4. Dificuldades na aplicação da recuperação judicial às concessionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica
Como já demonstrado nos itens anteriores, a receita decorrente da tarifa de energia elétrica não se destina em sua integralidade à concessionária de distribuição para a operação e manutenção de suas instalações, para a remuneração do capital investido e para a realização de investimentos.
Uma parcela considerável da tarifa se destina a terceiros: Orçamento da União, contas gerenciadas pela Eletrobrás, concessionárias de transmissão e empresas de geração, funcionando a distribuidora como mera arrecadadora e repassadora desses valores.
Diante dessa peculiaridade da tarifa de energia elétrica, os valores arrecadados na tarifa e que não são de titularidade da concessionária, como é o caso dos itens que integram a Parcela A, não podem ser utilizados para o pagamento de credores no plano de recuperação judicial ou no procedimento de falência. Além disso, mesmo na receita oriunda da Parcela B, há uma parte que é absolutamente essencial à prestação do serviço, como os valores destinados a custos de operação e investimentos.
Para se demonstrar a participação das Parcelas A e B na tarifa em uma situação real, segue gráfico com os dados específicos da tarifa atualmente vigente para CELPA. Nele se percebe que apenas 30,6% da tarifa da CELPA correspondem à Parcela B (o custo de distribuição). A Parcela A corresponde ao restante da receita (encargos setoriais, custo da transmissão, custo da geração e tributos).
Ora, se os valores da Parcela A não são de titularidade da concessionária, nem a ela de qualquer forma se destinam, são prestações indisponíveis, necessárias à prestação e à continuidade de atividades inerentes ao serviço público de distribuição de energia (compra de energia, transporte, programas governamentais, etc.).
Assim, esses valores não podem ser utilizados para a satisfação de credores no plano de recuperação judicial, sob pena de incurso em verdadeira apropriação indébita por parte da concessionária. A utilização dos recursos da Parcela A no plano de recuperação judicial significaria saldar dívidas com recursos de terceiros.
Deve-se repisar que a receita da atividade de distribuição de energia se restringe à Parcela B da tarifa. Portanto, na recuperação judicial, a satisfação dos credores deverá estar focada exclusivamente na Parcela B.
Mas deve-se ter presente que não é toda a receita oriunda da Parcela B que pode ser comprometida com a recuperação da empresa. Com efeito, a satisfação dos custos operacionais e a realização dos investimentos, que integram a Parcela B, não podem ser afetados pela recuperação judicial, sob risco de se comprometer a continuidade da prestação do serviço público.
Como já visto, os custos operacionais incluem os custos com gestão de pessoas (administrativo e de operação e manutenção), infraestrutura física (edificações, móveis, sistema de informática), materiais e serviços terceirizados, que são essenciais à continuidade da adequada prestação do serviço público de distribuição de energia. Daí que os custos operacionais correntes devem continuar a ser satisfeitos, sob risco de interrupção no fornecimento de energia elétrica.
A continuidade da realização dos investimentos é essencial para se manter a atualidade do serviço. Sem investimentos, as instalações se tornam obsoletas e a prestação do serviço também fica comprometida.
Para que se obtenha o montante de recursos a ser destinado à satisfação dos credores na recuperação judicial, deve-se considerar apenas a Parcela B, dela abatendo-se a despesa relacionada a todos os custos operacionais e investimentos indispensáveis ao serviço público de distribuição de energia elétrica.
Observa-se, então, que a concessionária de distribuição de energia tem muito pouco espaço para poder transigir com seus credores, visto que a maior parte de sua receita é vinculada.
Ademais, como já demonstrado, os bens reversíveis, que são aqueles relacionados diretamente à prestação do serviço de distribuição de energia, não podem ser alienados para satisfação dos credores.
Assim, um dos principais instrumentos para se atingir a recuperação da empresa, que é a venda de parte dos ativos, é impossível quando se trata de concessionária de serviço público.
5. Conclusão
Diante do exposto, uma primeira conclusão que pode ser alcançada é que a recuperação judicial de concessionária de serviço público de distribuição de energia elétrica, a não ser que se destine apenas a obter anuência dos credores quanto à concessão de maior prazo para pagamento das dívidas, revela-se absolutamente ineficaz para a superação da situação de crise.
Ademais, caso não se observem as restrições apontadas, a recuperação judicial pode comprometer seriamente a continuidade da prestação do serviço público, colocando o direito dos credores à frente do direito da coletividade.
Sob o ponto de vista de uma análise de custo-benefício, o procedimento da recuperação judicial é muito arriscado para a concessão e poucos benefícios traz para os credores.
Cabe ressaltar que é um paradoxo possibilitar a aplicação da recuperação judicial e da falência às concessionárias de serviço público, e, ao mesmo tempo, excluir de seu alcance as empresas estatais que prestam serviço público.
O paradoxo se torna mais patente ao se observar o argumento da exclusão das empresas estatais prestadoras de serviço público do âmbito de aplicação da lei: impossibilidade de desvio dos bens reversíveis de sua finalidade.
Ora, nos sistemas jurídicos de origem romano-germânica, confere-se repercussão interpretativa ao brocardo latino “ubi eadem ratio, ibi idem jus” (“quando a razão for a mesma, aplica-se o mesmo direito”). Vide, por exemplo, julgados proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça no AgRg no REsp 1142065/RS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, e AgRg no REsp 1231689/RS, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, entre muitos outros.
Para além da ineficácia da recuperação judicial à situação das concessionárias de serviço público, propõe-se interpretação, para o caso, aderente ao brocardo mencionado, qual seja, excluir-se as concessionárias de serviço público do âmbito de aplicação da Lei n. 11.101/2005, por aplicação analógica da hipótese do artigo 2°, I, do mesmo diploma.
Não se pretende, com essa solução interpretativa, promover a continuidade do serviço público à custa do sacrifício dos direitos dos credores. Pretende-se viabilizar as condições para que o Poder Concedente promova a declaração de caducidade (extinção da concessão), com a consequente indenização da parcela ainda não amortizada dos bens reversíveis. Aí, sim, os credores terão numerário de titularidade do devedor para promover a satisfação de suas dívidas, o que ocorrerá sem prejuízo da prestação do serviço.
Referências
AGUILLAR, Fernando Herren. Serviços públicos: doutrina, jurisprudência e legislação. São Paulo: Saraiva, 2011.
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COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 130.
CRETELLA NETO, José. Nova lei de recuperação judicial e falências. Rio de Janeiro: GZ, 2012.
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. Dialética: São Paulo, 2003.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2010.
MILANI, Mario Sergio. Lei de recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência comentada. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 64.
SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. Forense: Rio de Janeiro, 2012, p. 14.
Notas
[1] A regra, portanto, é buscar salvar a empresa, desde que economicamente viável. O legislador colocou, à disposição dos atores principais, no cenário da empresa em crise, as soluções da recuperação extrajudicial e judicial.
A medida extrema da falência só deve ser decretada quando for inviável preservar a atividade.
(SALOMÃO E SANTOS, 2012, p. 14).
[2] Art. 53. O plano de recuperação será apresentado pelo devedor em juízo no prazo improrrogável de 60 (sessenta) dias da publicação da decisão que deferir o processamento da recuperação judicial, sob pena de convolação em falência, e deverá conter:
I – discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados, conforme o art. 50 desta Lei, e seu resumo;
II – demonstração de sua viabilidade econômica; e
III – laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.
Parágrafo único. O juiz ordenará a publicação de edital contendo aviso aos credores sobre o recebimento do plano de recuperação e fixando o prazo para a manifestação de eventuais objeções, observado o art. 55 desta Lei.
[3] Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros:
I – concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas;
II – cisão, incorporação, fusão ou transformação de sociedade, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações, respeitados os direitos dos sócios, nos termos da legislação vigente;
III – alteração do controle societário;
IV – substituição total ou parcial dos administradores do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos;
V – concessão aos credores de direito de eleição em separado de administradores e de poder de veto em relação às matérias que o plano especificar;
VI – aumento de capital social;
VII – trespasse ou arrendamento de estabelecimento, inclusive à sociedade constituída pelos próprios empregados;
VIII – redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva;
IX – dação em pagamento ou novação de dívidas do passivo, com ou sem constituição de garantia própria ou de terceiro;
X – constituição de sociedade de credores;
XI – venda parcial dos bens;
XII – equalização de encargos financeiros relativos a débitos de qualquer natureza, tendo como termo inicial a data da distribuição do pedido de recuperação judicial, aplicando-se inclusive aos contratos de crédito rural, sem prejuízo do disposto em legislação específica;
XIII – usufruto da empresa;
XIV – administração compartilhada;
XV – emissão de valores mobiliários;
XVI – constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor.
§ 1º Na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia.
§ 2º Nos créditos em moeda estrangeira, a variação cambial será conservada como parâmetro de indexação da correspondente obrigação e só poderá ser afastada se o credor titular do respectivo crédito aprovar expressamente previsão diversa no plano de recuperação judicial.
[4] Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará a assembléia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação.
§ 1º A data designada para a realização da assembléia-geral não excederá 150 (cento e cinquenta) dias contados do deferimento do processamento da recuperação judicial.
§ 2º A assembléia-geral que aprovar o plano de recuperação judicial poderá indicar os membros do Comitê de Credores, na forma do art. 26 desta Lei, se já não estiver constituído.
§ 3º O plano de recuperação judicial poderá sofrer alterações na assembléia-geral, desde que haja expressa concordância do devedor e em termos que não impliquem diminuição dos direitos exclusivamente dos credores ausentes.
§ 4º Rejeitado o plano de recuperação pela assembléia-geral de credores, o juiz decretará a falência do devedor.
[...].
Art. 73. O juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial:
I – por deliberação da assembléia-geral de credores, na forma do art. 42 desta Lei;
II – pela não apresentação, pelo devedor, do plano de recuperação no prazo do art. 53 desta Lei;
III – quando houver sido rejeitado o plano de recuperação, nos termos do § 4º do art. 56 desta Lei;
IV – por descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano de recuperação, na forma do § 1º do art. 61 desta Lei.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não impede a decretação da falência por inadimplemento de obrigação não sujeita à recuperação judicial, nos termos dos incisos I ou II do caput do art. 94 desta Lei, ou por prática de ato previsto no inciso III do caput do art. 94 desta Lei.
[5] Cláusula Quarta. Expansão e ampliação dos sistemas elétricos.
A concessionária obriga-se a implantar novas instalações e a ampliar ou modificar as existentes, de modo a garantir o atendimento da atual e futura demanda de seu mercado de energia elétrica, observadas as normas e recomendações dos órgãos gerenciadores do Sistema Elétrico Nacional, do Poder Concedente e da ANEEL.
Primeira Subcláusula – As ampliações dos sistemas de distribuição e dos respectivos sistemas de transmissão de âmbito próprio da concessionária deverão obedecer aos procedimentos legais específicos e às normas do Poder Concedente e da ANEEL. As novas instalações, as ampliações e as modificações das instalações existentes, desde que autorizadas ou aprovadas pela ANEEL, incorporar-se-ão às respectivas concessões, regulando-se pelas disposições deste Contrato e pelas normas legais e regulamentares da prestação do serviço público de energia elétrica.
[...]
Terceira Subcláusula – A concessionária deverá organizar, e manter permanentemente atualizado, o cadastro dos bens e instalações de distribuição e dos sistemas de transmissão de âmbito próprio, vinculados aos respectivos serviços, informando a ANEEL as alterações verificadas.