Resumo: O presente artigo apresenta o problema da globalização e da revolução tecnológica da informação do século XX, discutindo o componente ideológico dos múltiplos discursos da globalização. O texto aborda questões como os desafios do Estado e do Direito na contemporaneidade, o difícil controle do mercado de capitais e as mudanças sociais e econômicas causadas pela revolução tecnológica.
Palavras-chave: Globalização. Revolução tecnológica. Capitalismo global. Estado.
1.A questão da globalização
No dia 06 de maio de 2010, um operador de ações do Citigroup cometeu um erro de digitação. Ao vender ações da Procter & Gamble na bolsa de Nova York, o operador do Citigroup, que pretendia vender um milhão de ações, emitiu uma ordem de venda de um bilhão de ações, causando um pânico no mercado. Esta operação fez as ações da Procter & Gamble despencarem 37% em minutos (QUEDA..., 2010). Com a queda, computadores das empresas que operam em bolsa passaram a emitir ordens de venda automáticas, passando a vender ações a qualquer preço.
Num exemplo extremo, as ações da empresa Accenture, que valiam US$ 40,00 no início daquele dia, passaram a ter valor próximo de zero. Como resultado, o principal índice da bolsa norte-americana teve em poucos minutos uma queda de mais de 9%, a maior queda em mais de 20 anos. Quase simultaneamente, no Brasil, a Bolsa caiu 6,38% em razão do pânico norte-americano.
O clima de mau humor dos especuladores teria sido agravado por protestos na Grécia contra o pacote de ajuste fiscal do governo e por declarações do Presidente do Banco Central Europeu (CRISE..., 2010). Curiosamente, neste dia, a bolsa da Grécia fechou em alta.
Duncan Niederauer, presidente da empresa que controla a bolsa de Nova York (NYSE Euronext), comentou o episódio da seguinte forma: “É a estrutura de mercado que escolhemos nos Estados Unidos. Devemos aceitar que estas coisas ocorram em períodos de extrema volatilidade" (CRISE..., 2010).
Os parágrafos acima, retirados das páginas dos noticiários recentes e encarados com assombrosa naturalidade pela sociedade atual, soariam absurdos para uma pessoa que vivesse na primeira metade do século XX. Seria incompreensível que centenas de bilhões de dólares pudessem evaporar em minutos por um erro de digitação. Seria impossível imaginar máquinas dando ordens de investimento automaticamente. Pareceria improvável que um protesto ocorrido na Grécia pudesse, em minutos, influenciar os preços no Brasil. A própria ideia da existência de um Banco Central Europeu, com poder para determinar como um Estado Nacional deveria conduzir a sua política interna, teria soado ridícula. O caso acima, o qual seria anedótico se não fosse preocupante, exemplifica a complexidade e os desafios do mundo globalizado atual.
Dizer que houve uma queda de 9% do índice da bolsa de Nova York é minimizar um evento, um eufemismo para circunscrever a informação a um grupo pequeno de especialistas e economistas. O que não se expõe claramente é que uma redução desta proporção representa, na prática, que mais de US$ 1.500.000.000.000,00 (um e meio trilhões de dólares) simplesmente desapareceram ao longo de um dia, isto somente considerando os valores de mercado das ações das empresas listadas pela bolsa de Nova York[1]. Para que se tenha uma ideia do tamanho do problema, este valor representa mais de cinco vezes os prejuízos causados por todos os desastres naturais ocorridos em todo o mundo ao longo de 2008 e 2009[2].
Devemos realmente aceitar como normais e inevitáveis eventos como este?
Ainda estamos tentando entender todas as repercussões do fenômeno da globalização e o verdadeiro alcance da revolução tecnológica desencadeada a partir da segunda metade do século XX. Não é exagerado afirmar que estamos diante de um acontecimento tão importante quanto foi a Revolução Industrial no século XVIII.
Passados dois séculos, uma vez mais a sociedade se põe numa era de avanços tecnológicos que desafiam a capacidade do Estado de regular a vida em comunidade. Está o Estado pronto para este admirável mundo novo, onde o tempo é instantâneo, a realidade é virtual e o conhecimento é descartável?
A proposta do presente artigo é diferenciar a realidade do discurso, de forma a se evitar que o Estado e o Direito se tornem um mero instrumento de dominação e imposição ideológica. Neste contexto, até que ponto a globalização é uma realidade, devendo o Estado e o Direito a ela se adaptar, ou um discurso ideológico, o qual deve ser discutido democraticamente pela sociedade?
Sobre tal questão, pretendemos lançar algumas luzes no presente artigo, buscando separar, dentro do tema da globalização, a realidade do discurso, sem a pretensão de esgotarmos a discussão.
2.A globalização como fato
Ante a pluralidade de significados que o termo globalização pode adotar no senso comum, devemos, inicialmente, definir de forma mais precisa o que estamos designando por globalização. Adotaremos como ponto de partida de nossa investigação o conceito proposto por Anthony Giddens (2005, p. 568), segundo o qual a globalização é um “[a]umento da interdependência entre diferentes povos, regiões e países do mundo à medida que as relações sociais e econômicas passam a abranger o mundo inteiro.”
Portanto a globalização é um processo social e econômico, o qual foi impelido pelo desenvolvimento tecnológico e por fatores políticos. A mudança tecnológica intensificou a velocidade e alcance da interação entre pessoas ao redor do mundo, alterando a percepção que temos do tempo e do espaço (compressão do tempo-espaço). Um segundo aspecto da globalização, de caráter econômico, foi a integração e reestruturação da economia global, conduzidas principalmente por corporações transnacionais (GIDDENS, 2005, p. 60-65).
A globalização pode ser compreendida de duas formas: como fato e como valor (MOREIRA NETO, 2008, p. 60-61). A globalização como fato pressupõe uma abordagem do fenômeno como um dado objetivo, considerado do ponto de vista histórico. Nesta acepção, a globalização poderia ser considerada como uma dilatação dos horizontes de interesses das sociedades humanas. Abordada a globalização como fato, ou seja, como realidade histórica, pouca margem haveria para dissensos.
Segundo esta mesma classificação, a globalização pode também ser abordada como um valor, este sim um dado subjetivo, passível de controvérsias e de ponderação (MOREIRA NETO, 2008, p. 99-103). Nesta acepção, a globalização poderia ser vista como algo bom ou mau.
Partiremos, portanto, da abordagem proposta para analisarmos a globalização nestas duas acepções: como um fato histórico e como um valor. A esta segunda abordagem, estamos designando de “discurso da globalização”. Partindo-se destas premissas, analisaremos, primeiramente, a globalização como fato, ou seja, como realidade histórica.
Francisco Cortés Rodas (2007, cap. IV) entende que a globalização é o resultado de um entrelaçamento expansivo da economia mundial. Este entrelaçamento estaria relacionado com a ampliação transnacional dos mercados, do comércio e da produção (RODAS, 2007, cap. IV; DUPAS, 2001, cap. 2). A globalização não é um processo repentino e espontâneo da história recente e, sim, a continuação do processo expansivo do capitalismo iniciado no final do século XIX. Este impulso globalizador foi favorecido pela expansão de novas tecnologias da informação, de comunicação, transporte, processamento eletrônico de dados e automação dos processos produtivos, tornando-se mais intenso a partir da década de 1970 (RODAS, 2007,0p. 110; DUPAS, 2001, cap. 2).
Entendemos que a definição de Francisco Rodas deve ser ampliada, pois a globalização é mais do que um processo econômico (DINIZ, 2001, p. 13-22). Concordamos com Eli Diniz, quando afirma que entender o processo de globalização como uma dinâmica puramente econômica seria uma simplificação, pois se trata de um fenômeno multidimensional, que obedece a decisões de natureza política. A globalização não estaria comandada por forças inexoráveis e nem marcada exclusivamente por relações de natureza econômica. Parece-nos que aqui Eli Diniz identifica o segundo componente do processo de globalização, que é o ideológico, do qual trataremos mais adiante.
A globalização segue a lógica histórica da expansão dos interesses e de sua consequente instrumentalização pelo poder. Neste sentido, a globalização não é um fenômeno inteiramente novo (MOREIRA NETO, 2008, p. 99-100; BARBOSA MOREIRA, 2002, p. 3-14). De fato, a humanidade já passou por outros momentos de globalização, como a globalização cultural do mundo helênico, na antiguidade; a globalização política e militar do antigo Império Romano; a globalização religiosa da expansão do catolicismo; e mesmo uma globalização econômica, na época dos descobrimentos e das colônias, pela ampliação dos impérios português e espanhol (MOREIRA NETO, 2008, p. 99-100).
Os avanços tecnológicos da segunda metade do século XX foram determinantes para o impulso do atual processo de globalização. Manuel Castells (2008, p. 67-71) aponta que no final do século XX um novo paradigma tecnológico teria se organizado em torno da tecnologia da informação, capaz de operar transformações, induzindo um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, sociedade e cultura. Esta revolução tecnológica tem a mesma importância da revolução industrial do século XVIII (CASTELLS, 2008, p. 68).
O sentido que Castells (2008, p. 71) usa para o termo revolução tecnológica é o de um amplo aumento repentino e inesperado de aplicações tecnológicas, capazes de transformar processos de produção e distribuição, criar uma enxurrada de novos produtos e mudar a localização das riquezas e do poder no mundo. A revolução tecnológica seria um padrão de descontinuidade, cuja característica é a penetrabilidade, ou seja, a sua capacidade de penetração em todos os domínios da atividade humana.
Diferentemente das revoluções tecnológicas pelas quais já passou a humanidade, o cerne da transformação que estamos vivendo refere-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação. As novas fontes de energia e a máquina a vapor foram determinantes para a revolução industrial do séc. XVIII e XIX. Este papel agora é ocupado pela tecnologia da informação (CASTELLS, 2008, p. 91-98).
Mas teria a revolução da tecnologia da informação determinado o processo de globalização? Até certo ponto, a disponibilidade de novas tecnologias foi uma base fundamental para o processo de reestruturação econômica dos anos 80 (CASTELLS, 2008, p. 98). Todavia, o resultado histórico dessa estratégia parcialmente consciente é muito indeterminado. O que parece razoável se afirmar é que as duas questões, globalização e revolução tecnológica da informação, estão relacionadas, ainda que seja difícil determinar uma relação de causa e efeito entre ambas.
A atual globalização é, ao mesmo tempo, uma fato e uma ideologia (CERVANTES, 2008, p. 32-44). A revolução tecnológica e sua influência na vida contemporânea são um fato, provavelmente irreversível. Todavia, podemos identificar na globalização também um movimento ideológico, caracterizado pela imposição de um modo único de pensar (CERVANTES, 2008, P. 33), segundo uma interpretação política que defende um menor controle estatal nas relações econômicas.
Podemos, assim, estabelecer alguns pontos. A revolução tecnológica ocorrida a partir dos anos 70 do século XX, particularmente nas áreas de comunicação e informática, foi fundamental para o processo atual de globalização. Tal revolução tecnológica não foi um simples acúmulo de tecnologia ao longo dos anos e, sim, um evento de ruptura, o qual gerou uma alteração no paradigma tecnológico estabelecido na primeira metade do século XX. Este salto tecnológico foi capaz de alterar a percepção das pessoas em relação ao tempo e ao espaço, aumentando a velocidade das interações sociais e praticamente anulando a barreira geográfica. É razoável se concluir que esta mudança tecnológica influenciou diversos aspectos da vida humana, não se circunscrevendo ao aspecto econômico.
Pode-se afirmar, também, que a atual globalização faz parte de uma tendência histórica de ampliação dos interesses locais para globais, cujo principal diferencial foram os avanços tecnológicos da segunda metade do século XX. Desta forma, podemos concluir que este aspecto da globalização pode ser considerado como um fato histórico.
Todavia, como se detalhará, a reestruturação econômica e política ocorrida a partir da década de 80 do século XX não é uma decorrência inexorável desta mudança tecnológica e social. Tal processo foi, na verdade, uma opção política e ideológica, não uma consequência implacável de avanços tecnológicos. Este segundo aspecto da globalização será tratado, portanto, como o discurso da globalização.
3.A globalização como discurso
A queda do muro de Berlim e o colapso do socialismo soviético marcaram o final da disputa ideológica acerca de alternativas ao capitalismo. Estes fatos permitiram a elaboração de um novo discurso hegemônico, definindo um sistema que podemos chamar de capitalismo global (DUPAS, 2006, p. 90). Para os defensores do livre mercado global, vulgarmente nominados como neoliberais, os benefícios da globalização do mercado seriam capazes de, por si só, eliminar a pobreza e as guerras, além de tornar obsoleta a figura do Estado Nacional (DUPAS, 2006, p. 90).
Particularmente preferimos utilizar o termo libertário, ou de defesa do livre mercado, ao invés do termo neoliberal, o qual, além de impreciso, possui uma carga ideológica exagerada. Usando uma terminologia mais apurada, verificamos um retorno das teses libertárias (libertarians) e utilitárias do século XVIII, agora apresentadas em versões mais modernas e sofisticadas, as quais não se confundem com o pensamento liberal.
Temos, aqui, que distinguir os liberais (liberals) dos libertários (libertarians). Para os libertários, quando o Estado obriga o indivíduo, pela tributação, a ajudar o próximo, está violando direitos individuais. Esta corrente defende a existência de um Estado mínimo, rejeitando a noção de ser a justiça social um dever estatal, pois tal uso do aparato coercitivo estatal comprometeria as liberdades inerentes ao homem. Já os liberais veem a sociedade como uma combinação das distintas concepções individuais acerca do bem e da vida digna, devendo estas diversas concepções serem igualmente respeitadas pelo Estado (FARIA, 2000, p. XVIII).
Este novo discurso de defesa do livre mercado tem suas origens na década de 70 do século XX. Na década de 70, o capitalismo estava em crise. Economistas e teóricos identificaram um estancamento do aumento de produtividade e um crescente desemprego nos países desenvolvidos (RODAS, 2007, p. 111). As causas destes problemas foram identificadas por alguns teóricos libertários como sendo os elevados custos do trabalho, dos benefícios sociais e assistenciais e do Estado de bem-estar. A fórmula proposta por esta corrente de pensamento foi a diminuição dos custos do trabalho por três medidas simultâneas e complementares: automação dos processos produtivos, flexibilização dos contratos de trabalho e desregulamentação dos mercados (RODAS, 2007, P. 111).
As medidas de liberalização econômica defendidas por estes economistas eram justificadas, à época, pelo futuro aumento da riqueza global que tais ações trariam. Assim, as mazelas que seriam causadas pelo desmonte do Estado de bem-estar seriam compensadas pelos ganhos de produtividade. Neste cenário, os mercados dariam conta de neutralizar a pobreza e a miséria (RODAS, 2007, P. 109). Trata-se de uma quebra do modelo de capitalismo estabelecido na primeira metade do século XX, de influência keynesiana.
O modelo de capitalismo hegemônico na primeira metade do século XX previa que o progresso ocorreria consolidando-se um ciclo virtuoso de crescimento econômico, baseado no fordismo e no taylorismo como processo de produção (DUPAS, 2006, p. 138-139). Ele seria apoiado numa intervenção seletiva do Estado, que investiria em grandes empreendimentos de infraestrutura e forneceria capital a baixo custo para atividades estratégicas. Caberia ao Estado, também, a manutenção de uma rede de benefícios sociais à sua população, garantindo a continuidade do consumo e realimentando o círculo virtuoso. Os avanços tecnológicos supririam o sistema de produção com inovações, garantindo a produção de novos produtos, de forma a manter a expansão do consumo e o pleno emprego. A evolução tecnológica seria um motor capaz de garantir um permanente impulso para frente, o que avalizaria o constante crescimento econômico de um país (DUPAS, 2006). O Estado de bem-estar serviria para diminuir as distorções do sistema e tornar o capitalismo mais justo.
Como se explicar, então, que após a revolução tecnológica da segunda metade do século XX os empregos formais sumiram e a proteção social passou a ser a vilã do desenvolvimento?
Conforme Dupas (2006, p. 138-139), o progresso obtido pelo modelo acima descrito, adotado no pós-guerra, começou a apresentar seus limites já na década de 1960.
Jacques Chevalier (2009, p. 29) aponta um processo de reavaliação do lugar do Estado e do fim do protetorado estatal nos anos 1970, época na qual teria se encerrado o movimento de expansão estatal. Para Chevalier, esta reavaliação ocorre pela pressão de três conjuntos de fatores: ideológicos, econômicos e políticos. Os fatores ideológicos seriam uma crítica ao Estado totalitário, às disfunções do Estado de bem-estar e do desvio estatal nos países em desenvolvimento. O fator econômico seriam as crises do petróleo. Os fatores políticos seriam o retorno do pensamento libertário e a decadência dos regimes de partido único.
A crise do Estado de bem-estar ocorreu em dois tempos. Primeiramente, na década de 1970, com a crise da representação e da legitimidade estatal e com o reaparecimento do tema da ineficiência do Estado. Começa-se a culpar o intervencionismo estatal, que prejudicaria a economia de mercado, e as políticas sociais, que não permitiriam reduzir eficientemente as injustiças e desigualdades, além de produzirem efeitos perversos, como o incentivo ao ócio e ao assistencialismo. O Estado passa a ser percebido como opressivo e as políticas sociais como um mecanismo de transformação do cidadão em um assistido passivo e irresponsável (CHEVALIER, 2009, p. 29).
A segunda fase da crise do Estado de bem-estar ocorreu com a subida ao poder do governo de Margareth Thatcher, no Reino Unido, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, no final dos anos 70 e início dos 80. Este fato político permitiu o surgimento de uma agenda de ataque ao Estado. As intervenções estatais e regulamentações exageradas, desordenadas e ineficazes seriam a fonte de todos os males da sociedade (CHEVALIER, 2009, p. 30). Em última análise, para este grupo político, seria o Estado de bem-estar social o culpado pela crise econômica estrutural dos países desenvolvidos nos anos de 1970.
Gilberto Dupas (2006, p. 139) apresenta uma teoria para a crise estrutural da economia dos anos 70. Entre outros fatores, o significativo investimento em tecnologia teria gerado um ininterrupto aumento da capacidade produtiva, sem o correspondente aumento da demanda, o que teria gerado sobras de produção e capacidade ociosa no setor empresarial, com perdas de lucratividade. Esta sobrecapacidade industrial, aliada ao aumento da concorrência internacional, teria gerado uma crise estrutural.
A busca de alternativas para o investimento com maior retorno fez a classe empresarial deslocar, a partir dos anos 70 e 80, recursos da produção para o setor financeiro. O resultado foi a queda da taxa de crescimento e o aumento do desemprego nos países industrializados. Os problemas da economia se refletiram no Estado de bem-estar social, que viu seu custo aumentar justamente pelo maior número de desempregados e dependentes da ajuda estatal. O aumento das despesas públicas gerou um desequilíbrio nos balanços de pagamento e aumento da dívida pública, gerando um ciclo decrescente de estagnação e inflação (DUPAS, 2006, p. 140). Era o fim do consenso keynesiano-fordista.
Não pretendemos, no presente estudo, esgotar a análise dos motivos da estagnação econômica e crise estrutural deste período. Nossa intenção é analisar a influência desta crise na mudança do discurso ideológico. A crise econômica dos anos 70 e 80, a conjuntura política, o alto endividamento estatal e o questionamento do papel do Estado de bem-estar criaram as condições para a difusão, a partir dos anos de 1980, do que podemos chamar de “discurso da globalização”.
Alguma solução havia de ser tomada para resolver o problema econômico estrutural e salvar o capitalismo. Assim, neste contexto, foram escolhidos como culpados o Estado, o excesso de regulamentação e os sistemas de proteção social. Os salvadores seriam o mercado e a liberdade econômica. Há que se apontar não haver evidência empírica que sugira que a crise tenha sido causada, de fato, pelo Estado ou pelo excesso de regulamentação. Tal opção foi mais ideológica, apoiada por uma teoria econômica libertária, do que baseada em evidências científicas. É possível até mesmo se supor que tenha ocorrido justamente o contrário: a falta de uma atuação firme do Estado no mercado de petróleo pode ter tido um papel fundamental no choque do petróleo de 1979, permitindo que o mercado acumulasse reservas de petróleos elevadas para lucrar na especulação e na valorização do produto no momento de escassez (VERLEGER JR., 1979, p. 13), uma das causas fundamentais da crise econômica de 70-80.
A adesão ao pensamento libertário reintroduziu a noção de que a competição seria capaz de resolver, por si mesma e de maneira automática, todos os problemas sociais. O discurso do livre mercado afirma a necessidade de que a lógica e a dinâmica do mercado determinem todos os aspectos da vida moderna, supondo a liberdade econômica como um requisito da liberdade política (RODAS, 2007, 130-131). Esta ideologia se converteu num programa político, o qual, aliado a uma teoria econômica de influência libertária, pretendeu ser visto como um fato científico, uma fidedigna descrição da realidade, ainda que tal discurso fosse desprovido de provas empíricas.
A aliança entre o discurso ideológico de defesa do livre mercado com a teoria econômica permitiu que teóricos libertários não se apresentassem por tal título: são raros os defensores explícitos do discurso do livre mercado (ou do neoliberalismo). Isto porque os patronos deste discurso não o apresentam como um discurso ideológico ou político e, sim, como uma verdade científica da ciência econômica. A liberdade de mercado seria, portanto, uma lei natural da economia a ser revelada pelos iniciados na ciência econômica ao público em geral, para a qual não há alternativa possível (RODAS, 2007, p. 130-131).
Mas não teria sido o livre mercado uma decorrência da revolução tecnológica do século XX? Concordamos com a ideia de Manuel Castells (2008, p. 44-45) de que a tecnologia não determina a evolução histórica ou a transformação social. Mas a tecnologia, ou sua falta, incorpora a capacidade de transformação das sociedades.
A simples introdução da tecnologia da informação e da comunicação, portanto, não foi a causa determinante da transformação do capitalismo ocorrida na parte final do século XX. Defendemos que esta questão somente pode ser inteiramente compreendida à luz das opções políticas adotadas e do pensamento libertário.
Sem os avanços tecnológicos da informática e das comunicações, a globalização da economia não seria operacionalmente viável. Sem as grandes corporações transnacionais, não haveria recursos financeiros, organizacionais e econômicos para a integração global das economias e da produção (GIDDENS, 2005, p. 60-66). Todavia, nem a tecnologia, nem as empresas transnacionais poderiam, sozinhas, ter desenvolvido a economia global nos moldes do livre mercado. A adesão ao modelo de capitalismo global foi uma opção política, paradoxalmente tomada pelos próprios governos.
Segundo Manuel Castells (2008, p. 178-179), as bases do capitalismo global foram adotadas pelo G-7[3] e implementadas por três organismos auxiliares: o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial e, posteriormente, pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Esta política estava pautada em três aspectos centrais: a desregulamentação da atividade econômica, particularmente do mercado financeiro; a liberalização do comércio e dos investimentos internacionais, com a livre entrada e saída de capitais e produtos pelos diversos países; e a diminuição do Estado, com a privatização de empresas estatais e reestruturação dos sistemas previdenciários (CASTELLS, 2008, p. 178).
Aqui, há que se fazer uma clara ressalva. Não compartilhamos com a ideia simplista, bastante difundida no senso comum e já obsoleta, que atribui ao FMI, à OMC e ao Banco Mundial a culpa por todas as mazelas dos países latino-americanos. Os problemas econômicos e sociais da América Latina são complexos e muito mais antigos do que o processo de globalização. Não pretendemos analisar nestas breves páginas todas as causas de todos os problemas da América Latina. Entendemos, assim, que seria falacioso e fantasioso pretender encontrar nos mecanismos de abertura do mercado econômico a causa de todos estes males. O que pretendemos analisar é tão somente o papel que estes organismos exerceram na liberalização econômica e na abertura dos mercados, questão esta de escopo bem menor.
Podemos apontar a cronologia desta mudança política no início na década de 70, particularmente em 1974, quando os Estados Unidos aboliram os controles do capital financeiro internacional (CASTELLS, 2008, P. 179). Esta fase marca o fim da era Bretton Woods, com o término do padrão-ouro e o início da política de câmbio flutuante. Assim, passou-se a ter o dólar-flexível, uma moeda central usada como referência, a qual não estava atrelada a nenhum ativo real. Com ativos referidos em dólar, os proprietários passaram a ter acesso aos mercados mais líquidos, com o dólar sendo usado como segurança e referência contratual (METRI, 2004, p. 3-5). A flexibilização do dólar e a quebra do padrão-ouro ocorreram simultaneamente com a desregulamentação da economia, através de dois processos repetidos por outros países integrados ao sistema monetário internacional: liberalização dos fluxos financeiros internacionais, que significa dizer a remoção dos controles sobre os movimentos financeiros entre residentes e não-residentes; e a desregulamentação dos sistemas financeiros nacionais, ou seja, a redução das restrições internas, de natureza legal e institucional, às atividades financeiras. Como efeito destes processos, houve um aumento do volume e da mobilidade dos fluxos de capitais. Todavia, este aumento de volume veio acompanhado de uma ampliação da instabilidade cambial. Estudo de Maurício Metri (2004, p. 6), comparando as cotações do marco, do dólar e do iene, demonstra bem o aumento de volatilidade destas moedas a partir dos anos 70 e, mais agudamente, dos anos 80.
A década de 1970 é o berço de novas criações do mercado financeiro, introduzindo-se novos produtos e derivativos de maior volatilidade e risco. Em 1972, em Chicago, foi criado o mercado de opções (CASTELLS, 2008, p. 179). Em 1975, é lançado o primeiro contrato futuro de taxa de juros. Os mercados de hedge e derivativos, criados justamente para dar maior estabilidade financeira contra as variações cambiais e flutuações do mercado, acabaram sendo o alicerce da especulação financeira (METRI, 2004, p. 6).
A Inglaterra aboliu os controles sobre a bolsa de valores em 1980 e atingiu a desregulamentação completa do mercado financeiro em 1987. Processos similares de desregulamentação financeira ocorreram na França, na Alemanha, em Hong Kong e em Cingapura, nos anos 80 (CASTELLS, 2008, p. 180).
Verificamos, portanto, que o processo de desregulamentação dos mercados financeiros ocorreu paralelamente à revolução tecnológica, sendo mais uma resposta à crise econômica dos anos 70 do que uma consequência dos avanços na tecnologia da informação.
A opção política de defesa do livre mercado teve seu primeiro reflexo na Europa, com o desastre econômico do governo Miterrand, na França, no início dos anos 80. Miterrand adotou uma política de redução das jornadas de trabalho, aumento de salários e de benefícios sociais, sem considerar o alto nível de integração então já existente nas economias europeias. A reação dos mercados foi forte. Seu governo foi obrigado a desvalorizar o franco e passar por uma guinada completa na sua política econômica (CASTELLS, 2008, p. 180).
Num mundo de economia globalizada e integrada, com livre fluxo de capitais, não é difícil se entender não ser mais possível a um Estado Nacional mudar, de forma isolada, a agenda política. Trata-se de uma profecia autorrealizável: o Estado que pretender fugir das regras do livre mercado acaba por afastar o capital internacional, que só tende a investir nos Estados que concordem com as regras do livre mercado. Com o afastamento do capital internacional e das empresas transnacionais, o destino destas economias é estagnar.
Como aponta Ulrich Beck (1999, p. 25-27), o processo de globalização, aliado às políticas de defesa do livre mercado, acabou por minar a capacidade dos Estados nacionais de estabelecerem a sua agenda política e econômica. A abertura dos mercados permitiu que a produção fosse repartida ao longo do globo. As empresas transnacionais exportaram os empregos para os países onde os custos do trabalho fossem mais baratos. Os investimentos seguiram para onde havia maior retorno, com menor regulação e tributação. Neste contexto, as empresas passaram a poder decidir onde estariam as diversas etapas da sua produção, aonde investiriam e aonde pagariam impostos, sendo tais locais independentes do destino dos bens e produtos. Assim, a balança de poder se inverteu: o mercado passou a poder controlar os governos, barganhando pelas melhores condições tributárias, melhor infraestrutura e menor regulação. Se um determinado país parece ser muito caro ou pouco amigável aos investimentos, passa a ser punido pelo mercado, com o afastamento dos investidores e a retirada do capital, gerando uma crise. Tal circunstância eventualmente acaba forçando o país a rever a sua política econômica (BECK, 1999, p. 25-27).
Pois bem, as novas condições do livre mercado forçaram os governos a competirem entre si pelo menor custo, menor carga de impostos e melhores investimentos em infraestrutura e logística. Esta nova conjuntura permitiu a popularização do conceito de social democracia, denominada de política da “terceira via” por Giddens (2005, p. 355-356), também chamada de “novo trabalhismo”. A política de terceira via buscaria aliar um equilíbrio entre os valores da justiça social e da solidariedade com as realidades da nova ordem global. Esta corrente política adotou um discurso de pragmatismo econômico, aderindo plenamente aos princípios da economia de livre mercado, cujas imperfeições seriam mitigadas por uma agenda social (CASTELLS, 2008, p. 180). Podemos apontar como símbolos deste tipo de política os governos de Felipe Gonzales, na Espanha, e Helmut Kohl, na Alemanha.
Considerando os riscos de “punição pelo mercado” que os países que não aderissem à agenda econômica liberal corriam, não é de se admirar que, no final do século XX, 13 dos então 15 países da União Europeia fossem administrados por governos sociais democratas, os quais, ainda que com vernizes ideológicos distintos, praticavam esta mesma estratégia pragmática no campo econômico (CASTELLS, 2008, p. 181).
Na década de 90, a expansão da globalização foi institucionalizada e passou a ser difundida mundo afora através de mecanismos formais. Um pacote pronto de medidas econômicas heterodoxas concebidas na Universidade de Chicago, no MIT e em Harvard, popularizado como “Consenso de Washington” (BRESSER-PEREIRA, 1991, p. 5), passou a ser imposto aos países pela tríade Banco Mundial, FMI e OMC.
Na verdade, o poder destas instituições era mais simbólico do que econômico. A aprovação das políticas econômicas nacionais dos diversos países por estas instituições era um selo de qualidade, que significava a adesão às regras do novo capitalismo global. Somente depois da abertura da economia destes países e adesão à ideologia do livre mercado é que haveria a entrada do capital internacional. Os países que se recusassem a adotar o Consenso de Washington virariam párias do capitalismo e estariam condenados ao ostracismo e isolamento econômico (CASTELLS, 2008, p. 182). Trata-se, aqui, de uma profecia autorrealizável: os países que não aderissem às regras do livre mercado iriam ter um desempenho econômico ruim precisamente porque as estruturas do mercado puniam os países que não aderissem à lógica do livre mercado.
Qual motivo teria levado os diversos governos a abraçarem essa imposição em detrimento do seu próprio poder de tomar decisões políticas no campo econômico? A questão é complexa, e passa, como aponta Castells (2008, p. 183), pelo contexto ideológico, pelos interesses pessoais das pessoas no poder e pelo ganho político trazido por esta adesão.
Além disso, a enorme massa de dinheiro internacional, gerada pela especulação cambial e pela desregulamentação do mercado de capitais e derivativos, ainda que virtual, ou seja, desatrelada de ativos concretos, passou a exercer um poder muito real, sendo capaz de gerar crises e desastres econômicos (DUPAS, 2001, p. 113). Este poder financeiro provavelmente foi suficiente para convencer, ou mesmo intimidar, os demais Estados nacionais a adotar o modelo de livre comércio.
Concordamos particularmente com a explicação oferecida por Castells (2008, p. 185), relativa ao interesse político dos novos líderes que assumiram o governo dos seus países no final da década de 1980 e início dos anos 90. A maioria destes novos líderes chegou ao poder em consequência de uma situação econômica desfavorável em seus países e buscavam consolidar o poder melhorando o desempenho econômico nacional. E, de fato, a integração de seus países ao mercado global foi uma solução pragmática que garantiu o crescimento econômico destes países. Foi assim com Menem na Argentina, Felipe Gonzales na Espanha, Rajiv Ghandi na Índia, Fujimori no Peru, Jiang Zemin e Zhu-Rongji na China, Yeltsin na Rússia e, no caso brasileiro, com o governo Fernando Henrique.
No Brasil, o plano real e a subsequente era Fernando Henrique Cardoso são um exemplo didático da agenda da terceira via. A regra para o sucesso era conhecida: privatização das grandes empresas estatais; abertura de mercados estratégicos, como telecomunicações, energia, petróleo, transportes, mineração e infraestrutura ao investimento internacional; reforma dos sistemas previdenciários; implementação das agências reguladoras; diminuição da intervenção estatal na economia; corte de gastos públicos; estabilização inflacionária; e adesão ao sistema de câmbio flutuante. Como ocorreu nos países que aderiram à política da terceira via, as políticas econômicas de liberalização foram associadas a uma agenda de gastos sociais. O resultado positivo era previsível e já tinha sido amplamente testado em solo europeu, ainda que possa se reconhecer o mérito da política adotada. A adesão a estas regras garantiu um “selo de qualidade”, um sinal verde para a entrada do capital internacional.
Verificamos, portanto, que a adesão às regras do livre mercado foi, na verdade, uma decisão política, baseada num pensamento ideológico libertário. Este segundo aspecto da globalização não foi uma consequência irrevogável do que antes chamamos de globalização como fato. Na verdade, o novo capitalismo global, como apontamos, é uma construção, a qual somente se tornou viável por uma decisão política dos governantes das principais economias do mundo, com a subsequente adesão de inúmeros países a estas mesmas regras.
Quando nos referimos à globalização como sendo um discurso ideológico, não estamos defendendo que a mesma seja boa ou má, ou mesmo neutra. Este discurso, como toda opção política e ideológica, tem suas vantagens e desvantagens. O que queremos é afastar o suposto ar de cientificidade que lhe conferem os economistas. Defendemos que a liberalização dos mercados não é uma lei natural, como uma lei da física ou um postulado da matemática, e, sim, o produto de uma opção política e ideológica orquestrada ao longo de vinte anos. E, como qualquer opção efetuada numa democracia, deve ser discutida na sociedade.