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Manifesto jurídico e político: crítica ao aumento dos subsídios perpetrado pela Câmara Municipal de Maringá (PR)

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Houve violação abrupta do princípio da soberania popular por meio de uma manobra legislativa reprovável. Os mandatários – que recebem para se dedicar principalmente aos assuntos políticos – deveriam estreitar os laços comunicativos com os cidadãos, ouvindo-os e prestando contas do que fazem ou deixam de fazer.

PREFÁCIO

O presente texto foi originalmente escrito em 27 de novembro de 2011, época na qual foram publicadas no Órgão Oficial do Município (Ano XXII, n.º 1620, 21/11/2011) as Leis n.º 9.104/2012 e 9.105/2012: a primeira – proveniente do Projeto de Lei n.º 12.184/2011 – fixava os subsídios mensais dos Vereadores do Poder Legislativo de Maringá no valor de R$ 12.025,40e do Presidente da Câmara em R$ 18.038,10; a segunda – proveniente do Projeto de Lei n.º 12.185/2011 – fixa os subsídios mensais do Prefeito no valor de R$ 25.000,00, do Vice-Prefeito e dos Secretários Municipais, Coordenadores ou equivalentes no valor de R$ 12.025,40para a próxima gestão administrativa. Estes são os Vereadores que votaram a favor de ambos os projetos: Mário Hossokawa (PMDB), Heine Macieira (PP), Belino Bravin (PP), Aparecido Regini “Zebrão” (PP), Flávio Vicente (PSDB), Márcia Socrepa (PSDB), Carlos Saboia (PMN), Luiz do Postinho (PRP), Paulo Soni (PSB) e Umberto Crispim (PMDB); e estes os que votaram contra ambos os projetos: Humberto Henrique (PT), Mário Verri (PT) e Manoel Sobrinho (PC do B)[1] (RIGON, 2011). Disseminaram-se entre a população de Maringá grande descontentamento e revolta pelo elevado aumento nos subsídios e pelas circunstâncias obscuras nas quais os referidos Projetos de Lei foram discutidos e aprovados, motivos que nos levaram a fazer este Manifesto. Tudo isso está bem esmiuçado no decorrer do texto.

Entretanto, alguns fatos novos ocorreram durante este período de tempo e que merecem registro. Em síntese, após a pressão popular e de certas instituições (e. g., Ordem dos Advogados do Brasil, Observatório Social) dirigida contra os Vereadores, o assunto felizmente não caiu no esquecimento, como geralmente acontece. No entanto, se arrastou por alguns meses, quando foram colocados na pauta de votação do dia 10/05/2012 o Projeto de Lei n.º 12.275/2012, que pretendia fixar o subsídio mensal dos Vereadores do Poder Legislativo de Maringá para a próxima legislatura no valor de R$ 8.000,00; e o Projeto de Lei n.º 12.276/2012, que fixaria o subsídio mensal do Prefeito no valor de R$ 19.000,00, do Vice-Prefeito e dos Secretários Municipais, Coordenadores ou equivalentes no valor de R$ 9.500,00 para a próxima gestão administrativa. Ambos foram rejeitados e a votação foi a seguinte:votaram a favor da redução os Vereadores Humberto Henrique (PT), Mário Verri (PT), Carlos Eduardo Saboia (PMN), Márcia Socreppa (PSDB), Marly Martin (PPL), Flávio Vicente (PSDB) e BelinoBravin (PP); votaram contra a redução os Vereadores Heine Macieira (PP), Paulo Soni (PSB), Wellington Andrade (PRP), Luiz do Postinho (PRP), Manoel Sobrinho (PC do B), Aparecido Regini “Zebrão” (PP) e John Alves (PMDB). Restava o voto do Presidente Mário Hossokawa (PMDB), que se absteve (BATISTA, 2012) e os projetos não foram aprovados.

Por óbvio, após mais este golpe contra a vontade popular, os protestos aumentaram. Até que na sessão do dia 24/05/2012 os Vereadores aprovaram[2] em regime de urgência especial, em primeira discussão e por unanimidade, o Projeto de Lei n.º 12.352/2012 da Comissão de Finanças e Orçamento que fixa os subsídios mensais dos Vereadores em R$ 6.900,00e do Presidente da Câmara em R$ 10.350,00para a próxima legislatura (AYRES, 2012). Na sessão do dia 24/05/2012, o Projeto foi aprovado por unanimidade, em segunda discussão, sem quaisquer alterações (GIMENES, 2012). Após, seguiu para a sanção do Prefeito Carlos Roberto Pupin, transformando-se na Lei n.º 9.247/2012 e publicada no Órgão Oficial do Município (ANO XXII, n.º 1725, 15/06/2012). Vale lembrar que apenas a Lei n.º 9.104/2011 foi revogada; a Lei n.º 9.105/2011 – que trata dos subsídios do Prefeito, Vice-Prefeito etc. – continua vigente.

Por derradeiro, importa salientar que não tínhamos originalmente a ideia de publicar este artigo em algum periódico. Todavia, nosso amigo Marcelo Pichioli da Silveira (com o qual estudamos no curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá) convenceu-nos de que seria interessante a publicação por dois motivos: serviria para refrescar a memória de alguns desavisados sobre tal acontecimento (já que estamos perto das eleições municipais) e porque outros Municípios passaram pela mesma situação e este texto poderia ajudar de alguma maneira. Tentamos manter o texto próximo do original. Foram feitas apenas correções formais (para adequar o máximo possível às normas da ABNT) e algumas adições teóricas que consideramos importantes.


1 INTRODUÇÃO

Este texto[3] traduz em palavras a profunda indignação sentida contra este ato da Câmara Municipal de Maringá que aumentou escandalosamente os valores dos subsídios recebidos pelos Vereadores, Prefeito e outros agentes públicos, sem qualquer tipo de consulta ou debate com a sociedade civil, que suportará o ônus econômico de tal decisão. Saliente-se que os autores são acadêmicos do 3º ano do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá[4], que utilizaram os instrumentos oferecidos – principalmente – pela Ciência do Direito e pela Ciência Política para compreender e criticar objetivamente esta condenável atitude dos Vereadores da Câmara Municipal de Maringá e do Prefeito Silvio Magalhães Barros II. Esta é a nossa maneira de retribuir à sociedade civil – na qual estamos inseridos – que sustenta o ensino superior público por meio de pesados tributos. A Universidade tem que se aproximar de uma vez por todas da sociedade e não afastar-se dela[5]. Evitou-se qualquer tipo de “preciosismo” de linguagem e desde já pedimos desculpas para todos que, por algum acaso, tenham alguma dificuldade de compreender determinadas partes do texto pela presença de termos científicos, por exemplo. Nossa intenção é justamente aproximar essas três formas de conhecimento: o vulgar, o científico e o filosófico. Como cidadãos, esperamos que estas palavras reflitam o pensamento de nossos pares.


2 EXPOSIÇÃO FÁTICA E ANÁLISE JURÍDICO-POLÍTICA

O líder do governo na Câmara Municipal de Maringá, Vereador Heine Macieira (PP), justificou em entrevista a um programa de televisão local que o aumento do subsídio mensal dos Vereadores do Poder Legislativo de Maringá para a próxima legislatura tem respaldo na norma permissiva da Constituição Federal, esculpida no art. 29, VI, e, qual seja:

Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

(...)

VI - o subsídio dos Vereadores será fixado pelas respectivas Câmaras Municipais em cada legislatura para a subsequente, observado o que dispõe esta Constituição, observados os critérios estabelecidos na respectiva Lei Orgânica e aos seguintes limites máximos:

(...)

e) em Municípios de trezentos mil e um a quinhentos mil habitantes, o subsídio máximo dos Vereadores corresponderá a sessenta por cento do subsídio dos Deputados Estaduais;

De fato, em consulta ao banco de dados do Censo IBGE/2010 na internet, particularmente na Tabela de Resultados 2.1.21, vê-se que Maringá conta atualmente com 357.077 mil habitantes[6]. Os subsídios de Deputados Estaduais possuem o valor de R$ 20.042,34, conforme Anexo I ao Projeto de Lei n.º 12.184/2011. Além disso, os Projetos de Lei n.º 12.184/2011 e n.º 12.185/2011[7] (este para fixar os subsídios do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Secretários Municipais, Coordenadores ou equivalentes para a próxima gestão administrativa e dá outras providências) foram elaborados pela Comissão de Finanças e Orçamento[8], que detém competência sobre tal assunto (Regimento Interno da Câmara Municipal de Maringá, art. 51, I). As normas jurídicas que fixem os subsídios destes agentes públicos devem assumir forma de lei, conforme determina a Constituição Federal (arts. 29, V e VI, 37, X e 39, § 4º) e a Constituição do Estado do Paraná (art. 16, VI e VII)[9]. Outrossim, tais projetos foram aprovados em dois turnos: em primeira discussão sob regime de urgência na Sessão Ordinária do dia 17/11/2011 e em segunda discussão por terem sido incluídos sob regime de urgência na Sessão Extraordinária do mesmo dia 17/11/2011.

Após uma análise superficial de todo o contexto, seria possível concluir que o ato parlamentar é constitucionalmente perfeito por preencher todos os requisitos jurídicos de validade. Ledo engano... Na verdade, os dizeres do referido Vereador representam um verdadeiro tapa no rosto da sociedade civil. Antes de tudo, está em erro quem pensa que esta discussão se mantém apenas nos limites mais abstratos da juridicidade, no campo do que é lícito ou ilícito fazer ou deixar de fazer. Falar em Direito implica na consideração do Poder, pois a “correlação essencial entre nexo normativo e Poder é de suprema importância para uma compreensão realista do Direito, devendo notar-se que a decisão, que é a alma do Poder, não se verifica fora do processo normativo, mas inserindo-se nele, para dar-lhe atualidade ou concreção [...]” (REALE, 2009, p. 557, grifos no original).

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Deslocando o nível de análise, quanto mais alto nesta estrutura normativa que chamamos de ordenamento jurídico, mais estreitas são as fronteiras que separam o jurídico do poder político. Segundo Norberto Bobbio, na “Teoria Geral do Direito e do Estado, ‘norma’ e ‘poder’ são duas faces da mesma moeda” (2008, p. 170):

[...] A racionalização do poder através do Direito é a outra face da realização do Direito através do poder. O Direito é a política vista através de seu processo de racionalização, assim como o poder é o Direito visto em seu processo de realização. Mas como não pode existir poder sem Direito, para que o poder do Estado moderno possa ser legal, assim também não pode haver Direito sem poder, na medida em que o Direito é ordenamento que se realiza apenas através da força (BOBBIO, 2007, v. 1, p. 351).

No topo do ordenamento jurídico-positivo estão as normas jurídicas constitucionais, porque todo e qualquer ordenamento jurídico – e no ordenamento estatal esta identificação torna-se mais fácil[10] – possui um conjunto de normas jurídicas tidas como fundamentais para a organização do poder político que dará sequência em sua estruturação intrassistemática, principalmente no que tange à articulação do poder dominante, à distribuição de competências para a devida produção, aplicação e interpretação legítima de normas jurídicas gerais e, com o constitucionalismo contemporâneo, a autolimitação jurídica daqueles que detêm tais poderes mediante a previsão de direitos e garantias fundamentais. Assim, ao falarmos de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma, obrigatoriamente será levada em consideração a díade “jurídico-político”. Não por menos o Supremo Tribunal Federal, apesar de ser órgão jurisdicional de cúpula do Poder Judiciário, lida com incontáveis problemas políticos subjacentes às questões jurídico-constitucionais, cujas respostas este Tribunal tem o dever constitucional de definir em última instância (e. g., o emblemático caso Cesare Battisti).

No caso da realidade constitucional brasileira, esta discussão descamba para o que é politicamente pertinente dentro das regras deste complexo jogo intitulado “democracia”, fundamento político da Constituição Federal (art. 1º, caput e parágrafo único). Um jogo novo e que ainda não aprendemos a jogar. Mesmo que seu conceito seja equívoco (BONAVIDES, 2011, p. 288), democracia pressupõe participação ativa de todos aqueles que estão submetidos a determinada ordem jurídica e política para a construção permanente desta mesma ordem:

[...] A idéia fundamental da democracia é a seguinte: determinação normativa do tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo. Já que não se pode ter o autogoverno, na prática quase inexeqüível, pretende-se ter ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político [...] (MÜLLER, 2003, p. 57, grifo no original).

 Bem ao contrário da paralisia do medo, princípio e fundamento de todas as condutas ditatoriais, arbitrárias ou despóticas da elite política (MONTESQUIEU, 2004, p. 41) e, conforme escreveu Goffredo Telles Jr. aos brasileiros, “Ditadura é o regime que governa para nós, mas sem nós” (TELLES JR., 200-):

[...] podemos aceitar a concepção de Lincoln de que a democracia, como regime político, é governo do povo, pelo povo e para o povo. Podemos, assim, admitir que a democracia é uma processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo (SILVA, 2005, p. 126, grifos no original).

Democrático é o regime político em que a liberdade política e a autodeterminação de todos os cidadãos são potencializadas, na qual a “‘vontade’ representada na ordem jurídica é idêntica às vontades dos sujeitos” (KELSEN, 2005, p. 406). Como é notório, Jean-Jacques Rousseau construiu os termos idealistas de uma democracia:

[...] Esta dificuldade, reconduzindo ao meu assunto, poderá ser enunciada como segue: “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”. Esse, o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece (1983, p. 32, grifo nosso).

É improvável que esta identificação ocorra em um Estado de grandes dimensões (por dificuldades técnicas), como o Brasil. Para tornar possível a democracia na práxis, surgiram o princípio da maioria e a representação política (este nas modernas democracias, já que na Grécia Antiga só se concebia a democracia direta): pelo princípio da maioria, vence a decisão que contar com o maior apoio; já a representação política “é um fenômeno complexo cujo núcleo consiste num processo de escolha dos governantes e de controle sobre sua ação através de eleições competitivas” (COTTA, 2007, v. 2, p. 1106). Analiticamente, aqueles que detêm o direito subjetivo público de eleger (os cidadãos stricto sensu) outorgam mandatos políticos a determinadas pessoas (constitucionalmente elegíveis) para que estas elaborem as normas jurídicas mais relevantes da estrutura normativa (no caso brasileiro, as emendas constitucionais e as normas jurídicas legais ou leis stricto sensu) e tomem as necessárias e gravosas decisões para conduzir a coisa pública[11]. Nos dois casos, a noção de compromisso é elementar para a concretização de uma democracia. No primeiro caso, evita-se a ditadura da maioria[12]porque:

[...] compromisso [consequência de um debate livre entre maioria e minoria] significa a solução de um conflito por meio de uma norma que não se conforma inteiramente aos interesses de uma parte, nem contradiz inteiramente os interesses da outra. Na medida em que, numa democracia, os conteúdos da ordem jurídica também não são determinados exclusivamente pelo interesse da maioria, mas são o resultado de um compromisso entre os dois grupos, a sujeição voluntária de todos os indivíduos à ordem jurídica é mais facilmente possível que em qualquer outra organização política. Precisamente por causa dessa tendência rumo ao compromisso, a democracia é uma aproximação do ideal de autodeterminação completa (KELSEN, 2005, p. 412).

No segundo caso, nestes tempos de “democracia social” consagrada pela Constituição Federal de 1988, o mandato imperativo ressurge como um método eficaz de controle democrático que os cidadãos possuem para fiscalizar a conduta de seus mandatários. Contrapõe-se ao liberal mandato representativo“[...] que está nas suas origens francesas política e juridicamente vinculada à adoção da doutrina da soberania nacional [...]” (BONAVIDES, 2011, p. 278), porque foi “[...] a constituição francesa de 1791 que proclamou solenemente o princípio de que nenhuma instrução deveria ser dada aos deputados, porque o deputado não devia ser representante de nenhum distrito particular, mas da nação inteira” (KELSEN, 2005, p. 415). Neste modelo, o mandatário possui independência – coroamento das características de generalidade, liberdade e irrevogabilidade inerentes ao mandato representativo (BONAVIDES, 2011, p. 281) – frente ao eleitorado, pois representa toda a nação e não determinados grupos sociais:

[...] É exatamente por essa independência que um parlamento moderno se distingue dos corpos legislativos eleitos no período anterior à Revolução Francesa. Os membros desses corpos eram representantes verdadeiros - agentes reais da classe ou do grupo profissional que os escolhia, porque estavam sujeitos a instruções e podiam ter o mandato cassado em qualquer tempo (KELSEN, 2005, p, 415).

A “democracia” liberal do século XIX e início do século XX desenvolveu-se por meio do mandato representativo. Contudo, manteve o abismo entre os detentores temporários do poder político e povo, titular da soberania, que delegou esta função por meio do voto[13]:

O mandato representativo é criação do Estado liberal burguês, ainda como um dos meios de manter distintos Estado e sociedade, e mais uma forma de tornar abstrata a relação povo-governo. [...] Há muito de ficção, como se vê, no mandato representativo. Pode-se dizer que não há representação, de tal sorte que a designação de mandatário não passa de simples técnica de formação dos órgãos governamentais (SILVA, 2005, p. 139).

Nos moldes do mandato imperativo, o respectivo compromisso baseia-se na concessão, por parte do povo, de um amplo campo de atuação autônoma ao mandatário para que cumpra sua função e este, em contrapartida, deve ter em mente que apenas exerce uma função pública em prol do povo e, por consequência, deve prestar contas de tudo que faz no exercício do mandato e encurtar a distância que separam Estado e sociedade civil:

[...] Se é democrático a legislação ser exercida pelo povo, e se, por motivos técnicos, é impossível estabelecer uma democracia direta e se torna necessário conferir a função legislativa a um parlamento eleito pelo povo, então é democrático garantir, tanto quanto possivel, que a atividade de cada membro do parlamento reflita a vontade dos seus eleitores. O chamado mandatimpératif e a cassação de mandato de funcionários eleitos são instituições democráticas, desde que o eleitorado seja democraticamente organizado [...] (KELSEN, 2005, p. 417).

Os Vereadores da Câmara Municipal de Maringá acabaram de rasgar sorrateiramente este sagrado compromisso democrático. Imortalizada pelos gregos antigos, a isagoria – ao lado da isonomia e isotimia – constitui a base de qualquer democracia e consiste no “[...] direito de palavra, da igualdade reconhecida a todos de falar nas assembléias populares, debater publicamente os negócios do governo [...]” (BONAVIDES, 2011, p. 291). Os Projetos de Lei (n.º 12.184/2011 e n.º 12.185/2011) aprovados tratam da destinação do erário, do aumento de gastos com subsídios de agentes públicos. Matéria polêmica e de extrema relevância. Os legisladores municipais consultaram a sociedade civil para que esta pudesse ao menos se manifestar sobre um assunto que lhe afeta diretamente? Uma democracia apenas se faz presente, segundo Telles Jr., quando “[...] o Povo escolhe seus dirigentes, e tem meios de introduzir sua vontade nas deliberações governamentais”, onde “[...] se acham abertos os amplos e francos canais de comunicação entre a Sociedade Civil e o Governo” (TELLES JR., 200-). Agora que o debate tomou conta do espaço público[14], é possível dividi-lo em duas linhas de raciocínio: quanto ao modo ou o procedimento utilizado pelos legisladores municipais para aprovar os projetos de lei; quanto ao mérito da questão, ou seja, se era necessário ou não este aumento nos subsídios.

Consideramos que o modo sob o qual os dois projetos foram colocados em pauta para votação e como foram votados é eminentemente ilícito e o ponto mais gravoso desta discussão. Conforme análise dos vídeos das sessões ordinária e extraordinária do dia 17/11/2011[15] e dos arquivos dos Projetos de Lei n.º 12.184/2011 e n.º 12.185/2011, pode-se verificar que os Vereadores de Maringá, em uma bela demonstração de eficiência, apresentaram os projetos no dia 16/11/2011– em proposição feita pela Comissão de Finanças e Orçamento – e votaram no 17/11/2011. Curiosamente, a votação do PL n.º 12.184/2011 em primeiro turno durou exatos 45 segundos(48:45 – 49:30 do vídeo da sessão ordinária do dia 17/11/2011) – sem qualquer discussão ou orador para falar sobre o projeto – e a discussão em segundo turno mais 50 segundos (12:30 – 13-20 do vídeo da sessão extraordinária do dia 17/11/2011). Será que houve tempo suficiente para reflexão e debate para tratar de uma matéria que no próprio corpo da proposição vinha como “Matéria Polêmica”?

Falando ainda de matérias polêmicas, duas observações se fazem importantes. A primeira diz respeito ao outro Projeto de Lei n.º 12.185/2011, que trata dos subsídios do Prefeito, Vice-Prefeito e auxiliares, que embora tenha aumentado os vencimentos de tais personalidades em mais de 40%, com o subsídio do Prefeito chegando aos seus R$ 25.000,00 (comparável ao da Presidente da República e dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, que atingem a marca de R$ 26.700,00), foi considerada matéria não polêmica[16]. A segunda versa sobre o Regime de Urgência Especial, no qual os projetos foram incluídos. É definido no art. 202, caput e § 1º, do Regimento Interno da Câmara Municipal de Maringá:

Art. 202. A urgência especial é a dispensa de exigências regimentais, salvo as de quorum para aprovação e de parecer, quando assim exigido, para que determinada matéria seja prioritariamente submetida à deliberação plenária.

§1º. A urgência especial só poderá ser proposta para matérias que, examinadas objetivamente, demonstrem necessidade premente de aprovação,resultando em grave prejuízo a falta de sua deliberação imediata.

“Examinando objetivamente”, não nos parece que os mencionados aumentos se encaixam como urgentes, demonstrando “necessidade premente de aprovação”. Ora, as eleições municipais de 2012 ocorrerão no dia 07/10/2012. Portanto, a “matéria urgente” poderia ser votada até o dia 07/10/2012, sem que tal fato acarretasse em qualquer “grave prejuízo”. Diga-se de passagem: prejuízo para quem? Claro, para os Excelentíssimos Vereadores que, com tanto medo de suportarem este prejuízo, contrariaram texto expresso da Lei Orgânica:

Art. 56. Os subsídios do Prefeito, do Vice-Prefeito, dos Secretários Municipais ou equivalentes e dos Vereadores serão fixados pela Câmara Municipal no último ano da legislatura, até trinta (30) dias antes das eleições municipais, vigorando para a seguinte, observado o disposto na Constituição Federal.

Percebe-se que os subsídios deverão ser fixados no “último ano da legislatura”, ou seja, em 2012. Quanta pressa, não? Contudo, retiramos este artigo da Lei Orgânica que (como salientamos no início do texto) está disponível no sítio da Câmara Municipal de Maringá, atualizada até junho 2010, como mencionado acima. Mas, com total displicência e desrespeito ao princípio constitucional da publicidade (em seu aspecto material)dos atos do Poder Público (Constituição Federal, art. 37, caput), os responsáveis não atualizaram o texto da Lei Orgânica disponível no sítio da Câmara com a alteração do art. 56, feita pela aprovação (em segundo turno no dia 12/07/2011) da Proposta de Emenda à Lei Orgânica n.º 96/2011 (datada de 06/06/2011)[17]:

Art. 56. Os subsídios do Prefeito, do Vice-Prefeito, dos Secretários Municipais ou equivalentes e dos Vereadores serão fixados por lei de iniciativa da Câmara Municipal, em cada legislatura para a subsequente, antes das eleições municipais, observado o disposto na Constituição Federal e as normas da legislação pertinente.

Conclui-se que esta reprovável manobra legislativa, cujo desfecho ocorreu no dia 17/11/2011, começou a ser articulada conscientemente em junho de 2011, com a referida emenda à Lei Orgânica! Agora a lei de fixação dos subsídios pode ser votada em quaisquer dos anos que compõem a legislatura e apenas por iniciativa da Câmara Municipal, precavendo-se das manifestações que agora explodem e de revogação por meio de lei de iniciativa popular. De qualquer maneira, a não adequação ao Regime de Urgência Especial ainda subsiste e, com isso, esta lei perde completamente sua validade neste aspecto procedimental, por desrespeito ao devido processo legislativo: “dogma corolário à observância do princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente, uma vez que ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de espécie normativa devidamente elaborada pelo Poder competente [...]” (MORAES, 2010, p. 650).

Finalmente, no que tange ao mérito da questão, ou seja, se era necessário ou não o aumento nos subsídios, existem dois posicionamentos: concordância ou discordância. Discordamos veementemente de um aumento neste montante: de 90,51% para os Vereadores (de R$ 6.312,63 para R$ 12.025,40) e de 44,1% para o Prefeito (de R$ 17.300,00 para R$ 25.000,00), sem contar os demais aumentos para Presidente da Câmara, Vice-Prefeito etc. Consideramos absurdo e desnecessário principalmente por causa da conjuntura global contemporânea, pois, desde o começo deste ano, em parte para não sofrer do mesmo mal que põe em xeque a capacidade da União Europeia em amenizar as distorções do capitalismo neoliberal e em parte para manter casa em ordem, o Estado brasileiro vem contendo seus próprios gastos, com cortes e mais cortes no orçamento, tanto do Governo Federal com cortes que chegaram a R$ 50 bilhões (CAVALCANTI, 2011), quanto do Governo do Estado do Paraná, em sua meta de cortar em 15% suas despesas (GOVERNO..., 2011). Não é preciso relacionar este aumento com a situação socioeconômica deste País, cujos cidadãos são deixados às traças em macas de hospitais, quando estas existem; não possuem o devido amparo das forças policiais mal remuneradas e sucateadas; recebem uma educação autoritária e subserviente ao “mercado”, que não conduz as pessoas ao que Kant chamava de “maioridade e autonomia da razão” etc.

Curiosamente, existe um precedente histórico interessantíssimo quanto à remuneração de agentes políticos: quando governou Atenas (444 – 429 a. C.) Péricles concedeu “[...] uma indenização (mistoforia) a quem desempenhasse um cargo público, com o claro objetivo de permitir até aos menos abastados, então admitidos à magistratura por sorteio, a participação no Governo da Pólis” (BONINI, 2007, v. 2, p. 953). O que Péricles queria evitar era a formação de uma “plutocracia”, já que somente os abastados e economicamente independentes poderiam participar com tranquilidade e tempo dos debates políticos. Foi baseado nesse sentido econômico que Max Weber elaborou a famosa distinção entre os políticos que vivem para a política e aqueles que vivem da política: aqueles não dependem economicamente da política; estes retiram seu próprio sustento da política (WEBER, 2006, p. 68). Ambos podem ter em vista a realização do interesse público, mas o que ocorre na experiência é que os primeiros utilizam o poder político para manter a situação de dominação e exploração econômica; os segundos veem no exercício de um cargo político um verdadeiro “trampolim” socioeconômico, para aumentar (ou adquirir) seu próprio patrimônio de maneira fácil à custa do erário. A situação se agrava quando certa sociedade organiza-se administrativamente em moldes patrimonialistas, onde não há quaisquer limites entre o âmbito público e privado, particularmente quando os indivíduos usam o Estado para realizar os próprios interesses em detrimento do interesse público.

Este é o caso do Estado brasileiro, essencialmente patrimonialista, cuja origem pode ser remontada à monarquia lusitana (confusão entre patrimônio do rei e patrimônio da Coroa) no alvorecer da Modernidade, conforme brilhante exposição historiográfica de Raymundo Faoro (2001, p. 17-87). O “homem cordial” (oposto da racionalidade e objetividade do burocrata) de Sérgio Buarque de Holanda é a expressão típico-ideal do patrimonialismo luso-brasileiro. Sobre o patrimonialismo, ele diz:

Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente[18], compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. [...] Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático, quanto mais caracterizados estejam os dois tipos (HOLANDA, 1995, p. 145-146).

Será este o caso na Câmara Municipal de Maringá? Em termos jurídicos, ao fixar a remuneração para cargos públicos, mormente os de natureza política, leva-se em conta o prestígio e relevância institucional das funções ou atividades que o sujeito ocupante deveria juridicamente cumprir; o que ele efetivamente faz ou deixa de fazer é um problema de concretização das normas jurídicas que determinam a conduta deste sujeito enquanto agente político, ou seja, a posteriori. Na dosimetria do valor desta remuneração, devem ser considerados estes dois aspectos em conjunto[19], sem esquecer que: (1) deve-se levar em conta que estamos falando de um regime jurídico-público, onde não há espaço para em interesses puramente individualistas; (2) não há “dedicação exclusiva” do vereador no exercício do mandato, basta que ele compareça nas sessões de discussão e votação. Aliás, no contexto jurídico-político brasileiro, se a remuneração serve para os mandatários se dediquem com o máximo de disponibilidade e eficiência na condução da pólis, despreocupando-se com as necessidades subsistenciais; se serve para debelar a corruptividade dos mandatários frente ao poder econômico; se, ao contrário, os níveis de indolência e corrupção são alarmantes, por ser a política apenas mais um meio de ascensão socioeconômica: os constantes aumentos se justificam?

Caso a situação seja mantida[20], cada Vereador receberá anualmente R$ 144,300,00 (exceção ao Vereador Presidente da casa legislativa que receberá por mês R$ 18.038,11 e R$ 216,456,00 por ano), o que se contarmos os 4 (quatro) anos de mandado eletivo, representarão R$ 577.200,00; em 2013, conforme tabela anexa ao Projeto de Lei n.º 12.184/2011, a Câmara Municipal custará aos cofres públicos R$ 2.236,725,14, um gasto de R$ 1.060.670,30 a mais ao erário (o custo atual por ano é de R$ 1.176.054,84). Já o Prefeito receberá por ano o valor de R$ 300.000,00que, considerando um mandato integralmente cumprido, representará um ganho R$ 1.200,000,00. Apesar das vozes discordantes, o Prefeito Silvio Magalhães Barros II resignou-se e sancionou as Leis n.º 9104 e n.º 9105, publicadas no Órgão Oficial do Município no dia 21/11/2011 (ANO XXII, n.º 1620).

Entretanto, o mérito deve ser amplamente debatido no espaço público:

O espaço público, pela natureza das ações diversificadas que se desenvolvem no seu interior, nomeadamente aquelas de cunho político e social, é conceito contemporâneo de extrema importância, enquanto auxiliar poderoso na construção dos sistemas participativos da democracia direta, onde é possível, ainda, conviver, sem incompatibilidade absoluta, com formas remanescentes de representação, ao contrário do que muitos equivocadamente supõem (BONAVIDES, 2001, p. 278).

 Veja bem: não estamos dizendo que os Vereadores não possam sequer apoiar tal aumento nos subsídios. Isso é democraticamente legítimo e tem amparo na autorização constitucional mencionada acima. No entanto, devem ter a hombridade de apresentar as razões de seus posicionamentos em público, para que isso seja discutido com os munícipes em um diálogo franco e aberto. Caso a maioria decida no sentido inverso, basta desistir da ideia; como meros mandatários, devem prestar contas e sujeitar-se às determinações dos mandantes: se não conseguem lidar com tal sujeição, não podem ser mandatários. Os choques entre teses e heteroteses são essenciais à dinâmica do regime democrático. Como frisamos, o modo de proposição e votação dos projetos de lei é a parte mais gravosa e repugnante de tudo isso. Consequentemente, mesmo que você concorde com o aumento dos subsídios, com esta atitude os Vereadores de Maringá pisaram em seu direito subjetivo – fundado na já citadaisagoria – de debater publicamente assuntos da pólis, de expressar sua discordância (ou mesmo a concordância) com os projetos e isto não pode ser admitido em uma sociedade que se diz “democrática”.

Sobre os autores
Jhonatan de Castro e Silva

Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá.

Ramon Alberto dos Santos

Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Pesquisador Discente da referida instituição de ensino nas áreas de Direito Comparado e de Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Jhonatan Castro; SANTOS, Ramon Alberto. Manifesto jurídico e político: crítica ao aumento dos subsídios perpetrado pela Câmara Municipal de Maringá (PR). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3347, 30 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22516. Acesso em: 5 nov. 2024.

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