1.Introdução
A origem da palavra responsabilidade cinge-se à ideia de uma obrigação, um encargo ou contraprestação. Nos dizeres de José Aguiar Dias: “responsável, responsabilidade, assim como, enfim, todos os vocábulos cognatos, esprimem a idéia de equivalência, de contraprestação, de correspondência”[1](grifos no original).
No entanto, juridicamente, seu sentido é um pouco diverso, na medida em que representa um dever jurídico derivado, secundário ou sucessivo advindo da violação de um dever primário, originário ou simplesmente, de uma obrigação.
Por isso, como assevera Sergio Cavalieri Filho, “não há responsabilidade sem a correspondente obrigação” e, portanto, “ninguém poderá ser responsabilizado por nada sem ter violado um dever jurídico preexistente[2]”.
Caio Mário, estudando o tema da responsabilidade civil, e fazendo um breve panorama histórico a respeito da delimitação da convenção (declaração de vontade das partes) como fonte de direito, deixa evidenciado que “todo indivíduo deve observar a norma preestabelecida, seja ela emanada de um órgão estatal, seja emitida por via de declaração individual de vontade”[3].
Aquela distinção entre obrigação – dever jurídico primário – e responsabilidade – dever jurídico sucessivo – encontra-se claramente explicitada no artigo 389 do Código Civil[4].
Especificamente no campo da responsabilidade civil subjetiva, o que importa levar-se em consideração para a análise do dever de indenizar é a conduta do agente, sendo certo que, neste aspecto, nosso direito pátrio não acolhe apenas a responsabilidade direta do agente (decorrente de ato antijurídico por ele praticado), mas, também, sua responsabilidade indireta, gerada por um ato ou fato de terceiro àquele ligado, como, por exemplo, dos tutores pelos tutelados, ou mesmo gerada pelo fato ou guarda de animais.
Dentro da Responsabilidade Civil encontramos, basicamente, duas grandes linhas que dividem o estudo dessa temática em Responsabilidade Civil Contratual e Responsabilidade Civil Extracontratual.
Ontologicamente, ambas se fundam no dever de indenizar (já dito como secundário) que decorre da transgressão de um dever de conduta. Enquanto na responsabilidade contratual há a violação de um dever positivo (o de adimplir com as obrigações pactuadas), na extracontratual viola-se um dever negativo (abstenção na prática de atos que gerem danos a terceiros)[5].
Pode-se, então, dizer que a culpa, em sentido amplo, analisada de maneira unitária, é o “fundamento genérico da responsabilidade”[6]. Esta se denominará contratual quando o agente tiver violado um dever ao qual se obrigou contratualmente, e, extracontratual, quando o dever violado representar um dever geral de conduta (culpa aquiliana)[7].
Nessa mesma linha de raciocínio vai o pensamento de Caio Mário quando afirma que “a culpa tanto pode configurar-se como infração ao comando legal, quanto ao arrepio da declaração de vontade individual”[8] e, por esse motivo, admite o princípio da unicidade da culpa, pois em ambas está presente o comportamento contravencional do indivíduo, quer ao afrontar o disposto na norma jurídica, quer o determinado ou pactuado mediante convenção firmada com outra parte.
O mesmo autor entende que a tese da unicidade da culpa também foi acolhida, pelo Código Civil de 1916 (artigo 159), e reproduzida no Código Civil de 2002 (artigo 186), na medida em que define expessamente o que se entende por culpa aquiliana, sem possuir, no entanto, um artigo expresso para a culpa contratual. Esse posicionamento reflete o simples fato de que nas violações contratuais o violador irá responder civilmente pelos prejuízos causados, de acordo com o convencionado[9], mas sempre com base no princípio maior de que não deve prejudicar terceiros.
Mister ressaltar-se, contudo, que muitas vezes a culpa não é a fonte da responsabilidade no campo extracontratual, mas sim o risco (responsabilidade objetiva[10]), o que demonstra que não se pode elevar a culpa a elemento unificador da responsabilidade civil, como pondera Sergio Cavalieri.
De qualquer maneira, resta certo que, sendo uma relação jurídica obrigacional preexistente a fonte do dever jurídico violado, fala-se em responsabilidade civil contratual, visto que se originou de um ilícito contratual ou relativo. A culpa contratual, portanto, ocupa terreno mais delimitado do que a culpa extracontratual.
Como bem doutrina aquele mesmo autor:
Na responsabilidade contratual, portanto, a vítima e o autor do dano já se aproximaram e se vincularam juridicamente antes mesmo da sua ocorrência, sendo, ainda, certo que, sem essa vinculação, o prejuízo não se teria verificado[11].
Fazendo um retrospecto sobre o que acima foi dito em relação ao dever jurídico derivado e o dever jurídico originário, no campo da responsabilidade contratual essa distinção é bem nítida, vez que o contrato é fonte de obrigações (dos deveres primários) e, uma vez descumprido, será fonte do dever secundário de reparar os danos advindos da inexecução contratual. Há, portanto, a constituição de uma nova obrigação que se substitui à obrigação anterior assumida quando da formalização do contrato[12].
Contrariamente, caso o referido dever tenha como fonte ou causa geradora uma obrigação decorrente de uma imposição legal (lei ou ordem jurídica), posto que não há entre lesante e lesado uma relação jurídica obrigacional preexistente, estaremos diante de uma responsabilidade extracontratual (ilícito absoluto), onde o próprio fato danoso (ou ato ilícito) é que cria aquele liame entre as partes, obrigando o causador do dano a indenizar a vítima[13].
Uma outra diferença notada entre a responsabilidade contratual e a extracontratual refere-se ao ônus da prova[14] relativamente à culpa[15], nas situações em que esta é a fonte da responsabilidade em ambos os casos.
Nos contratos em que a obrigação assumida foi a de resultado, não sendo este alcançado, a regra para a responsabilização será a da presunção da culpa do devedor ao qual incumbe a prova de que não agiu culposamente para o inadimplemento da obrigação ou, então, a prova da ocorrência de alguma excludente do nexo causal, posto que ao credor cabe a mera demonstração de que a obrigação não foi cumprida. Opera-se o que se convencionou chamar de inversão do ônus da prova[16].
Relativamente aos contratos cuja obrigação foi de meio, para a responsabilização do devedor será necessário ao credor provar que aquele agiu com culpa, o que, em linhas gerais, também ocorre nas situações de responsabilidade extracontratual ou aquiliana, salvo os casos de responsabilidade objetiva[17].
Seguindo a mesma sistematização do tema, apresentada no Código de 1916, o Código atual trata das duas espécies de responsabilidade – contratual e extracontratual – em dispositivos distintos: artigos 389 e seguintes para a contratual e artigos 186 a 188 e artigos 927 e seguintes para a extracontratual. É a chamada tese dualista ou clássica.
Ressalte-se, no entanto, que o referido artigo 389, enquanto demonstra a diferença entre a obrigação – originária - e a responsabilidade, obrigação sucessiva, representa o elo que liga as duas modalidades de responsabilidades civis acima apresentadas – contratual e extracontratual -, uma vez que ambas, como dito, têm por fundamento a violação a um dever originário de conduta, gerando o dever secundário da reparação pela indenização.
Desse modo, apesar da divisão entre as duas modalidades de responsabilidades civis, ela não é estanque, como afirma Sergio Cavalieri, “havendo uma simbiose entre esses dois tipos de responsabilidade, uma vez que regras previstas no Código para a responsabilidade contratual (arts. 393, 402, 403[18]) são também aplicadas à responsabilidade extracontratual”[19].
Por isso, há autores que defendem a ideia de que ambas deveriam ter um tratamento legal único (teoria unitária ou monista), tendo a divisão uma finalidade meramente didática, como é o caso do jurista Silvio Venosa[20]:
A conclusão, porém, é ser o conceito de responsabilidade o único no direito privado, qualquer que seja a fonte que a origine. Sempre precisamos examinar o dever de indenizar e a forma de reparação dos danos.
A responsabilidade contratual ocupa um espaço mais restrito em comparação à extracontratual, uma vez que está limitada aos bordos do contrato, ao passo que esta última encontra um campo mais vasto e profundo de aplicação e desenvolvimento, em virtude da própria amplitude do artigo 186 do Código Civil.
É certo que a tentativa de se unificar o conceito de responsabilidade civil, criando-se uma teoria unitária, apresenta-se como uma tentadora saída fácil e segura para findar as disputas teóricas a respeito da estruturação de um conceito e de um conteúdo para as duas modalidades de responsabilidade civil acima apresentadas.
No entanto, a dinamicidade do tema, haja vista a evolução constante da sociedade, torna árdua a tarefa da unicidade, o que permite afirmar que a divisão feita entre responsabilidade contratual e extracontratual é mais do que prática e didática: é essencial, pois capacita o intérprete a encontrar as respostas adequadas aos casos postos sob sua análise, de modo a restabelecer o equilíbrio abalado por ocasião do dano que também é variável de acordo com as condições sociais da época.
Independentemente dos caracteres peculiares que sejam imprimidos a cada uma dessas responsabilidades – contratual e extracontratual –, o que importa é que ambas estão racionalmente reguladas pelos mesmos princípios, já que, como acima asseverado, a ideia de responsabilidade é una, conforme nos ensina Rui Stoco[21].
Assim, o presente trabalho, em virtude da matéria em que está inserido – Nova Dogmática Contratual -, tratará da responsabilidade contratual em sua linha de desenvolvimento, fazendo breves remissões à responsabilidade extracontratual para, ao final, poder responder à questão formulada no tema: A causalidade do dano (nexo de causalidade) é a mesma na responsabilidade contratual e na extracontratual?
2. responsabilidade pré e pós-contratual
Antes de analisar a responsabilidade contratual propriamente dita, mister um breve apanhado sobre as ditas responsabilidade pré e pós-contratual que acompanham essas modalidades de negociação, visto que “o contrato deve ser analisado de maneira dinâmica, como um todo único, formado por fases, que lhe atribuem o caráter de um processo, um conjunto interdependente de atividades visando um fim único”(sic), conforme resume Enéas Costa Garcia[22].
Assim, pode-se, objetivamente, encontrar três fases distintas pelas quais as partes passam para chegar à concretização do contrato: a fase preparatória, que engloba tanto a realização de projetos, avaliações, ponderações, quanto a troca de propostas e contra-propostas; a contratual propriamente dita, onde há a concretização de todas as obrigações e deveres pactuados, gerando os efeitos contratuais desejados; e a fase pós-contratual, caracterizada basicamente pela existência de deveres acessórios que subsistem após a conclusão do contrato, tais como os de cooperação, lealdade, sigilo de informações, respeito pela imagem etc.
2.1. Responsabilidade pré-contratual
Há uma fase que antecede a formalização do instrumento contratual usualmente denominada de pré-contratual, representada pela apresentação de propostas e contrapropostas que, em determinada medida, “podem gerar certa vinculação”, nas palavras de Sergio Cavalieri[23], posto que criam em um dos contraentes uma “expectativa legítima” na concretização do negócio entabulado levando-o a gastos iniciais com, por exemplo, projetos, orçamentos etc.
Não há que se falar na existência de nenhum contrato, mas, tão somente, de meros contatos que podem, dependendo do grau das negociações, gerar para um dos contratantes confiabilidade de que o negócio jurídico se formalizará ao final (desembocando na assinatura de um instrumento contratual), de modo a que tal contratante acaba por se embrenhar em despesas iniciais que, certamente, não realizaria caso soubesse ou desconfiasse que o contrato não viria a se materializar.
Assim, caso a expectativa acima delineada venha a se frustrar, a parte lesada tem direito a pleitear a indenização pelos prejuízos sofridos (gastos efetivados, por exemplo) em virtude do rompimento da confiança que criou nas negociações prévias entabuladas, bem como do “descumprimento dos deveres de lealdade, de transparência, de informação, de cooperação”[24] que são inerentes a quaisquer negociações realizadas no meio social.
Citados deveres podem ser caracterizados como “obrigações acessórias” decorrentes da implementação do princípio da boa-fé objetiva, atualmente positivado no Código Civil de 2002 (artigo 422[25]) e que se estabelecem independentemente de convenção dos contratantes. Referido princípio exige que as partes adotem “uma conduta correta, sob a ótica mediana do meio social”, do ponto de vista objetivo (padrões de conduta)[26], como assevera Humberto Theodoro Júnior[27].
Não obstante não estar expresso, no artigo 422 do Código Civil, que os princípios da boa-fé objetiva e da probidade se aplicam em todas as fases do contrato, essa aplicação é obrigatória para se evitar que as expectativas de uma das partes sejam massacradas pela não conclusão do contrato em razão de mero capricho da outra parte. Na fase pré-contratual, o agir de maneira sincera e honesta é um uso que se consagrou na prática negocial e que agora merece tratamento legal adequado[28].
Mas em que medida se opera a responsabilidade pré-contratual? Quais as possibilidades de danos e suas respectivas origens? Este tema é por demais vasto, tanto que já mereceu livros e teses a respeito. Desse modo, por não ser este o objeto principal do presente trabalho, relacionarei dele apenas alguns pontos básicos e que geram maiores debates, de maneira ilustrativa, para que não se deixe passar a oportunidade do tema.
Para tentar delimitar o assunto, Enéas Costa Garcia divide o período pré-contratual em quatro momentos: a) ideação, b) negociações preliminares, c) proposta e d) aceitação[29].
A ideação carecteriza-se por seu aspecto psicológico, onde há um desenvolvimento mental da ideia de formalização futura do contrato. Esse processo volitivo interno não integra, como elemento, o negócio jurídico, mas será absorvido pela declaração que vier a ser proferida pela parte contratante[30].
Enéas Costa entende que “é difícil a ocorrência de danos nessa fase, pois ainda não houve declaração do intuito negocial e, portanto, não surgiu aquela justificada confiança nas tratativas, fundamento do dever de indenizar”[31].
O que se pode asseverar é que nessa fase, entendida como um nível inicial de negociação entre as partes, qualquer ruptura não trará grandes consequências, predominando o princípio da liberdade de contratar. Logicamente, deve-se pautar pela análise do tênue limite entre pontuações em um nível psicológico dos contratantes e a sua externalização em termos de manifestações palpáveis de uma negociação preliminar (troca de e-mails, telefonemas e conversações testemunhadas) que ultrapassem a mera consciência de uma das partes.
Uma segunda etapa, denominada de negociações preliminares[32], pode ser apreendida como uma fase mais prolongada de tratativas, onde já se externalizam as vontades das partes, delimitada pela “prática de qualquer comportamento indicativo do interesse em celebrar o contrato”, como ressalva Enéas Costa[33]. Assim, havendo despesas efetivadas por uma das partes e em não se efetivando o contrato, pode-se haver o pleito ressarcitório com base no dito interesse negativo[34], ou seja, o que foi gasto e que o teria sido caso não houvesse o rompimento das tratativas. É a expectativa que gera a confiabilidade de uma parte para com a outra. Trata-se, na verdade, de responsabilidade extracontratual, mas lastreada em princípio que rege a vida dos contratos, na medida em que se trata de etapa anterior a este instituto.
Na terceira fase encontramos a proposta, tida como um negócio jurídico unilateral que, em princípio, obriga o policitante. No entanto, o Código Civil de 2002, em seus artigos 427 e 428, excepcionou esse princípio, retirando sua força obrigatória. Assim, descumprida a proposta, haverá a responsabilização da parte que assim agiu e que, de acordo com o momento e hipóteses em que aquela atitude ocorrer, configurará ou não a responsabilidade contratual.
Nesse sentido, interessante apresentar-se a divisão feita por Enéas Costa, que se mostra didática para elucidar qual a responsabilidade que advirá de acordo com o momento em que a proposta for rompida.
Em havendo a retratação após a aceitação, como esta determina a formação do contrato, o descumprimento da oferta implica em inadimplemento que gerará à parte lesante a obrigação secundária de indenizar, baseada na responsabilidade contratual[35].
No caso de contratos solenes, ocorrendo a revogação da proposta após a aceitação, mas antes do cumprimento do requisito formal, pode-se afirmar que o contrato ainda não existe, pois depende da forma especial, apesar da proposta já ter efeito vinculante. Não existe disposição no Código Civil a respeito[36], permitindo-se entender que o lesado poderá pleitear em juízo “os efeitos do contrato indevidamente recusado” (interesse positivo)[37], bem como possível indenização.
Nos contratos reais, onde o negócio se conclui apenas com a entrega do bem, a mera aceitação não forma o contrato, o que permite afirmar que é possível a retratação antes daquela entrega.
Por fim, no que se refere à aceitação, em princípio “o oblato é livre para recusar a oferta e, até mesmo, formular contraproposta”[38], sendo que com a aceitação o oblato se vincula. Neste aspecto a discussão no que concerne à formação do contrato diz respeito a qual teoria foi usada como solução pelo Código Civil.
Sem adentrar no estudo das distinções entre as teorias da declaração, da expedição e da recepção, importante esclarecer que o Código Civil de 2002 acolheu soluções calcadas na teoria da declaração, mescladas com as conferidas pela da recepção.
Assim, em princípio, o contrato se considera formado com a expedição da resposta, contudo, se houve comprometimento do proponente em por ela esperar, somente com o recebimento da resposta se aperfeiçoará o contrato (teoria da recepção). O mesmo ocorre se foi estabelecido um prazo para a aceitação, na medida em que o contrato será considerado formado somente quando a resposta chegar ao destinatário antes de findo aquele lapso temporal.
Nesse sentido, para se identificar o momento da formação do contrato e, portanto, se houve ou não a responsabilidade contratual, mister que se analise também a óptica da teoria adotada para o caso concreto.
Independentemente do momento em que se formou o contrato para se concluir pela responsabilidade contratual ou aquiliana, pode-se entender de maneira suscinta, ante o resumidamente apontado, que há na fase pré-contratual um dever das partes de se comportarem de maneira proba e leal uma para com a outra, independentemente de estar ou não devidamente formalizado o contrato. Há intenções e confiança trocadas que não permitem que se deixe ao mero terreno da demonstração da culpa aquiliana (reprovabilidade da conduta) a única saída para responsabilizar a parte lesante.
Por esse motivo, o princípio da boa-fé objetiva deve se estender sobre essa fase pré-contratual, de maneira a que se preserve a segurança e a razoabilidade que se esperam nas negociações, ainda que pré-contratuais, reduzindo-se o grau de discricionariedade na atuação privada mediante a observância e aplicação de um conjunto de deveres acessórios.
Em suma, entendo que a responsabilidade, nesta fase, dependendo da época em que a ruptura das negociações ocorrer, irá permitir a indenização dos interesses negativo e/ou positivo[39], sendo que, em qualquer das hipóteses anteriormente levantadas, tendo se formalizado ou não o contrato, o intérprete, no aspecto da responsabilidade, poderá se valer da ideia de reparabilidade calcada na boa-fé objetiva.
Dessa forma, para a caracterização da responsabilidade pré-contratual bastará a ocorrência de um comportamento reprovável, culposo, contrário à boa-fé objetiva, se tornando, nessa medida, modalidade de responsabilidade extracontratual (aquiliana), sem se partir para a análise da formalização do contrato por uma das teorias anteriormente apontadas, o que, no meu ponto de vista, dificulta o trabalho do intérprete.
2.2. Responsabilidade pós-contratual
Há deveres acessórios que podem subsistir para além do cumprimento das prestações, para além de findo o contrato. Fala-se em pós-eficácia ou eficácia ulterior dos contratos, conforme Enéas Costa[40].
Tais deveres decorrem da aplicação do princípio da boa-fé objetiva que, como visto, cria deveres acessórios de conduta que ultrapassam o meramente convencionado pelas partes, de modo expresso, e se protaem no tempo, “subsistindo mesmo depois de finda a relação contratual pelo distrato ou adimplemento”[41].
Menezes Cordeiro diferencia quatro situações de pós-eficácia. A primeira seria a pós-eficácia aparente, que, na verdade, decorre de disposição legal (“consagração legal”). É o próprio ordenamento jurídico que comina efeitos posteriores à extinção da relação obrigacional que estão a esta estritamente relacionados. Cite-se o exemplo dos herdeiros do mandatário que, na pendência de negócios resultantes do contrato de mandato, deverão comunicar o óbito ao mandante, tomando as medidas urgentes, a bem do citado negócio (artigo 690 do Código Civil Brasileiro de 2002).
A segunda espécie seria a pós-eficácia virtual decorrente de uma relação negocial complexa que já traz em seu bojo a necessidade de observância, pelos contratantes, de deveres de conduta após a extinção das prestações principais. Menezes Cordeiro exemplifica com os deveres dos comodatário, depositário e locatário de restituírem o bem objeto de cada um desses contratos. São deveres cuja fonte não é a extinção da prestação, mas a própria fonte das obrigações complexas, no caso, o contrato, já inseridos neste como prestações secundárias. A eficácia de tais deveres fica interrompida durante a execução contratual e, com o findar desta, retomam sua vigência, produzindo os efeitos já determinados.
A terceira hipótese é a da pós-eficácia continuada que se verifica também em uma relação negocial complexa só que, diferentemente da pós-eficácia virtual, os deveres ou prestações acessórios já se manifestariam durante a execução contratual, subsistindo após a extinção do dever de prestar principal. Creio que um exemplo seja os dos contratos com obrigações continuadas (ou de longa duração) em que as relações das partes desenvolvem-se por um período mais ou menos longo, como nos contratos de seguro, de mútuo etc.
Por fim, a verdadeira pós-eficácia (em sentido estrito) apenas existe quando entram em cena os deveres de conduta não expressos no contrato e não decorrentes da letra da lei ou da natureza do contrato, mas que devem ser observados em decorrência do princípio da boa-fé objetiva (deveres de lealdade, proteção, informação, por exemplo). São deveres que não se encontram sob o signo da discricionariedade das partes[42] e não se esgotam “na literalidade das obrigações principais [diria, também, nas secundárias] contratualmente assumidas”[43], conforme conclui Enéas Costa Garcia.
A contextualização da responsabilidade pela violação desses deveres acessórios, entendidos no sentido estrito lançado por Menezes Cordeiro – que me parece ser adequado -, deve ser averiguada sob a óptica da culpabilidade, ou seja, da responsabilidade aquiliana, na medida em que se irão analisar condutas que, ainda que tenham como fonte indireta um contrato, não estão nele contextualizadas, mas guardam relação com um princípio maior que é o de não lesar ninguém.
Assim, estamos no campo da responsabilidade extracontratual onde o lesado deverá provar a existência do comportamento reprovável do lesante, na medida em que contrário à boa-fé objetiva (não-observância dos deveres acessórios).