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Boa-fé objetiva processual: reflexões quanto ao atual CPC e ao projeto do novo Código

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Agenda 09/08/2012 às 10:26

É preciso que o novo CPC traga, logo no início, um espaço destinado exclusivamente à proclamação, com todas as letras e de modo a que não restem dúvidas, do princípio da boa-fé objetiva processual.

1.0  Boa-fé objetiva processual no CPC em vigor e no projeto do novo CPC.

O CPC em vigor possui dispositivos que traduzem a repulsa do ordenamento jurídico à linha de raciocínio segundo a qual o procedimento é um campo de batalha que tolera a utilização de todo tipo de arma.  Dentre eles, o art. 14, no seu inciso II: é dever das partes e de todos que de qualquer forma participam do processo proceder com lealdade e boa-fé.

Ao se debruçar sobre o enunciado do inciso II do art. 14, a doutrina pátria extraiu, inicialmente, interpretações harmônicas com a boa-fé subjetiva, como se o propósito do legislador fosse, apenas, o de proibir condutas mal intencionadas.

Todavia, a evolução do pensamento jurídico processual conduziu à conclusão de que o art. 14, II, do CPC continha, em verdade, uma cláusula geral, uma norma geral de conduta que impõe a todos aqueles que de qualquer forma participam do processo uma atuação em consonância com a boa-fé objetiva.

Trata-se de uma evolução interpretativa infensa ao retrocesso e que, por isto mesmo, deve ser afirmada pelo legislador, no novo CPC, com clareza solar, de modo a que não mais exista espaço para que o intérprete desavisado, ao lidar com o Direito Processual Civil, limite-se ao campo da boa-fé subjetiva.

Apesar disto, desta necessidade, no projeto do novo CPC, já aprovado pelo Senado Federal e atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados[1], o legislador fez uma opção tímida: limitou-se a repetir, quase com as mesmas palavras, no art. 80, II, o enunciado do art. 14, II, do CPC em vigor: é dever das partes, de seus procuradores e de todos que de qualquer forma participam do processo proceder com lealdade e boa-fé.

O nosso objetivo, caro leitor, é demonstrar a importância e os reflexos práticos da absorção, pelo Direito Processual Civil, de conceitos que já há algum tempo vêm sendo amadurecidos no âmbito das relações jurídicas de natureza privada.

Consectário lógico, no plano legislativo, do reconhecimento desta importância, é a necessidade de que o legislador reserve, não num dispositivo perdido entre diversas normas de concretização de princípios processuais – não em um dos incisos do art. 80, pois –, mas em um dos primeiros dispositivos do novo código, aqueles artigos em que são traçadas as bases do modelo processual desejado, um espaço destinado exclusivamente à proclamação, com todas as letras e de modo a que não restem dúvidas, do princípio da boa-fé objetiva processual.


2.0  Boa-fé objetiva e processo cooperativo.

O devido processo legal, o contraditório adequadamente redimensionado e a boa-fé objetiva processual são as principais colunas do arcabouço de sustentação do processo cooperativo.  E é este modelo de organização processual, o processo cooperativo, já abraçado pelo CPC em vigor, que o legislador, por meio do novo CPC, deixará, mais do que nunca, patente que deve ser posto em prática.

Tanto é suficiente para se concluir que o modelo cooperativo de processo exige dos sujeitos da relação jurídica processual – de todos os sujeitos, realce-se – uma atuação em consonância com a boa-fé objetiva.

Como veremos a seguir, a detecção da presença da boa-fé objetiva, para além de não estar atrelada a perquirições em torno das boas ou das más intenções do agente, implica manejar conceitos como lealdade, razoabilidade, confiança, estabilidade, eticidade e segurança.

Assim, a partir da expressa proclamação, que se espera que ocorra no novo CPC, deste princípio norteador das relações humanas, será cada vez mais comum que as questões processuais suscitadas no bojo dos diversos procedimentos sejam permeadas por discussões em torno da proibição do venire contra factum proprium, da surrectio, da supressio e do tu quoque, conceitos fundamentais, umbilicalmente ligados à boa-fé objetiva.

Por isto, é indispensável passar em revista tais conceitos. Acompanhe-nos.


3.0  Boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva nas relações jurídicas em geral[2].

Para que se possa dimensionar o alcance da exigência de que todos, no processo, atuem em consonância com a boa-fé objetiva, é de todo necessário distingui-la da boa-fé subjetiva.

Nesta linha, vale, de logo, o alerta de que a valorização da boa-fé objetiva não significa, nem de longe, que a boa-fé subjetiva tenha sido proscrita.  Muito pelo contrário.  A boa-fé subjetiva continua exigível, e mais exigível que antes, já que a cada dia é reduzida a tolerância, no campo das relações civilizadas, quaisquer que sejam elas, a comportamentos baseados na má intenção.

O que se quer destacar é que o ordenamento jurídico não se contenta mais com a só presença da boa-fé subjetiva.  Ela é insuficiente.

Com efeito, um ato que, sob o ponto de vista subjetivo, pode haver sido praticado com boa-fé – a atuação, então, teria sido desprovida de má intenção –, quando examinado no plano objetivo pode não ser considerado de boa-fé, já que na identificação da boa-fé objetiva não se questiona a intenção, mas a compatibilidade do comportamento com a confiança razoavelmente depositada no agente, que tem o dever de atuar com a lealdade exigível de um homem médio, num específico momento, à vista dos valores prevalecentes na sociedade.

Apenas a título de exemplo, tomemos o enunciado contido no art. 243 do atual CPC: "Quando a lei prescrever determinada forma sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa". Perceba-se que a vedação dirigida para a parte que deu causa à invalidade independe de qualquer perquirição em torno da existência de boa ou de má intenção sua ao agir.  A proibição resulta, em verdade, da circunstância de que, sob uma ótica objetiva, a parte estaria adotando um comportamento contraditório, ao dar causa a uma invalidade e, depois, requerer que a invalidade seja pronunciada.  

Feita esta incursão, é importante que identifiquemos os traços básicos que distinguem a boa-fé subjetiva da boa-fé objetiva.

3.1Boa-fé subjetiva.

A boa-fé subjetiva – de há muito conhecida, por estar visivelmente presente no Código Civil de 1916 – consiste em uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do agente que pratica determinado ato ou vivencia dada situação, sem ter ciência do vício que a inquina. 

Para que uma conduta esteja em consonância com a boa-fé subjetiva é imprescindível a presença da boa intenção ou, no mínimo, a ausência de má intenção.  A má intenção é incompatível com ela e, por isto, a exclui, abrindo espaço para que se identifique um quadro de má-fé, que nada mais é do que o fruto de uma atuação desprovida de boa-fé subjetiva. 

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Por isto, a formação de um juízo de valor quanto a se um determinado agente atuou com boa-fé no plano subjetivo exige perquirição a respeito da intenção que o moveu a praticar o ato. 

Esta investigação é, no mais das vezes, dificílima, mas há situações em que ela é facilitada pelo trabalho do legislador, quando ele próprio cuida de atribuir, previamente, a certas condutas, a presunção de que o agente atuou movido por boa ou por má intenção, o que leva a que se presuma presente a boa ou a má-fé, tal como acontece nos enunciados dos arts. 1.201, parágrafo único, e 1.256, também parágrafo único, ambos do Código Civil, e nos arts. 17 e 600 do atual CPC.

Em geral, o efeito jurídico decorrente dos atos praticados em estado subjetivo de boa-fé deriva do reconhecimento da ignorância do agente a respeito de determinada circunstância, como ocorre com o possuidor que desconhece o vício que macula a sua posse. Em casos assim, o legislador cuida de amparar a conduta do agente.

Entretanto, se a circunstância era do conhecimento do agente, a ordem jurídica nega abrigo à sua conduta.  É em razão disto que os atos do possuidor de má-fé não contam com o amparo do sistema jurídico. 

As normas contidas nos arts. 1.214, 1.216, 1.217, 1.218, 1.219, 1.220 e 1.242 do Código Civil bem exemplificam o tratamento diferenciado que o legislador dispensa, no âmbito do direito material, às situações em que o estado subjetivo do agente é marcado pela boa ou pela má-fé.

No campo processual civil, os referidos arts. 17 e 600 elencam situações em que o legislador atribui a certos comportamentos a presunção de má-fé processual, enquanto os arts. 16, 18 e 601 contêm a previsão das sanções respectivas.

Por fim, um último registro, para que a boa-fé subjetiva seja posta no exato espaço que o sistema jurídico, inclusive o processual, a ela reserva.

É que aludimos, linhas atrás, a efeitos jurídicos decorrentes de atos praticados em estado subjetivo de boa-fé.  Assim, a presença ou não da boa-fé subjetiva é determinante da produção de certos efeitos jurídicos.

Ora, é sabido que todo efeito jurídico é decorrência de fato jurídico, afinal, o fato jurídico é um acontecimento, ou um conjunto de acontecimentos, natural ou humano, que, por se subsumir a uma hipótese prevista no sistema normativo – a hipótese de incidência –, é apto para produzir determinado efeito, o efeito jurídico, consistente na criação, conservação, modificação ou extinção de uma relação jurídica. 

Assim, fica fácil concluir que a boa-fé subjetiva é um elemento fático.  Ela integra determinados fatos jurídicos. Se assim não fosse, a sua presença não produziria efeitos jurídicos.

A boa-fé subjetiva é, pois, fato.  E, como tal, não pode, jamais, ser confundida com a boa-fé objetiva, que, como veremos a seguir, é uma norma de comportamento.

3.2Boa-fé objetiva.

A boa-fé objetiva tem natureza de princípio jurídico extraído de uma cláusula geral[3]. Trata-se de uma norma de comportamento, de fundo ético, juridicamente exigível e independente de qualquer questionamento em torno da presença de boa ou de má intenção.

De fato, qualquer pessoa que mantenha com outra um vínculo jurídico – e, no particular, não importa a natureza do vínculo – tem o dever de atuar de modo a não trair a razoável confiança do outro, já que a ninguém é dado frustrar justas expectativas, alimentadas por aqueles com quem se relaciona.

Não importa que, ao trair a confiança ou frustrar a expectativa, o agente tenha atuado com boa intenção.  Se, apesar da boa intenção – ou da falta de má intenção –, a sua atitude não guardar harmonia com o que se pode razoavelmente esperar de uma pessoa média, naquele momento histórico, numa comunidade com aquelas características culturais, o agente terá atuado com violação ao princípio da boa-fé objetiva.

Neste campo, vale conferir a culta preleção de GISELDA HIRONAKA, ao tratar da boa-fé objetiva contratual[4]: “a principiologia deve orientar-se pelo viés objetivo do conceito de boa-fé, pois visa garantir a estabilidade e a segurança dos negócios jurídicos, tutelando a justa expectativa do contraente que acredita e espera que a outra parte aja em conformidade com o avençado, cumprindo as obrigações assumidas. Trata-se de um parâmetro de caráter genérico, objetivo, em consonância com as tendências do direito contratual contemporâneo, e que significa bem mais que simplesmente a alegação da ausência de má-fé, ou da ausência da intenção de prejudicar, mas que significa, antes, uma verdadeira ostentação de lealdade contratual, comportamento comum ao homem médio, o padrão jurídico 'standard'".

Nessa mesma linha, BRUNO LEWICKI pontifica que a concepção de boa fé (subjetiva), "ligada ao voluntarismo e ao individualismo que informam o nosso Código Civil[5], é insuficiente perante as novas exigências criadas pela sociedade moderna. Para além de uma análise de uma possível má fé subjetiva no agir, investigação eivada de dificuldades e incertezas, faz-se necessária a consideração de um patamar geral de atuação, atribuível ao homem médio, que pode ser resumido no seguinte questionamento: de que maneira agiria o 'bonus pater familiae', ao deparar-se com a situação em apreço? Quais seriam as suas expectativas e as suas atitudes, tendo em vista a valoração jurídica, histórica e cultural do seu tempo e de sua comunidade?"[6].

A resposta a essas últimas indagações está na definição da boa-fé objetiva, que, conforme mencionado, consiste em uma imprescindível norma de comportamento, umbilicalmente ligada à eticidade que se espera que seja observada na ordem social.

Um comportamento de acordo com a boa-fé objetiva, pois, é aquele que não trai a confiança razoavelmente depositada, revela a lealdade que se pode esperar de um homem médio, mantém-se nos limites dos critérios de razoabilidade que, em dado momento, são os predominantes na comunidade integrada pelo agente e, por tudo isto, gera estabilidade e segurança.

É a esta boa-fé, a boa-fé objetiva, que o legislador deve expressar, claramente, no novo CPC, a sua reverência. E tal reverência exige que o enunciado esteja inserido em um dos dispositivos topologicamente integrantes do conjunto dos enunciados que proclamam as bases em que o intérprete deve se ancorar quando se debruçar sobre uma norma processual.


4.0  Funções reativas da boa-fé objetiva.

Havendo violação ou ameaça de violação à norma segundo a qual todos devem agir em consonância com a boa-fé objetiva, surge uma situação em que podem ser invocadas as chamadas figuras parcelares ou desdobramentos da boa-fé objetiva.

E é exatamente o fato de a invocação de tais figuras se dar, no mais das vezes, quando a boa-fé objetiva é violada ou se encontra ameaçada de violação que faz com que elas também sejam conhecidas como funções reativas da boa-fé objetiva[7].

São elas (i) a vedação do venire contra factum proprium, (ii) a surrectio, (iii) a supressio e (iv) o tu quoque.

4.1 Vedação do "venire contra factum proprium".

A primeira repercussão pragmática da aplicação do princípio da boa-fé objetiva reside na vedação do comportamento contraditório.

Na tradução literal, venire contra factum proprium significa “vir contra um fato próprio”. Ou seja, não é razoável que uma pessoa pratique determinado ato ou conjunto de atos e, em seguida, adote uma conduta diametralmente oposta.

Parte-se da premissa de que os sujeitos de uma relação jurídica, por consequência lógica da confiança depositada, devem agir de forma coerente, segundo a expectativa gerada por seus comportamentos.

Assim, a título de exemplo no campo do direito material, se os contratantes estipularem que os pagamentos de uma determinada prestação de trato sucessivo deverão se dar em determinado lugar e, apesar disto, o pagamento, com a aquiescência tácita do credor, vier a ser reiteradamente feito em outro local, não poderá o credor recusar-se a receber com base no argumento de que o pagamento deveria se dar no local contratualmente estipulado.  Uma exigência desta ordem afrontaria o princípio da confiança, pois se trata de conduta contrária à que o próprio credor vinha adotando.

É por isto que no enunciado do art. 330 do Código Civil consta que o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.

No campo processual civil, imagine-se um quadro em que alguém contraia uma dívida especificamente para a aquisição de um bem e não cumpra a obrigação de pagar a dívida que contraiu. Proposta a execução e tendo sido penhorado exatamente o bem adquirido, não pode o devedor opor-se à penhora, alegando tratar-se de bem que a lei considera impenhorável.  Uma conduta deste tipo desbordaria, por óbvio, os limites da lealdade.

Em razão disto, no enunciado do § 1º do art. 649 do CPC consta que a impenhorabilidade não é oponível à execução do crédito concedido para a aquisição do próprio bem.

Situação parecida ocorre com a parte que, no curso do procedimento, alude a um documento que estaria em seu poder, com o intuito de constituir prova e, depois, diante da ordem do magistrado de que o exiba, recusa-se a exibir. Tal recusa, de acordo com o enunciado do art. 358, II, do CPC é inadmissível.

Os enunciados acima referidos, tanto o do Código Civil como os do CPC, contêm típicas regras de concretização do princípio da boa-fé objetiva, reveladoras da proibição do venire contra factum proprium.

Em síntese, a vedação do venire contra factum proprium traduz uma regra proibitiva do comportamento contraditório. 

E assim como a ninguém é dado agir contraditoriamente no âmbito das relações jurídicas de direito privado, também não é tolerável uma atuação contraditória no campo da relação jurídica processual.

4.2  "Supressio".

A supressio também é um importante desdobramento da boa-fé objetiva e, a rigor, é consectário lógico da proibição do venire contra factum proprium.  Como veremos, também mantém, com a surrectio, íntima relação.

Decorrente da expressão alemã Verwirkung[8], consiste na perda (supressão) de um direito pela falta de seu exercício por razoável lapso temporal.

Trata-se de instituto que não se confunde com a prescrição (que se refere à perda da pretensão, e não do direito), nem com a decadência (que consiste na extinção de um direito potestativo).

Na supressio, malgrado o direito não tenha sido extinto pela decadência e nem se possa falar em prescrição, o que há é, metaforicamente, um silêncio ensurdecedor, ou seja, um comportamento omissivo tal - no que se refere ao exercício de um direito - que um movimento posterior, tendente a exercitar aquele direito, soa incompatível com as legítimas expectativas até então geradas pelo silêncio.

Um exemplo interessante do reconhecimento da ocorrência da supressio, no campo do direito material, se deu no julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do REsp n. 1.202.514, do qual foi relatora a Min. Nancy Andrighi.  Nele foi reconhecida a supressão do direito ao recebimento de valores a título de correção monetária.

A transcrição parcial da ementa é suficiente para que se compreenda o caso: "Trata-se de situação na qual, mais do que simples renúncia do direito à correção monetária, a recorrente abdicou do reajuste para evitar a majoração da parcela mensal paga pela recorrida, assegurando, como isso, a manutenção do contrato. Portanto, não se cuidou propriamente de liberalidade da recorrente, mas de uma medida que teve como contrapartida a preservação do vínculo contratual por 06 anos. Diante desse panorama, o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título de correção monetária, (...) frustrando uma expectativa legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação contratual. (...) Nada impede o beneficiário de abrir mão da correção monetária como forma de persuadir a parte contrária a manter o vínculo contratual. Dada a natureza disponível desse direito, sua supressão pode perfeitamente ser aceita a qualquer tempo pelo titular. (...) A 'supressio' indica a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito ou faculdade, criando para a outra a legítima expectativa de ter havido a renúncia àquela prerrogativa".

No campo processual, o titular do direito à percepção de uma quantia em dinheiro, devida em razão da incidência de uma multa diária, decorrente do descumprimento de determinada obrigação, pode ter o seu direito suprimido se, abusando do dever de mitigar o próprio prejuízo, permanecer inerte por prazo superior ao razoável, deixando que o valor da multa cresça. 

Com efeito, ao descumprir o dever de mitigar o próprio prejuízo (duty to mitigate the loss), o credor resultou por violar a cláusula geral da proteção da boa fé objetiva, o que "implica a perda do direito ao valor da multa ('supressio'), respectivamente ao período de tempo considerado pelo órgão jurisdicional como determinante para a configuração do abuso do direito"[9].

Assim, na tutela da confiança, o titular de um direito não exercitado durante determinado período, não mais pode, por conta desta inatividade, exercitá-lo.

Nessa linha, à luz do princípio da boa-fé objetiva, o comportamento de um dos sujeitos gera no outro a convicção – baseada em dados razoáveis – de que o direito não seria mais exigido.

4.3    "Surrectio".

A surrectio e a supressio são lados opostos da mesma moeda.  São figuras correlatas.

Com efeito, se a supressio consiste na perda de um direito, por um dos sujeitos da relação jurídica, pela falta de seu exercício por razoável lapso temporal, a surrectio corresponde ao surgimento de um direito exigível pelo outro sujeito da mesma relação jurídica, como decorrência lógica do comportamento que resultou na supressio.

Dos exemplos retro, em que foi demonstrada a ocorrência de supressio, é possível extrair que houve, também, surrectio. 

Com efeito, se, de um lado, um dos contratantes viu suprimido o seu direito à percepção de valores a título de correção monetária, o outro se tornou titular do direito de não se submeter à cobrança de correção monetária.

O mesmo raciocínio é aplicável no que se refere à multa diária: se o credor teve suprimido o seu direito ao recebimento do valor da multa diária que incidiria no período em que se configurou a conduta omissiva , aquele a quem a multa foi imposta tornou-se titular do direito de não ser compelido a pagar a quantia respectiva.

4.4   "Tu quoque".

Tu quoque, Brutus, fili mi!

A célebre frase, historicamente atribuída ao imperador romano Júlio César, ao constatar que foi traído pelo seu filho Brutus, dá nome também a um dos mais comuns desdobramentos do princípio da boa-fé objetiva.

A aplicação do tu quoque se dá nas situações em que se verifica um comportamento que, rompendo com o valor da confiança, surpreende uma das partes da relação jurídica, colocando-a em situação de injusta desvantagem.

Assim como a supressio, o tu quoque materializa uma regra proibitiva do comportamento contraditório, o que remete, mais uma vez, à vedação do venire contra factum proprium.

Por meio desta figura parcelar da boa-fé objetiva pretende-se evitar surpresas irrazoáveis na dinâmica de uma relação jurídica, a exemplo do que se dá quando, num contrato bilateral, um dos contratantes, antes de cumprir a sua obrigação, exige o adimplemento da do outro.  Situações como esta encontram previsão nos arts. 476 e 477 do Código Civil e no art. 582 e seu parágrafo único do CPC.

É também com o propósito de evitar surpresas capazes de conduzir a injustas desvantagens que se impõe ao juiz, caso atribua ele o ônus da prova de maneira distinta da estabelecida como regra geral, que o faça de modo a que a parte a quem foi atribuído o ônus tenha oportunidade de dele se desincumbir.  É, pois, reprovável, porque lesiva ao princípio da boa-fé objetiva, a prática infelizmente levada a cabo por alguns magistrados, consistente em deixar para o momento da sentença o anúncio da inversão do ônus da prova.

Os dispositivos cujos enunciados opõem óbices às surpresas inconvenientes - aplicando, com isto, o tu quoque - contêm regras de concretização do princípio da boa-fé objetiva.

Em outras palavras, o que se quer, por meio do tu quoque, é impedir o ineditismo indesejável e perturbador do equilíbrio que deve reger a dinâmica das relações jurídicas, inclusive da relação jurídica processual.

Sobre os autores
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Salomão Viana

Graduado em Medicina, em 1985, pela Universidade Federal da Bahia. Graduado em Direito, em 1987, pela Universidade Católica do Salvador. Especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Advogado, de 1987 a 1991. Juiz de Direito do Estado da Bahia, de 1991 a 1994. Juiz Federal Substituto na Seção Judiciária da Bahia, de 1994 a 1998. Juiz Federal na Seção Judiciária da Bahia, de 1998 até a presente data. Juiz do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia de outubro/2009 a outubro/2011. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia desde o ano de 1995 e Professor do Brasil Jurídico Ensino de Alta Performance. Palestrante e autor de vários artigos na área.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze; VIANA, Salomão. Boa-fé objetiva processual: reflexões quanto ao atual CPC e ao projeto do novo Código. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3326, 9 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22382. Acesso em: 21 nov. 2024.

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