Sumário: 1. Introdução. 2. O Poder Empregatício e o Poder Disciplinar: Conteúdo e Limites. 3. Fundamentos Constitucionais dos Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade. 4. Proporcionalidade e Razoabilidade: Aplicabilidade nas Relações Entre Particulares. 5. Conclusão.
1. Introdução
Entre os efeitos que regularmente decorrem do contrato de trabalho, entendemos de especial relevo o estudo daqueles atinentes ao poder empregatício, notadamente por se tratar da esfera da relação de emprego em que se torna mais evidente o desequilíbrio de forças entre empregados e empregadores. Por esse motivo, reclama maior atenção da disciplina juslaboral, voltada à atenuação desse desequilíbrio.
E na seara do poder empregatício, o presente estudo visa a analisar aspecto específico, concernente ao poder disciplinar, no qual, além de se manifestar com maior notoriedade o desequilíbrio entre as partes da relação empregatícia, existe risco acentuado de que do exercício abusivo das prerrogativas a ele inerentes decorram danos de ordem patrimonial e extrapatrimonial ao empregado.
Com efeito, a temática ora proposta ganha maior relevância na atual conjuntura constitucional brasileira, guiada pelo paradigma do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da Constituição Federal), pelo qual já não mais se sustenta a análise estanque e independente da disciplina jurídica aplicável às esferas pública e privada, como outrora era comum nos paradigmas constitucionais anteriores, do Estado Liberal e do Estado Social.
O paradigma contemporâneo, segundo leitura amplamente difundida pela doutrina jurídica, propõe fazer irradiar no seio das relações entre particulares os valores da democracia, antes tidos por exercitáveis precipuamente nas relações entre os particulares e o Estado, seja numa perspectiva negativa (Estado Liberal), seja numa perspectiva positiva (Estado Social).
Daí porque no paradigma contemporâneo perde espaço nas relações entre particulares o princípio da autonomia da vontade, não mais se admitindo o exercício das prerrogativas inerentes às relações privadas, tais como aquelas que decorrem do poder empregatício, como uma ilha de imunidade a qualquer tipo de limitação ou controle normativo externo.
Ao contrário, a tendência é que as mesmas limitações outrora concebidas com vistas a controlar a atuação estatal, agora são trazidas para as relações jurídicas entre particulares. Tal é o que se verifica no âmbito do poder empregatício, em seu aspecto disciplinar, que hoje não pode ser exercido senão dentro de parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade.
Contudo, se é certo que, na linha da breve exposição apresentada acima, a análise de validade do exercício do poder disciplinar pelo empregador deve passar pelo crivo dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, não há como negar que a disciplina legal em torno da questão é escassa, inexistindo disposição normativa impondo expressamente essa limitação.
E em que pese ser papel essencial do julgador contemporâneo a aplicação da lei com base em interpretação que vai além da mera leitura gramatical, não há como negar que a interpretação proposta deve pautar-se, fundamentadamente (art. 93, IX, da Constituição Federal), pelos parâmetros normativos, legais ou constitucionais, oferecidos pelo ordenamento jurídico vigente.
Em outras palavras, em que pese ser dada ao julgador a possibilidade de interpretar o direito, ainda que com base em parâmetros normativos abstratos emergentes de princípios constitucionais, não pode ele, sob pena violação do princípio da legalidade (art. 5º, II, da Constituição Federal), criar o direito aplicável com base em parâmetros políticos, papel que cabe precipuamente ao Poder Legislativo.
Assim, na esteira do que foi exposto, o presente estudo pretende investigar os fundamentos normativos, legais e constitucionais, que justificam a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no âmbito das relações de emprego, especialmente no que tange ao exercício das prerrogativas inerentes ao exercício do poder empregatício em seu aspecto disciplinar.
2. O Poder Empregatício e o Poder Disciplinar: Conteúdo e Limites
Antes de adentrarmos no tema central deste trabalho, cumpre tecer breves considerações acerca do conceito e conteúdo do poder empregatício ou poder intra empresarial, notadamente em seu aspecto disciplinar, bem como acerca dos limites que são impostos ao empregador no exercício das prerrogativas dele decorrentes.
O poder empregatício[1] encontra fundamento legal, precipuamente, no art. 2º, caput, da CLT e pode ser definido como “o conjunto de prerrogativas asseguradas pela ordem jurídica e tendencialmente concentrada na figura do empregador, para exercício no contexto da relação de emprego” (DELGADO, 2010, p. 597).
No âmbito da relação empregatícia tem por base as normas que decorrem implícita ou explicitamente do contrato de trabalho, impondo às partes contratantes uma série de direitos e deveres, entre os quais o direito do empregador de fiscalizar e dirigir a prestação de serviços, na esteira do dispositivo legal supra mencionado.
O poder empregatício, que na concepção ora adotada é gênero, costuma ser doutrinariamente subdivido, a depender do conteúdo das prerrogativas dele decorrentes, em poder diretivo, poder regulamentar, poder fiscalizatório e poder disciplinar, sendo este último de especial relevo para o estudo em foco.
Conforme leciona Luiz José de Mesquita (1991, p. 99), o poder disciplinar merece maior atenção da disciplina justrabalhista do que os demais aspectos do poder empregatício, uma vez que, enquanto o mau exercício destes tendem a atingir precipuamente a empresa, o mau exercício daquele impõe maiores danos ao trabalhador.
No contexto do poder empregatício, o poder disciplinar consiste “no conjunto de prerrogativas concentradas no empregador dirigidas a propiciar a imposição de sanções aos empregados em face do descumprimento por esses de suas obrigações contratuais” (DELGADO, 2010, p. 603).
Com efeito, em se considerando o poder empregatício como conjunto de prerrogativas decorrentes do contrato de trabalho, o poder disciplinar constitui a faculdade do empregador de dar cumprimento a uma espécie de cláusula penal implícita à avença laboral nas hipóteses em que o empregado descumpre os deveres dela decorrentes.
Nesse sentido é a lição de Aldacy Rachid Coutinho, para quem “O tratamento para o descumprimento grave das obrigações decorrentes do contrato deve ter o tratamento de inadimplemento contratual e não gerar punição, mesmo porque inexiste castigo para o trabalhador faltoso” (1999, p. 236).
Contudo, em que pese o fundamento contratual do poder disciplinar, o seu exercício pelo empregador encontra limites legais e constitucionais mais rígidos na esfera jus laboral, fundado no princípio da proteção ao trabalhador, do que na esfera civil, pautada pelo princípio da autonomia da vontade.
Em primeiro lugar, é necessário salientar que no sistema jurídico trabalhista brasileiro as infrações contratuais do empregado passíveis de punição são elencadas num rol legal taxativo, previsto principalmente no art. 482 da CLT, de modo que somente podem ser sancionadas as condutas previstas na lei.
Também são limitados os tipos de punição que podem ser aplicados. Admite-se, inicialmente, a pena de advertência, que embora não encontre previsão legal expressa, não afronta os princípios justrabalhistas e decorre dos costumes na seara laboral, fonte de direito nos termos do art. 8º da CLT.
Admite-se, ademais, a pena de suspensão, limitada a trinta dias e, por último, a mais grave das sanções, a dispensa do empregado por justa causa. Essas duas espécies de sanção, diferentemente da advertência, encontram previsão legal expressa, nos arts. 474 e 482 da CLT. Outras formas de sanção, se mais gravosas, são rejeitadas.
Contudo, o exercício do poder disciplinar dentro dos limites previstos nesses parâmetros legais não outorga ao empregador ampla e irrestrita discricionariedade. Ainda que constatada falta disciplinar tipificada e escolhida uma entre as sanções legalmente admitidas, daí não decorre necessariamente a legalidade da pena imposta no caso.
A doutrina elenca uma série de outros requisitos ao exercício do poder disciplinar, tais como gravidade da conduta, nexo causal, adequação, proporcionalidade, razoabilidade e imediaticidade entre a falta e a penalidade, singularidade e caráter pedagógico da punição e ausência de discriminação (DELGADO, 2010, p. 633-639).
Entre as limitações citadas, destacam-se a proporcionalidade e a razoabilidade, que longe de tratarem-se meramente de regra de conteúdo concreto e específico a ser observada na aplicação das penas, ostentam indiscutível natureza principiológica que orienta o sistema disciplinar e da qual são corolários todos os requisitos citados acima.
Com efeito, a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade[2] na seara disciplinar laboral é amplamente reconhecida pela doutrina e jurisprudência. Nesse sentido, destaca-se o precedente jurisprudencial transcrito no tópico supra, bem como a doutrina de Américo Plá Rodriguez, segundo a qual:
Ninguém pode negar o direito do empregador de complementar e respaldar o seu poder diretivo com a faculdade de sancionar os infratores. É o que lhe dá eficácia e efetividade.
Mas essa possibilidade de aplicar sanções não significa carta branca para atuar de qualquer maneira. Tem de basear-se em critérios de razoabilidade.
Deve existir uma razoável proporcionalidade entre as sanções aplicáveis e a conduta do trabalhador, tanto no que se refere à natureza da falta, como a sua reiteração, como também no que concerne aos demais antecedentes do trabalhador punido.
Em última análise, o trabalhador que reputa excessiva ou injusta a punição pode reclamar contra ela. E o magistrado que atua para controlá-la não pode aplicar outro critério que não o da razoabilidade. (1996, p. 263)
Destaca-se, ademais, a doutrina de Nuno Abranches Pinto, que ao tratar da aplicação do princípio da proporcionalidade no âmbito juslaboral, assevera que “Por força dele impõe-se que a sanção seja tanto mais grave (quanto à escolha e quanto à medida) quanto mais grave for a conduta e quanto maior for a conduta do agente” (2009, p. 107).
E, mais adiante, o mencionado autor ainda expõe o entendimento de que “apenas se justifica a aplicação de uma sanção mais grave quando a sanção menos grave não se afigure suficiente para a concretização do fim prosseguido pela actuação disciplinar” (2009, p. 109).
Nesse contexto, sendo certa a aplicabilidade dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade na seara disciplinar laboral, cumpre investigar os fundamentos constitucionais e legais dos quais decorrem, bem como dos quais defluem sua aplicabilidade às relações entre particulares, notadamente nas relações de trabalho.
3. Fundamentos Constitucionais dos Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade
Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade ganharam relevo a partir do início do Século XX, na vigência do paradigma do Estado Social, como limitações à atuação estatal. Nesse paradigma, a proposta era uma maior intervenção e atuação positiva do Estado com vistas a mitigar as desigualdades materiais vigentes no paradigma do Estado Liberal, que orientava o período anterior.
Ante a exacerbação do público em detrimento do privado no Estado Social, viu-se a necessidade de impor maiores limites às prerrogativas que decorreram desse acréscimo do poder estatal, com vistas a evitar que fossem exercidas de modo abusivo e dissociado da finalidade à qual se destinavam, qual seja, o implemento da igualdade material por meio do desenvolvimento social.
Desse breve relato acerca da origem histórica já é possível extrair o conteúdo dos princípios em foco, enquanto limites ao poder estatal, que consoante doutrina do administrativista Diogo Figueiredo Moreira Neto, orienta no sentido de que “determinada decisão, atribuída ao Poder Público, de integrar discricionariamente uma norma, contribuirá efetivamente para um satisfatório atendimento dos interesses públicos” (1987, p. 37-40).
Com efeito, os fundamentos constitucionais que justificam esses princípios foram traçados inicialmente pela Suprema Corte Norte Americana, que os tomou como corolários do princípio do devido processo legal, o qual não se esgota em sua dimensão procedimental (procedure due process of law), pela qual a validade dos atos do poder público condiciona-se à observância de determinadas formalidades previstas em lei.
Segundo o entendimento adotado, ainda que observados os procedimentos legais, os atos estatais de intervenção na liberdade e propriedade dos particulares não se revestem de validade quando o seu conteúdo revela-se dissonante com relação à finalidade à qual se destinam. Trata-se da dimensão material, substancial, concreta ou substantiva do devido processo legal (substantive due process of law).
Nos dizeres do jurista Sebastião Tavares Pereira, “Pelo caminho do exame de razoabilidade, expressão concreta do Due Process, o Judiciário norte-americano passou a exercitar ampla verificação sobre a compatibilidade entre os fins perseguidos pelo legislador e os meios utilizados, além de se questionar sobre a legitimidade dos próprio fins”. (2008, p. 194).
No Brasil, o entendimento de que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade decorrem do princípio do devido processo legal, em sua dimensão substantiva, hoje positivado no art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988, foi igualmente adotado pela doutrina e jurisprudência. Nesse sentido, Olavo Augusto Viana Alves Ferreira leciona o seguinte:
A Constituição Federal, inciso LIV do art. 5º, dispõe: “Ninguém será privado da liberdade ou de seu bens sem o devido processo legal”.
Interpretando tal norma constatamos que o princípio do devido processo legal possui dois sentido: 1) formal, ou adjetivo, ou processual, e 2) material, ou substantivo. [...]
De acordo com o princípio do devido processo legal substantivo todas as normas jurídicas e atos do Poder Público poderão ser declarados inconstitucionais por serem injustos, irrazoáveis ou desproporcionais, afigurando-se como limite à discricionariedade do legislador, administrador e do julgador. (2003, p. 94-95)
E em que pese o princípio da razoabilidade tenha sido cunhado, inicialmente, com fundamento no devido processo legal substantivo, não é esse o único fundamento do citado princípio na atual ordem constitucional brasileira.
O princípio da razoabilidade, ao orientar os atos estatais no sentido de que para uma determinada situação concreta, seja oferecida a solução que melhor se adéqüe à finalidade buscada pelo administrador e, em última análise, aos objetivos do Estado, relaciona-se intimamente com a noção de justiça distributiva, ou seja, com a noção de que é necessário dar a cada um o que é seu.
Nesse contexto, o princípio da razoabilidade também encontra fundamento o art. 3º, I, da Constituição Federal, que ao elencar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, prevê expressamente a necessidade de se construir uma sociedade livre, justa e solidária. Nesse ponto, mais uma vez é bastante elucidativa a doutrina de Olavo Augusto Viana Alves Ferreira, para quem:
Entendemos que além do art. 5º, LIV, há outro fundamento constitucional para tal princípio: trata-se do art. 3º, inciso I, da CF que prevê: [...]
A conclusão é obtida por meio da interpretação da palavra “justa”. É objetivo da República Federativa do Brasil que as normas e atos do Poder Público tenham conteúdo justo, razoável, proporcional. Tal norma reforça a existência do princípio do devido processo legal no seu sentido substantivo, e como decorrência a razoabilidade e proporcionalidade das leis. (2003, p. 95)
Contudo, tendo em vista o que foi exposto até aqui, verifica-se que princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, cujos fundamentos constitucionais na ordem jurídica brasileira foram explicitados acima, foram firmados precipuamente como forma de limitar o exercício do poder público. Cumpre perquirir, portanto, se esses princípios são igualmente aplicáveis nas relações entre particulares, a exemplo do vínculo empregatício.
4. Proporcionalidade e Razoabilidade: Aplicabilidade nas Relações Entre Particulares
Em um primeiro momento se poderia pensar que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não seriam aplicáveis às relações jurídicas entre particulares, na medida em que foram concebidos tendo em vista as relações entre os particulares e o poder público, visando a impor limites ao exercício das prerrogativas deste último na persecução dos objetivos estatais e do interesse público.
Tal conclusão, contudo, somente seria aceitável na perspectiva dos paradigmas constitucionais anteriores, nos quais o privado e o público caminhavam separadamente e em sentidos contrários, ora prevalecendo os interesses privados (Estado Liberal), ora prevalecendo os interesses públicos (Estado Social). Não é essa, todavia, a perspectiva que orienta o paradigma do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF).
Nessa esteira, cumpre trazer à colação as palavras do Professor Cristiano Paixão Araujo Pinto, segundo as quais:
Observa-se, pois, que as esferas do público e privado, tratadas, tanto no paradigma do Estado Liberal quanto no do Estado Social como opostas (modificando-se apenas a direção da “seta valorativa”), passam, num cenário de construção do paradigma do Estado Democrático de Direito, a ser vistas como complementares, eqüiprimordiais. E é essa mesma relação de eqüiprimordialidade que norteará a redefinição da dicotomia direito público-direito privado. Numa sociedade complexa, algumas distinções conceituais tornam-se fluidas e variáveis. O direito privado passa a ter espaços – antes inteiramente preservados de qualquer disposição de ordem normativa – regulamentados em lei. Isso se torna visível especialmente no direito de família. E, da mesma forma, algumas das disciplinas antes classificadas como de direito público passam a assumir uma feição cada vez mais aberta à possibilidade de argumentação, à inserção de elementos ligados à iniciativa individual. Um exemplo ilustrativo são as normas que autorizam transação penal ou suspensão da punibilidade em face da admissão da prática do ilícito. (2003)
Assim, no atual paradigma, o público e o privado se misturam e se complementam, não havendo mais como aceitar a idéia de que as restrições impostas ao poder público e os direitos fundamentais a ele oponíveis somente a ele se aplicam. O paradigma vigente não admite a primazia da autonomia da vontade no âmbito contratual e a total imunidade das relações entre particulares a qualquer tipo de limitação heterônoma.
Para além da diretriz contida no art. 1º, caput, da CF, que afirma a adoção do paradigma do Estado Democrático de Direito, a leitura da Constituição como um todo também aponta no sentido dessa plasticidade entre o público e o privado, ao enumerar direito fundamentais oponíveis precipuamente a particulares, a exemplo dos direitos mínimos dos trabalhadores elencados no art. 7º do texto constitucional.
Com efeito, a Constituição já não se esgota em traçar um arquétipo institucional do Estado e em programar e limitar a sua atuação. Seu conteúdo atual vai muito além, positivando valores e traçando as diretrizes básicas que orientam a renovação e a interpretação de toda a ordem jurídica, diretrizes essas aplicáveis indistintamente às esferas que antes se denominavam pública e privada.
Nesse contexto, a doutrina constitucional vem defendendo a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que nada mais é do que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares e a sua oponibilidade aos particulares, diversamente do que acontecia nos paradigmas anteriores, nos quais prevalecia a concepção de que os direitos fundamentais eram oponíveis apenas ao Estado.
Relevante, nesse ponto, a lição do Professor Luiz Guilherme Marinoni, segundo a qual:
Hoje o Estado não pode mais ser visto como “inimigo”, como acontecia à época do Estado liberal, pois tem a incumbência de projetar uma sociedade mais juta, regulando as atividades dos próprios particulares. De modo que os direitos fundamentais não têm razão para incidir apenas sobre as relações entre os particulares e o Estado, devendo também repercutir sobre as relações travadas apenas pelos particulares. (2008, p. 78)
A eficácia horizontal tem por fundamento a unidade do ordenamento jurídico, ainda mais evidente quando se abstrai a dicotomia entre o público e o privado outrora vigente. Em razão dessa unidade, as normas constitucionais que estipulam direitos fundamentais devem orientar a aplicação do direito tanto nas relações entre particulares, quanto entre esses e o Estado.
Afastar essa aplicação das normas constitucionais nas relações privadas corresponderia a esvaziar boa parte da eficácia e da força normativa da Constituição, uma vez que pouco adiantaria proteger os direitos fundamentais contra a atuação estatal caso se permitisse que, imunizando-se as relações privadas em nome da autonomia da vontade, fossem ilimitadamente transgredidos por particulares.
Sobre o assunto, o professor Ingo Wolfgang Sarlet, citando Nipperdey e Leisner, leciona o seguinte:
[...] uma vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais encontra respaldo no argumento de acordo com o qual, em virtude de os direitos fundamentais constituírem normas de valor válidas para toda a ordem jurídica (princípio da unidade da ordem jurídica) e da força normativa da Constituição, não se pode aceitar que o direito privado venha a formar uma espécie de gueto à margem da ordem constitucional. (2007, p. 400)
Saliente-se que reclamam a aplicação horizontal dos direitos fundamentais notadamente as relações entre particulares em que uma das partes é detentora de maior poder social, a exemplo das relações trabalhistas e das relações consumeristas, “já que se cuida induvidosamente de relações desiguais de poder, similares às que se estabelecem entre os particulares e os poderes públicos” (SARLET, 2007, p. 401-402).
Dito isso, fica claro que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, ao enunciarem direitos fundamentais decorrentes das normas inscritas nos arts. 3º, I, e 5º, LIV, da Constituição Federal, vinculam as relações jurídicas entre particulares, condicionando a validade dos atos praticados nesse âmbito à observância dos citados princípios. Nesse sentido já sinalizou o Supremo Tribunal Federal no seguinte julgado:
CONSÓRCIO - DESISTÊNCIA - DEVOLUÇÃO DE VALORES - CORREÇÃO MONETÁRIA. Mostra-se consentâneo com o arcabouço normativo constitucional, ante os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, decisão no sentido de, ao término do grupo, do fechamento respectivo, o consorciado desistente substituído vir a receber as cotas satisfeitas devidamente corrigidas. Descabe evocar cláusula do contrato de adesão firmado consoante a qual a devolução far-se-á pelo valor nominal. Precedente: Verbete nº 35 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça: "Incide correção monetária sobre as prestações pagas, quando de sua restituição em virtude de retirada ou exclusão do participante de plano de consórcio. (BRASIL, 1999)
Aliás, inúmeras são as irradiações dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na legislação infraconstitucional que rege as relações entre particulares, das quais são exemplos os arts. 187 e 413 do Código Civil, que prevêem, respectivamente, a ilicitude dos atos praticados com abuso de direito e a possibilidade de redução de multa contratual fixada em valor manifestamente excessivo.
Frise-se que, em face dos fundamentos constitucionais expostos acima, que justificam a aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade nas relações privadas, esses dispositivos legais devem ser interpretados ampliativamente, fornecendo parâmetros legais para aplicação dos citados princípios a todas as relações jurídicas entre particulares.
Assim, firmados os fundamentos constitucionais e legais que autorizam a vinculação das relações jurídicas entre particulares aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, têm-se por consequência lógica, a justificativa para a aplicação desses princípios na relação de emprego, que em regra podem ser enquadradas como espécie daquelas primeiras.
E, como já exposto supra, por se tratar de relação jurídica desigual, em que uma das partes, o empregador, é dotado de maior poder social, é ainda mais defensável a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a exemplo daqueles inscritos nos arts. 3º, I, e 5º, LIV, da Constituição Federal, dos quais decorrem os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Daí decorre que o entendimento amplamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência de que o empregador, no exercício do poder empregatício, notadamente em seu aspecto disciplinar, está vinculado aos citados princípios, encontra fundamento nos arts. 3º, I, e 5º, LIV, da Constituição Federal, 187 e 413 do Código Civil, aplicáveis por força da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.