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O crime de saidinha de banco e o fortuito interno

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Agenda 13/09/2012 às 15:05

Nos crimes de “saidinha de banco”, a responsabilidade civil é objetiva dos bancos, por falta do dever de segurança, na medida em que dão azo ao acidente de consumo, não tomando qualquer providência para evitar o delito, a fim de proteger o usuário do serviço bancário.

“Indenizar pela metade é responsabilizar a vítima pelo resto”

– Daniel Pizzaro

“A vida é breve,a alma é vasta.” 

 Fernando Pessoa

Resumo: Numa perspectiva civil-constitucional, o estudo faz um escorço histórico sobre a responsabilidade civil, vaticinando que, na passagem do Estado Social para o Estado Pós-moderno, a tendência é pela objetivação, fundada na ideia de risco e não de culpa. Na sociedade hodierna, a atividade humana é perigosa ou de risco. Nesse contexto, destaca-se a responsabilidade civil dos bancos, regida pelo CDC e pela cláusula aberta do art. 927, § único, do CC, à luz do ‘Diálogo das Fontes’.  Os bancos, que têm o dever de segurança, respondem pelos assaltos no interior da agência, mesmo no auto-atendimento e fora do horário bancário, bem como pelos crimes de “saidinha de banco” nas proximidades da agência ou mesmo nos terminais eletrônicos em vias públicas, em razão do acidente de consumo, derivante do fortuito interno.

Palavras-chave: Responsabilidade civil -- Tendência – Objetivação -- Atividade de risco – Responsabilidade civil dos bancos – O crime de “saidinha de banco” – Agências -- Imediações – Caixa eletrônica em via pública – Acidente de consumo – Fortuito interno.

Sumário: 1. Introdução – 2. A imprescindível perspectiva civil-constitucional – 3. Considerações gerais e importância da responsabilidade civil – 4. Conceitos de obrigação e responsabilidade – 5. Distinção entre obrigação e responsabilidade – 6. Função da responsabilidade civil – 7. Espécies de responsabilidade civil: 7.1 Responsabilidade civil e penal; 7.2 Responsabilidade civil contratual e extracontratual; 7.3 Responsabilidade civil subjetiva e responsabilidade civil objetiva – 8. A perspicaz doutrina de Carlos Alberto Bittar – 9. A responsabilidade por atividade de risco – 10. A responsabilidade civil dos bancos – 11. Os bancos e os assaltos dentro da agência – 12. O crime de “saidinha de banco” nas imediações da agência – 13. O crime de “saidinha de banco” e os terminais eletrônicos em vias públicas – 14. Conclusão – 15. Referências bibliográficas


1.INTRODUÇÃO

Os novos paradigmas da responsabilidade civil vão ao encontro da proteção da vítima, de modo que esta seja ressarcida ou compensada, patrimonialmente, preservando, contudo, a sua dignidade como pessoa.

Isso se deve ao Direito Civil Constitucional, cujos postulados se aplicam diretamente às relações privadas, à luz da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais, em busca da efetivação de uma mentalidade constitucionalista.

Na sociedade hodierna ou pós-moderna – massificada, plural, impessoal – as relações jurídicas civis são complexas ou até hiper complexas, de sorte que o sistema jurídico não pode ficar alheio aos fatos novos da vida, aos novos ilícitos que diuturnamente se consumam.

Sabidamente, a sociedade brasileira é injusta, não só em razão dos notórios desmandos administrativos, mas também diante da histórica impunidade.

Especialmente nas grandes cidades a violência é crescente, a criminalidade se organiza a olhos vistos, valendo-se de armas sofisticadas e modernos aparelhos tecnológicos; além disso, age de forma ousada, desmedida e assustadora. Por seu turno, o Estado não vem cumprindo o seu dever constitucional de prestar uma segurança pública eficiente, deixando o cidadão comum à míngua, entregue à sorte, ao destino fatídico.

No Brasil de hoje a regra é ser ou ter sido assaltado, e não a exceção.

Nesse cenário estão os bancos, que, nada obstante bem organizados enquanto agentes econômicos, de fato desenvolvem uma atividade perigosa ou de risco sem a devida contrapartida em prol dos usuários, faltando, em regra, com o seu dever de segurança.

Diuturnamente, a mídia expõe notícias envolvendo os bancos, quer seja informando acerca dos lucros exorbitantes, das longas filas, dos horários reduzidos, das informações deficientes, da insegurança nas agências, enfim, dos defeitos dos serviços bancários.

E dentre esses defeitos, frise-se, destaca-se a desídia bancária diante dos assaltos, dos roubos vulgarmente chamados de “saidinhas de banco”.

Na prática, os meliantes agem livremente, pois, em concurso de pessoas, um deles visualiza ou filma (no jargão policial) a inditosa vítima que opera um saque, por exemplo, em um auto-atendimento – no horário ou fora do horário bancário – para então, em via pública, consumar o roubo, fugindo em seguida na garupa de uma moto do parceiro.

Também com a mesma dinâmica – iter criminis – o delito de “saidinha de banco” ocorre nas imediações das agências ou em terminais eletrônicos situados em vias públicas, País afora, sem que os bancos (os donos dos serviços) tomem qualquer providência.

Muito ao contrário, os bancos, uma vez demandados por tais crimes, e às vezes até com o resultado morte, ensejando um outro tipo penal(o latrocínio) --  insistem na tese do fato de terceiro, da exclusão da responsabilidade civil sob a alegação de caso fortuito, do rompimento do nexo causal, imputando a responsabilização à Administração Pública, ao Estado.

Assim, o presente estudo enfrenta a casuística na perspectiva da concretude dos direitos fundamentais, na objetivação da responsabilidade civil, aduzindo que a atividade dos bancos é de risco, implicando, ipso facto, no reconhecimento do fortuito interno em sede dos crimes de “saidinha de banco” e seus tipos congêneres. 


2.A IMPRESCINDÍVEL PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL

O pano de fundo desse estudo centra-se no chamado Direito Civil Constitucional, isto é, o direito civil interpretado e aplicado à luz da Constituição Federal e não o inverso. O enfoque é “o direito civil materialmente contido na Constituição”, no dizer de Francisco Amaral[1], ou melhor, o direito civil interpretado e aplicado segundo a normativa constitucional.

Com efeito, com a abertura do sistema jurídico civil, a partir da década de 1930 do Século XX, a dicotomia Direito Público/Direito Privado perdeu sentido, por força do fenômeno conhecido como Dirigismo Estatal aplicável às relações privadas, quer seja pelo Dirigismo Judicial, Legislativo e Executivo – deixando de existir, desde então, norma jurídica estritamente pública ou norma jurídica estritamente privada, uma vez que o conteúdo das normas passou a se entrelaçar, em simbiose, habitando em ambas o interesse público e privado de forma entrelaçada, ínsita e inata.

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À luz da moderna doutrina, a vetusta Summa Divisio do Direito Romano, nascida do critério romano da ‘utilitas’, na sentença do jurisconsulto Ulpiano, que viveu no século III d.C., de há muito se findou no Direito Pátrio, consoante bem assesta o magistério do Professor Silvio Meira[2], quando observa que “a divisão dicotômica entre direito público e direito privado, de remotas origens romanas, desfigura-se ante a trepidação do século, em que o interesse individual, o social e o estatal se entrelaçam de tal forma que nem sempre é fácil estabelecer suas fronteiras e as suas prioridades”. E nessa mesma linha de raciocínio, não é outro o magistério do Professor Leonardo Matietto[3], isto é – “que a distinção entre o privado e público está em profunda crise, pois em uma sociedade como a atual é tarefa bastante difícil localizar um interesse privado que seja completamente autônomo, independente, isolado do interesse público”.

Já na esteira dos ensinamentos do mestre Gustavo Tepedino  - o papa do Direito Civil Constitucional no Brasil –  foi a partir da década de 1930 do Século passado que o sistema jurídico-civil do Pais, até então hermeticamente concentrado no Código Civil de 1916, também denominado a “Constituição do Direito Privado”, começou a abrir-se, a espargir-se, a fragmentar-se, com o advento de leis civis especiais, extravagantes, inaugurando uma nova fase do Direito Civil, a chamada ‘era da descodificação’ ou ‘era dos estatutos’.

De fato, a partir de então iniciou-se a substituição do monossistema civilístico (representado pelo Código Civil de Bevilácqua), pelo sistema civil polissistémico, formado pelos estatutos, isto é, as leis extra codificadas, as quais passaram a reger institutos civilísticos com inteira independência temática, restando ao Código Civil uma mera função residual, aplicável tão somente às matérias não reguladas pelas leis especiais.

Trata-se da abertura do sistema jurídico-civil, a fragmentação do direito civil, com o surgimento de inúmeras leis especiais, dentre outras, a saber: o Decreto-Lei nº 58/37, a Legislação Trabalhista (CLT), a Lei dos Condomínios (Lei nº 4.591/64), o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), a Lei do Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/79), a Lei da Impenhorabilidade do Bem de Família (Lei 8.009/90), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), a Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91), e cujo apogeu fragmentário deu-se com a promulgação da Constituição Federal de 1988.

 Foi a Carta Magna que passou a normatizar institutos tipicamente civilísticos, ou seja, o contrato, a propriedade, a família, o herdeiro, o consumidor, de tal sorte que o Direito Civil, até então fragmentário, reunificou-se com o Texto Constitucional, uma vez que a Constituição Federal tornou-se o centro do ordenamento jurídico, irradiando sua principiologia por todo o tecido infraconstitucional, deslocando o ponto de referência antes localizado no Código Civil para a tábua axiológica da Constituição da República, como assim bem preleciona o mestre Gustavo Tepedino[4].

Por conseguinte, a Carta Magna, de natureza eminentemente principiológica, impôs a reunificação do Direito Civil, transmudando o centro de interesse civilístico -- antes patriomonializado -- em um foco despatrimonializado, doravante personalizado, centrado na cláusula geral da tutela da pessoa humana.

Hodiernamente, impensável o Direito Civil desatrelado de uma perspectiva constitucional, estando hoje fundado em três princípios constitucionais estruturantes, a saber: a) o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º inciso III da CF/88); b) o Princípio da Solidariedade Social (art. 3º inciso I c/c art. 170 da CF/88); c) o Princípio da Isonomia ou Igualdade (art. 5º caput da CF/88), valendo-se registrar, pela pertinência simbológica, o exemplo geofísico de autoria de Ricardo Lorenzetti, apud Flavio Tartuce[5], qual seja, “o Sol seria a Constituição Federal de 1988; o planeta principal, o Código Civil; e os satélites, os microssistemas ou estatutos”.


3.CONSIDERAÇÕES GERAIS E IMPORTÂNCIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL.

Inicio esse tópico com uma singela e corriqueira indagação: de quem é a responsabilidade?

Sem dúvida, essa popularíssima pergunta é ouvida a toda hora em qualquer canto do Brasil e em circunstâncias das mais diversas e simplórias do cotidiano da vida, como, por exemplo: quando um menino joga uma pedra num transeunte; quando um jarro de flores cai sobre o teto de um carro; quando um cachorro morde a vizinha; quando um ciclista cai no bueiro de uma rua; quando uma bala perdida atinge um transeunte; quando uma mulher é assaltada dentro de uma agência bancária, etc.

Ademais, há também circunstâncias factuais mais gravosas e de grande repercussão nacional, como, por exemplo, quando de uma explosão num shopping center com inúmeras vítimas; quando da colisão de dois aviões em pleno ar; quando do descarrilamento de trens; quando do soterramento de veículos e pessoas numa obra do metrô; quando do vazamento de substâncias radioativas, quando, enfim, do deslizamento de encostas, dentre outras.

Inquestionavelmente, a elementar compreensão dessa enorme gama de problemas diuturnos, cotidianamente produzidos pela atividade humana em sociedade, bem demonstra, às claras, a importância do tema da responsabilidade civil no cenário jurídico, o que bem corrobora o vaticínio de José Aguiar Dias[6], ou seja, que “toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade”.

Re vera, se o ato de viver é um risco em si mesmo, e se viver é arriscar-se, mormente numa sociedade pós-industrial como a nossa, impõe-se a conclusão que o tema da responsabilidade civil é de uma importância capital e cada vez maior, ao ponto mesmo de as ações indenizatórias em geral já representarem em torno de 50%(cinqüenta por cento) dos recursos que tramitam nos Tribunais.

A idéia de responsabilidade civil não é nova à ciência jurídica.

A noção da reparação do dano sempre perpassou a atividade humana desde as mais priscas eras do Direito, em que vigia a concepção da vingança privada na Lei do Talião(dente por dente, olho por olho), à sociedade hodierna(industrial ou pós-industrial), agora já sob a égide da responsabilidade civil objetiva, centrada nas teorias do risco.

A correta percepção de que todo o dano deve ser reparado e que a vítima deve ser ressarcida faz elidir a popularesca e ignara conclusão que o caso ou dano deu-se por mera fatalidade, por acidente fatídico ou por um ato-falho, haja vista que tais conclusões subjetivas/empíricas, de índole moral e até espiritual, de modo algum se comprazem com o Direito Moderno.

Nesse cotejo, só há uma correta conclusão: se houve dano tem que haver reparação, sendo certo que não há ressarcimento/reparação sem dano, pouco importando seja este material, moral ou estético.

No mundo atual, é notório que a vontade privada e individualizada de há muito vem perdendo sua razão de ser, até porque as relações civilísticas contemporâneas se dão num impressionante patamar de massificação, mediante contratação despersonalizada e globalizada. Em doutrina, por exemplo, diz-se que a tendência é pela objetivação da responsabilidade civil, com a subseqüente socialização e coletivização dos riscos, além da imperiosa ampliação dos danos suscetíveis de reparação, pois que, em última instância, a vítima deve ser o enfoque central, a ser ressarcida segundo os postulados de uma reparação coletiva e não mais individual.

Efetivamente, as novas tendências da responsabilidade civil, agora na passagem do Estado Social para o chamado Estado Pós-moderno, buscam a preservação de valores ou escolhas axiologias consubstanciadas na dignidade da pessoa humana, no solidarismo, não apenas em prol da recomposição do patrimônio da vítima, mas também em prol da preservação de sua existência digna, conforme assim bem elucida Claudio Luiz Bueno de Godoy[7], verbis: “Desenvolve-se um modelo objetivo, em que a responsabilidade passa a estar fundada em critérios diversos da culpa, assim o risco, não raro coletivizado, vale dizer, diluído na sociedade, dessarte a ensejar até uma responsabilidade socializada, além de voltada à preservação da existência digna da vítima, em que a finalidade fundamental é a valorização da dignidade da pessoa humana”.


4.CONCEITOS DE OBRIGAÇÃO E RESPONSABILIDADE

Mutatis mutandis, os manuais de graduação jurídica ensinam que as fontes das obrigações são: os contratos, as declarações unilaterais de vontade e os atos ilícitos, e, dessas fontes, os contratos são a fonte mais abundante, a mais copiosa.

Elucido que os contratos nada mais são dos que as obrigações, e que os atos ilícitos nada mais são do que o tema ora tratado nesse estudo, isto é, a responsabilidade civil.

Assim visto, para fins de manter o viés didático, passo a alinhavar os conceitos de ambos, apresentando quatro definições, sendo duas de autoria de civilistas clássicos e duas de civilistas contemporâneos, a saber:

I - Sobre o conceito de Obrigação

Clóvis Bevilaqua[8] - “Obrigação é a relação transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa economicamente apreciável, em proveito de alguém, que por ato nosso ou de alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude de lei, adquiriu o direito de exigir de nós essa ação ou omissão.”

Orlando Gomes[9] – “Obrigação é um vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa fica adstrita a satisfazer uma prestação em proveito de outra.”

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[10] – “Conjunto de normas e princípios jurídicos reguladores das relações patrimoniais entre um credor (sujeito ativo) e um devedor (sujeito passivo) a quem incumbe o dever de cumprir, espontânea ou coativamente, uma prestação de dar, fazer ou não fazer.”

Carlos Roberto Gonçalves[11] – “Obrigação é o vínculo jurídico que confere ao credor (sujeito ativo) o direito de exigir do devedor (sujeito passivo) o cumprimento de determinada prestação. Corresponde a uma relação de natureza pessoal, de crédito e débito, de caráter transitório (extingue-se pelo cumprimento), cujo objeto consiste numa prestação economicamente aferível.”

II – Sobre o conceito de Responsabilidade Civil

Silvio Rodrigues[12] – “A responsabilidade civil vem definida por Savatier como a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, por fato de pessoas ou coisas que dela dependam.”

Washington de Barros Monteiro[13] – “Conclui-se que a teoria da responsabilidade civil visa ao restabelecimento da ordem ou equilíbrio pessoal e social, por meio da reparação dos danos morais e materiais oriundos da ação lesiva a interesse alheio, único meio de cumprir-se a própria finalidade do direito, que é viabilizar a vida em sociedade, dentro do conhecido ditame de neminem laedere.”

Fernando Noronha[14] – “A responsabilidade civil é sempre uma obrigação de reparar danos: danos causados à pessoa ou ao patrimônio de outrem, ou danos causados a interesses coletivos, ou transindividuais, sejam estes difusos, sejam coletivos stricto sensu.”

Maria Helena Diniz[15] – “A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal.”


5. DISTINÇÃO ENTRE OBRIGAÇÃO E RESPONSABILIDADE

Modernamente, e com bastante percuciência, a doutrina distingue os conceitos de obrigação e responsabilidade, haja vista que até determinada quadra histórica as definições se confundiam, ou melhor, eram tidas como sinônimas.

Todavia, não o são.

Com efeito, a partir mesmo das noções de Responsabilidade Civil Extracontratual ou Aquilina e Responsabilidade Civil Contratual – resulta bem sabido que a todos, indistintamente, é imposto um dever geral de não lesar, de não prejudicar a ninguém, bem expresso no brocardo neminem laedere (a ninguém lesar), brocardo esse ínsito à responsabilidade civil extracontratual. A outro giro, à parte contratante é imposto o dever de cumprir a obrigação assumida no contrato e, caso não a cumpra, viola igualmente um dever jurídico, ensejando agora a responsabilidade civil contratual.

Enfim, obrigação é um dever jurídico originário, quer seja na esfera da responsabilidade civil extracontratual, quer seja na contratual, de tal sorte que se a parte não viola esse dever, isto é, não lesa a ninguém e não descumpre a regra do contrato, seguramente não há que se falar em responsabilidade porque ela (a parte) cumpriu a obrigação espontaneamente.

Contudo, o problema está quando a parte descumpre, não cumpre espontaneamente a obrigação (o dever jurídico originário), pois daí surge a responsabilidade, que é um dever jurídico sucessivo, que significa o dever de reparar o ilícito praticado, o dano decorrente da violação do dever jurídico originário (a obrigação).

Assim, nem todo dever jurídico originário gera responsabilidade, que é um dever jurídico sucessivo; para tanto, faz-se necessário o descumprimento voluntário, a partir do qual o credor se valerá do Poder Judiciário para buscar no patrimônio do devedor o quantum necessário à composição do dano decorrente, ex vi art. 391, CC c/c art. 591, CPC.

E para melhor aclarar tal distinção, trago à baila a lição de Alois Brinz, apud Sergio Cavalieri Filho[16], verbis: “Devemos a Alois Brinz essa importante distinção entre obrigação e responsabilidade, o primeiro a visualizar dois momentos na relação obrigacional: o do débito (shuld), consistente na obrigação de realizar prestação e dependente de ação ou omissão do devedor; e o da responsabilidade (haftung), na qual se faculta ao credor atacar e executar o patrimônio do devedor a fim de obter a correspondente indenização pelos prejuízos causados em virtude do descumprimento da obrigação originária (apud Arnold Wald, Direitos das Obrigações, 15ª ed., Malheiros Editores, 2001, p. 35.).”

Assim, se o devedor não cumpre o débito (shuld) é que nasce a responsabilidade (haftung), valendo-se frisar que o Código Civil de 2002 faz bem essa distinção, aplicável tanto à responsabilidade contratual como à extracontratual, no seu artigo 389, verbis:

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos,....

Nesse cotejo, em conclusão, transcrevo a lição do mestre Sergio Cavalieri Filho[17], de  clareza solar: “Obrigação é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, conseqüente à violação do primeiro. Se alguém se compromete a prestar serviços profissionais a outrem, assume uma obrigação, um dever jurídico originário. Se não cumpre a obrigação (deixar de prestar os serviços), violará o dever jurídico originário, surgindo daí a responsabilidade, o dever de compor o prejuízo causado pelo não cumprimento da obrigação. Em síntese, em toda obrigação há um dever jurídico originário, enquanto que na responsabilidade há um dever jurídico sucessivo. Daí a feliz imagem de Larenz ao dizer que “a responsabilidade é a sombra da obrigação”. Assim, como não há sombra sem corpo físico, também não há responsabilidade sem a correspondente obrigação.”

Em resumo, pois, a responsabilidade é um dever jurídico sucessivo que nasce para reparar ou ressarcir um ato ilícito praticado, um dano decorrente do descumprimento de uma obrigação, de um dever jurídico originário.

Sobre o autor
João Hora Neto

juiz de Direito no Estado de Sergipe, professor de Direito Civil da Universidade Federal de Sergipe (UFS), mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista em Novo Direito Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HORA NETO, João. O crime de saidinha de banco e o fortuito interno. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3361, 13 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22608. Acesso em: 21 nov. 2024.

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