONSELHO DE SENTENÇA

Como afirmado anteriormente, a grande motivação do instituto do Tribunal do Júri está no fato do acusado ser julgado por seus pares, os quais compõem o conselho de sentença.

Este conselho é composto por “cidadãos maiores de 18 anos de notória idoneidade”[5]. Ou seja, com exceção daqueles que em razão do exercício de cargo, função pública, mandato eletivo ou por situações particulares justificáveis (escusa de consciência) estão isentas da prestação do serviço do júri, todos estão obrigados, desde que convocados, a prestar o serviço do júri, e, uma vez sorteados, a compor o conselho de sentença.

O conselho de sentença será formado por 7(sete) jurados, os quais serão sorteados nome por nome pelo Presidente do Tribunal do Júri, sendo este último um juiz togado, podendo haver a recusa injustificada de até 3(três) pessoas, seja pela defesa, seja pela acusação. A decisão (veredicto) se dará pela maioria dos votos.

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Uma vez compondo o conselho de sentença, o cidadão estará exercendo serviço público relevante, como se verá a seguir.

Desta feita, ao ser composto por pessoas comuns, do povo, o tribunal popular trata-se “de uma instituição democrática” (ACQUAVIVA, 2006, p. 153).

3. 2 CONSELHO DE SENTENÇA: AGENTES PÚBLICOS POR DESIGNAÇÃO

O Estado atua por meio de seus servidores públicos. Através destes, seja de forma remunerada ou não, o Estado irá realizar suas atividades, de modo que os atos daqueles vincularão este, visando, sempre, a prevalência do interesse público sobre o interesse privado.

Para Di Pietro (2010, p.510, grifo da autora)

“servidor público” é a expressão empregada ora em sentido amplo, para designar todas as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício, ora em sentido menos amplo, que exclui os que prestam serviços às entidades com personalidade jurídica de direito privado.

Tais servidores poderão ter ou não vínculo com a Administração Pública, daí surgem os particulares em colaboração com o Poder Público, os quais poderão vir a receber remuneração.

 Nesta categoria, temos aqueles que atuam mediante delegação do Poder Público, os que são meros gestores de negócios, ou aqueles que agem mediante requisição, nomeação ou designação.

Estes últimos servidores são designados para o exercício de funções públicas relevantes, não possuindo vínculo empregatício, e, de um modo geral, não recebem remuneração. Cite-se como exemplo os jurados, no Tribunal do Júri. (DI PIETRO, 2010, p.518).

Enquanto investido na função de jurado, o particular será considerado servidor públicos, sendo dotado de suas prerrogativas, bem como sendo responsabilizado administrativamente, civilmente e criminalmente por seus atos, na mesma forma em que são os juízes togados.

Porquanto, o conselho de sentença, formado por servidores públicos, deverá ser guiado, dentre outros, pelos princípios que norteiam os demais servidores da Administração Pública, como os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

3.3 O JURAMENTO DO CONSELHO DE SENTENÇA

Quando da composição do conselho de sentença, o Juiz-presidente irá proferir a seguinte exortação: “Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça.” (GALVÃO, 2011.p. 128), devendo todos os jurados, levantados, responder que assim o prometem.

Diante do juramento a ser prestado pelo conselho de sentença, surgem as indagações sobre as expressões “imparcialidade”, “vossa consciência” e os “ditames da justiça”. Afinal, quais seriam os limites para cada expressão citada?

Primeiramente, o conceito de imparcialidade extraído do dicionário Melhoramentos – minidicionário da língua portuguesa (2000, p. 270) nos diz que ser imparcial é ser “justo. Que julga sem paixão”. No mesmo sentido, para Campos (apud GALVÃO, 2011, p. 130)

Examinar com imparcialidade: isto é, de forma isenta de preconceitos, paixões, de mente aberta para as provas a serem apresentadas e para os argumentos das partes.

Percebe-se que ao julgar as provas, defesas e acusações apresentadas, o corpo de jurados deve abster-se de qualquer pré-julgamento, bem como de manifestar-se conforme sua religião, uma vez que seu posicionamento deve ser dotado de neutralidade, ou seja, imparcialidade, não podendo permitir que posições pré-definidas influenciem na absolvição ou condenação do acusado.

Já a expressão “vossa consciência” reflete “a percepção íntima do que se passa em nós” (CAMPOS apud GALVÃO, 2011, p. 130), no caso, a percepção que se passa nos jurados, enquanto que agir conforme os ditames da justiça, requer dos jurados um posicionamentos em coerência com aquele adotado pela sociedade a que pertence.

Assim os jurados deverão utilizar-se das 3 expressões acima narradas de forma harmoniosa, onde uma não poderá se sobrepor a outra, como o fato de que a “vossa consciência” dos jurados não poderá ilidir a “imparcialidade”, tampouco os “ditames da justiça”.


4 O ESPIRITISMO

As questões espirituais são motivos de indagação da sociedade muito antes do que se possa imaginar. Relatos mostram exibições mediúnicas no Antigo Egito, quando do processo de mumificação dos mortos, o qual se justificava pelo fatos de que os antigos egípcios acreditavam em vida pós a morte. (LACERDA FILHO, apud GALVÃO, 2011, p. 20).

Somente no ano de 1857, a partir da codificação de perguntas e respostas pelo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, que ficou conhecido mundialmente pelo seu pseudônimo, Allan Kardec, a qual resultou no Livro dos Espíritos, a doutrina espírita tomou força. Devido ao sucesso do citado livro e suas posteriores edições, Allan Kardec divulgou o Espiritismo pela França e por todo o mundo.

Para o Kardec

O mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente a tudo. O mundo corporal é secundário, poderia deixar de existir, ou não ter jamais existido, sem que por isso se alterasse a essência do mundo espírita. Há no homem três coisas: 1º, o corpo ou ser material, análogo aos animais e animados pelo mesmo princípio vital; 2º, a alma 74 ou ser imaterial, Espírito encarnado no corpo; 3º, o laço que prende a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito. A alma é um espírito encarnado, sendo o corpo apenas o seu invólucro. Os Espíritos revestem temporariamente um invólucro, material perecível, cuja destruição pela morte lhes restitui a liberdade. (1944, p. 23 e 24)

No Brasil, no ano de 1865, em pleno Governo Imperial, na cidade de Salvador, foi criado o primeiro centro espírita brasileiro. Quase duas décadas depois, “como uma forma de se proceder pela unificação do movimento espírita, até então dissidente, foi criado em 02 de janeiro de 1884 no Rio de Janeiro a FEB- Federação Espírita brasileira” (GALVÃO, 2011, p. 35).

Conforme censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no ano de 2000, o Espiritismo já era citado por grande parte da população brasileira como sendo sua religião, alcançando a terceira colocação no Censo Religioso, confirmando, ainda mais, a pluralidade religiosa no Brasil há 12 anos.[6]

Ainda tratando do Brasil, pode-se atribuir ao Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier, a grande popularidade da doutrina Espírita.

O Espiritismo explica, também, os fenômenos de mediunidade, os classificando de diversas formas, o qual irá variar conforme o dom percebido pelo médium, dentre tais os “Médiuns escreventes”. Para Galvão (2011, p. 45) “este é o dom mais frequente de mediunidade, obtido por forma de psicografia (...) nesta modalidade, há a imperiosa necessidade da intervenção do médium.”

4.1 CARTAS PSICOGRAFADAS

As cartas psicografadas podem ser vistas de duas formas, seja como um fenômeno psíquico, bem como uma forma de comunicação das pessoas já falecidas, com o mundo dos vivos, por intermédio de uma pessoa viva. Apesar de ser utilizada por várias crenças, tornou-se mais popular através do espiritismo

A carta psicografada é uma prática da Religião Espírita, onde o médium, pessoa que segunda o espiritismo comunica-se com os espíritos dos mortos, recebe mensagens vinda do além, do pós-morte, de onde o espírito envia através do médium mensagens ao mundo dos viventes, familiares ou amigos escrevendo cartas e livros. (FERREIRA, 2010, p. 13)

Existem três formas de se psicografar uma carta, sendo o modelo consciente, o semi-mecânico e o mecânico.

As três formas se divergem conforme a consciência do interlocutor, ou seja, da pessoa que recebe a mensagem do morto. Deste modo, no modelo consciente, o médium tem consciência do que escreve, podendo, inclusive, influir naquilo que transmite ao papel, mesmo que atribua a autoria das cartas aos mortos; no modelo semi-mecânico, o médium tem consciência do que escreve, mas não pode modificar o conteúdo do que escreve; já a psicografia na forma mecânica é aquela em que o médium não tem qualquer controle sobre o que escreve, pois o espírito é quem comanda o braço e a mente daquele.[7]

Conforme ensina Pittelli (2010, p. 76), a caligrafia dos médiuns que escrevem mediante as formas semi-mecânica e mecânica podem variar conforme o espírito, chegando a se repetir quando o mesmo espírito se comunica mais de uma vez.

Em âmbito brasileiro, o mais popularmente conhecido médium escrevente é o Chico Xavier, o qual psicografou mais de 17 mil obras, e, teve algumas de suas cartas psicografadas utilizadas como meio de defesa nos Tribunais do Júri brasileiros[8] e inspiração para obras cinematográficas.

4. 2 AS CARTAS PSICOGRAFADAS NOS TRIBUNAIS DO JÚRI BRASILEIROS

As cartas psicografadas, na história jurídica do nosso País, foram utilizadas em diversos Tribunais desde o ano de 1944, no Tribunal do Júri, podemos citar 4 casos emblemáticos, e que geraram grande repercussão nacional.

O primeiro caso relatado se deu no ano de 1976, no Estado de Goiás, onde o réu José Divino Nunes fora absolvido pelo Tribunal do Júri, por seis votos a um.

No segundo caso, ocorrido em 1982 no Estado do Mato Grosso do Sul, o réu, o Sr. João Francisco M. de Deus, tendo sido o réu absolvido por unanimidade dos votos. (PITTELLI, 2010, p. 82)

O terceiro caso ocorreu no Estado do Paraná, no ano de 1982, desta vez, o réu Aparecido Andrade Branco foi condenado pelo Tribunal do Júri, por cinco votos a dois.

Ainda na década de 80, mais precisamente no ano de 1985, cartas psicografadas pelo médium Chico Xavier foram decisivas para inocentar, perante o conselho de sentença, o réu João Francisco de Deus, acusada de matar a sua mulher. (FERREIRA, 2010, p. 16)

O caso mais recente da utilização de cartas psicografadas pelo Tribunal do Júri se deu em 2006. Em um breve relato do caso citado, na cidade de Viamão, Rio Grande do Sul, a Sra. Iara Marques Barcelos, de 63 anos, fora acusada de ser a mandante do crime de homicídio do seu amante, o “de cujus” Ercy da Silva Cardoso. Iara teria contratado Leandro Rocha Almeida, caseiro do falecido, para executar o crime. O advogado da Iara juntou em sua defesa 2 cartas psicografadas pelo médium José Santa Maria. Com a ajuda destas, conseguiu a absolvição pelo Conselho de sentença da ré por cinco votos a dois. (FERREIRA, 2010, p. 16).

O caso em tela chegou ao TJ/RS, onde, em novembro de 2011, se manteve a decisão que absolveu a Iara, por não considerar que a decisão do Conselho de sentença tenha sido contrária às provas nos autos. Nas palavras do José Antônio Hirt Preiss: “a religião fica fora dessa sala de julgamento que é realizado segundo as leis brasileiras”. [9]

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALADO, Maria Amélia Giovannini. O caráter laico do Estado brasileiro e as cartas psicografadas no tribunal do júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3309, 23 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22273. Acesso em: 22 dez. 2024.

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