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A regularização fundiária urbana no Brasil e seus instrumentos de alcance.

Notas introdutórias acerca do direito fundamental à moradia frente às políticas públicas de regularização fundiária

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Agenda 28/09/2012 às 17:24

4 A (IN)SUFICIÊNCIA DOS INSTRUMENTOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA FRENTE AO PROBLEMA SOCIAL DO DIREITO À MORADIA

O direito social à moradia necessita de meios para tornar-se realidade concreta para um universo maior - quiçá - de brasileiros. O presente capítulo abordará o uso dos instrumentos de regularização fundiária urbana no Brasil como forma de correção do problema social do direito à moradia. Serão revistos os conceitos apresentados no primeiro e segundo capítulos, e analisados sob o aspecto da suficiência dos mesmos frente a (in)suficiência de medidas públicas direcionadas ao cidadão.

Primeiramente, serão exploradas as insuficiências encontradas nos instrumentos de regularização fundiária urbana infraconstitucionais. Após esta análise, será abordado o papel do ente municipal como agente promotor da regularização fundiária urbana; e, por fim, será ventilada a suficiência de instrumentos e a (in)suficiência de direcionamento ao cidadão para a concretização do direito fundamental à moradia.

4.1 Apontamentos acerca das insuficiências encontradas nos instrumentos de regularização fundiária urbana infraconstitucionais

Com o passar dos anos tem-se que a população brasileira urbana superou a população rural, de modo que as cidades se vêem obrigadas a enfrentar uma maior demanda por serviços básicos como moradia, saneamento, saúde e educação. Nessa crescente, é inevitável que a população se espalhe de maneira desordenada e acabe por ocupar espaços de maneira irregular, estabelecendo suas moradias em lugares impróprios. Passam assim a permanecerem em situação precária de inacessibilidade e insegurança.

A falta de preocupação por parte do legislador na criação de mecanismos para a contenção, bem como para a viabilização de um desenvolvimento sustentável nas regiões urbanas fez com que, a partir da inversão da ocupação territorial, inúmeras fossem as consequências sociais. Dessa forma, houve uma expansão desenfreada de favelas e loteamentos irregulares que passaram a fazer parte da paisagem das cidades brasileiras.

Um importante processo de reforma urbana vem sendo aplicado de forma gradual, mas de maneira consistente, desde a década de 1980 no Brasil. As mudanças tiveram início com a introdução na Constituição Federal de 1988 notadamente no capítulo sobre Política Urbana, que lançou as bases de uma nova ordem jurídico-urbanística. Sendo consolidada com a aprovação, em 10 de julho de 2001, da Lei Federal nº 10.257, Estatuto da Cidade (FERNANDES, 2010, texto digital).

Para o Ministério das Cidades (2010), o Estatuto da Cidade dispõe de vários instrumentos urbanísticos e jurídicos que buscam integrar à cidade legal às áreas consideradas ilegais. Esses instrumentos foram criados para facilitar e agilizar a concretização do direito à moradia, possibilitando a emissão e o registro de legitimação de posse, bem como, por consequência, o reconhecimento de propriedade.

Além disso, o Estatuto da Cidade traz diretrizes fundamentais sobre questões envolvendo política urbana, e, também, o direito à moradia. Segundo Rölnik (2001, p. 5) “o Estatuto da Cidade delega ao Município uma tarefa referente ao conteúdo da função social da propriedade privada, redefinindo uma nova tendência da gestão urbanística”. Sendo assim, o Município ganha destaque ao ser considerado o órgão responsável pela política de desenvolvimento urbano.

A função social da cidade deve inserir o acesso da população à uma infraestrutura mínima. É preciso oferecer saneamento básico, transporte, comunicação e lazer, como forma de concretizar uma moradia digna no espaço urbano. Dessa forma, Séguin (2002, p. 143) esclarece que a função social da cidade há de compreender:

[...] o direito da população a uma moradia digna, transporte coletivo em número suficiente e com periodicidade compatível com a demanda, saneamento básico, água potável, serviço de limpeza urbana, drenagem das vias de circulação, energia elétrica, gás canalizado, abastecimento de alimentos e bens, iluminação pública, saúde pública, educação, cultura, creche, lazer, contenção de encostas, segurança e preservação, proteção e recuperação do patrimônio ambiental e cultural, com especial enfoque para o entorno.

Faz-se necessária uma política governamental com objetivo de criar condições que permitam com que o Poder Público municipal exerça seu dever constitucional, garantindo, dessa forma, o cumprimento integral da função social da cidade e da propriedade urbana. Segundo Araújo (2009) o planejamento urbano tem o papel de ordenador do território municipal.

Entretanto, Villaça (2000) afirma que o planejamento não é a solução dos problemas da realidade urbana brasileira. Para o autor, é cabível que sejam feitos investimentos (infraestrutura e equipamentos sociais) direcionados para as necessidades da população de baixa renda. Esses investimentos, quando planejados, têm o potencial de trazer soluções mais rentáveis e melhor racionalizadas. 

Conforme analisado no segundo capítulo, a regularização fundiária constitui-se em um processo no qual se adotará medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais para combater as irregularidades fundiárias. Tem ela por finalidade integrar assentamentos irregulares ao contexto legal das cidades e, além disso, visa garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente. Acerca do tema, leciona Alfonsin (1997, p. 24):

Regularização fundiária é um processo conduzido em parceria pelo poder Público e população beneficiária, envolvendo as dimensões jurídica, física e social de uma intervenção que prioritariamente objetiva legalizar a permanência de moradores de áreas urbanas ocupadas irregularmente para fins de moradia e acessoriamente promove melhorias no ambiente urbano e na qualidade de vida do assentamento bem como incentiva o pleno exercício da cidadania pela comunidade-sujeito do projeto.

Para tanto, é preciso que a regularização fundiária ocorra de maneira conjunta com as demais políticas públicas. Torna-se necessário um planejamento sistêmico para que não sejam reproduzidas as mesmas desigualdades, e dessa forma seja possível excluir todas as irregularidades pertinentes. É preciso garantir a cidadania e os direitos à população moradora de assentamentos precários.

O proprietário deve dar um destino social ao bem, além daquele que atende o seu próprio interesse, de maneira que consiga harmonizar os interesses individuais com os interesses coletivos. Segundo Cardoso (2010) o princípio da função social da propriedade exige comportamentos positivos do Poder Público, concretizados pela implementação de políticas públicas de inclusão sócio-territorial, e promoção de direitos fundamentais.

O aspecto social do direito à moradia foi elevado à garantia constitucional. Quando ocorrer um confronto entre as normas urbanísticas e o direito social à moradia, o cidadão terá seu direito à moradia valorado, devendo o Poder Público utilizar de instrumentos de regularização fundiária para garantir tal direito. Para Cardoso (2010), a nova ordem legal exige que sejam definidas regras com padrões especiais para que se viabilize a regularização de favelas, garantindo segurança na posse daquela população que tradicionalmente foi alvo de ações violentas de despejo.

Através da evolução legislativa construída nos últimos anos, alterou-se o foco da regularização fundiária no Brasil. Antes, os objetivos eram diferentes dos de hoje, tratava-se as questões urbanísticas sem considerar as questões jurídicas, sociais e ambientais. Nesse sentido, Minnicelli (2008, p. 18):

[...] em seu primórdio a hoje chamada regularização fundiária nada mais era do que erradicar (ou remover) favelas ou conformar a uma determinada área da cidade (a favela) a um mínimo de urbanismo que a cidade já observava. Daí o nome urbanização de favelas. Consistia em dar a estas áreas um aspecto mais regrado, obediente, aformoseado. As demais preocupações (especialmente segurança na posse e a questão ambiental) não estavam presentes.

Atualmente, tem-se que os objetivos para o processo de regularização fundiária devem contemplar o reconhecimento de segurança da posse, e integrar áreas as suas comunidades, bem como as estruturas urbanas e a sociedade. Para Fernandes (2008), somente uma regularização plena, que conjugue as dimensões fundiárias, sociais, urbanas e ambientais, poderia ser sustentável, não gerando futuras distorções nas áreas objeto de intervenção pelo Poder Público.

Os instrumentos de regularização fundiária apontados no segundo capítulo surgem como alternativas de enfrentamento ao alto índice de déficit habitacional brasileiro, e como forma de regularizar as áreas carentes de serviços públicos. O problema do direito social à moradia consiste na inércia apresentada pelo Poder Público no trato dessas questões.

Sobretudo, mesmo que não existissem os instrumentos de regularização, o direito à moradia digna teria a proteção pela Constituição Federal de 1988, conforme tratado no primeiro capítulo, através da valoração da posse autônoma e da função social da propriedade. Segundo Melo (2010, p. 18):

O direito subjetivo à moradia pode ser identificado diretamente do texto constitucional e na legislação que a regulamentou, principalmente no Estatuto da Cidade, mas a Lei 11.977/2009 trouxe elementos importantíssimos para a consagração final de um direito à moradia, principalmente no Capítulo III que trata da Regularização Fundiária como instrumento do direito social à moradia.

Definitivamente, cada vez parecem existir menos argumentos jurídicos para não concordar que o texto constitucional reconheceu expressamente a existência de um direito subjetivo à moradia. A força das palavras utilizadas, por seu próprio significado juntamente com a força da consciência social sobre a necessidade de compromissos exigíveis em torno de certos valores do texto fundamental, são elementos que justificam interpretar que a palavra “direito” equivale, como é habitual na linguagem jurídica, a direito subjetivo, isto é, a uma situação de poder individual suscetível de tutela judicial.

A garantia de uma moradia digna não se restringe à aquisição da propriedade, trata-se do direito de viver com dignidade, em outras palavras, conforme Cardoso (2010), com segurança de posse e qualidade urbanística. A segurança na posse significa ter direitos sobre o imóvel com amparo legal e com o estabelecimento de regras que garantam segurança contra desalojamentos forçados.

Os programas de regularização fundiária são deveres do Estado em relação à promoção do direito à moradia da população de menor renda, conforme o artigo 23, inciso IX[51], da Constituição Federal, a competência é comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Em quase todas as cidades brasileiras ocorrem informalidades urbanas, na maioria das vezes, resultado de um crescimento acelerado das comunidades carentes. O desenvolvimento das áreas irregulares desequilibra as cidades, de modo que as torna mais desiguais e injustas. Os efeitos decorrentes desta desigualdade social tornam mais difíceis os problemas gerados por essa rápida expansão urbana. Dessa forma, para Salles (2007), a regularização fundiária pode ser usada como um componente de auxílio a uma cidade mais organizada e equilibrada.

Por outro lado, não se pode esquecer que alguns efeitos imprevistos, sobretudo, não antecipados e indesejáveis possam ocorrer. Exemplo disso, é a hipótese de os loteamentos aumentarem de preço perante a perspectiva da regularização, fato esse que levaria a expectativas de uso futuro do terreno.

Fernandes (2003) alerta para o aspecto de que alguns programas de regularização foram implementados somente para reconhecimento dos direitos de propriedade de maneira pro forma, ou seja, trazendo ônus aos ocupantes e assim, pouco concorrendo com o dever social. Para o autor, os programas devem prever a integração sócio-espacial dos assentamentos e serem formulados de acordo com políticas socioeconômicas compreensivas, pois caso contrário:

[...] os programas podem ter efeitos indesejados, trazendo novos encargos para os ocupantes, tendo impacto pouco significativo na redução da pobreza urbana e o que é ainda mais importante, reforçando diretamente o conjunto de forças econômicas e políticas que tem tradicionalmente causado a exclusão social e a segregação espacial (FERNANDES, 2003, p. 187).

Sendo assim, é possível verificar que vários são os efeitos negativos possíveis de ocorrer durante a regularização fundiária que não é realizada de forma plena e sustentável. Nos projetos em que a regularização é desempenhada de modo a não avaliar as possibilidades de ocorrência desses efeitos, pode acarretar no aumento da insegurança na posse pelas dívidas assumidas, maior dependência do Poder Público, e aumento da violência pelos conflitos de vizinhança.

No presente trabalho, priorizou-se o estudo dos três ordenamentos jurídicos, quais sejam, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), a Lei nº 11.977/09 e o Projeto More Legal IV. Verificam-se alguns pontos fracos e dificultadores em cada ordenamento, porém tais pontos não servem de justificativa para a não-aplicação dos mesmos.

O Estatuto da Cidade surgiu da necessidade criada pelo artigo 182, da Constituição Federal, no tocante à Política Urbana. No capítulo III do Estatuto foi criado o Plano Diretor, representando um avanço na gestão das cidades. A crítica em relação ao Plano Diretor consiste na obrigatoriedade de implementação somente aos casos previstos no artigo 41[52] do Estatuto. Critica-se a necessidade do Plano Diretor à todas as cidades do país, independentemente do critério estabelecido no artigo 41, de forma a padronizar os procedimentos de regularização fundiária.

O Plano Diretor surge como uma lei de planejamento urbanístico em nível municipal. Para a elaboração podem ocorrer audiências públicas e debates entre a população e organizações civis, de forma a exporem seus interesses urbanísticos perante o Poder Público municipal, e assim participarem da política urbana local. Segundo Cardoso (2010, p. 156):

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Parece que a Constituição Federal, ao definir no art. 182 que cabe ao Município no âmbito do Plano Diretor o regime jurídico da propriedade urbana, permitiu que uma lei municipal oriente a gestão dos bens de domínio estadual e federal, em consonância com o ordenamento territorial e definição de usos compatíveis com a função social da propriedade da cidade. Ou seja, toda propriedade, independente de sua titularidade pública ou privada, deve ser exercida de acordo com a função social da propriedade e da cidade expressa no Plano Diretor Municipal, eleito pela Constituição como o principal instrumento da política urbana.

O Plano Diretor preverá instrumentos cabíveis aos imóveis que não possuem utilização compatível com a função social da propriedade. O instrumento da desapropriação com pagamento mediante título da dívida pública, prevista no artigo 8º, do Estatuto da Cidade, é um exemplo. Consiste em um procedimento moroso, sobretudo pelo fato de ser competência do Senado Federal a prévia aprovação dos títulos. Esses títulos serão resgatados no prazo de até dez anos, um excesso de prazo ao antigo proprietário.

No tocante ao valor da indenização do imóvel, a lei prevê o valor real como sendo a base de cálculo para lançamento do IPTU, desprezando o valor de mercado do imóvel. Dessa forma, existe uma expressiva desvalorização do imóvel, o que causará diversas demandas judiciais, segundo Pereira (2003, p. 124-125):

Evidente que servirá um prato cheio ao Poder Judiciário para definir o quanto é este valor. Num primeiro momento, nos deparamos com o valor de base de cálculo para lançamento do IPTU; num segundo momento, deste valor será descontado o valor das obras realizadas pelo Poder Público e que beneficiaram o imóvel expropriado, a partir da notificação para parcelar ou edificar.

Despreza-se a contribuição de melhoria, para atribuir-se um valor unilateralmente, sem qualquer base de cálculo, para obter-se a redução do valor real do imóvel. É uma violência ao direito de propriedade e ao preceito constitucional da desapropriação, que, estatui que não poderá haver desapropriação sem a justa e prévia indenização em dinheiro. Art. 5º, inciso XXIV da CF.

Nesse sentido, a preocupação do autor da presente monografia, está na aplicação plena dos instrumentos de regularização fundiária, sem a necessidade de posteriores discussões no Poder Judiciário. Na Lei todos os instrumentos são perfeitos, porém, os mesmos precisam sair e se moldarem à realidade brasileira.  Muitos dos instrumentos disponíveis ao Poder Público servem somente de intimidação ao proprietário que não cumpre a função social, sem resolver o problema social.

A Lei nº 11.977/09, tratada na sequência, consiste na típica demonstração da criação de políticas públicas realizadas pelo Poder Executivo. Inicialmente, tal programa estava embasado pela Medida Provisória nº 459/09, que submetido à aprovação pelo Legislativo Federal converteu-se em Lei.  É atualmente, a melhor alternativa de garantir o direito à moradia ao cidadão brasileiro. Contempla instrumentos de regularização fundiária juntamente com medidas econômicas para fomentar o acesso aos financiamentos imobiliários.

Possibilita, assim, a construção de residências em elevado número, vindo ao encontro do combate ao déficit habitacional. O problema da norma, configura-se na falta de estrutura por parte dos agentes burocráticos envolvidos na operação de financiamento. Nesse sentido, somente a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil estão autorizados a realizarem os contratos bancários para alienação dos imóveis, objetos do Programa Minha Casa, Minha Vida. Tal situação restringe o direito de escolha dos cidadãos e causa demora no enquadramento dos mesmos ao PMCMV, pelo fato de estar centralizada a confecção do contrato somente nas duas instituições bancárias.

A Lei nº 11.977/09 falhou, também, ao não impor penalidades aos responsáveis pelos processos de ocupação desordenada ou irregular do solo urbano. São necessárias medidas punitivas ao loteador que vendeu terrenos sem o devido registro do empreendimento, e ao Município que foi omisso durante a ocupação irregular do solo. Dessa forma, combate-se a falta de fiscalização pública nos parcelamentos e a ausência de planejamento urbano.

Por fim, em relação ao Projeto More Legal IV, é flagrante a preocupação do Poder Judiciário no tocante ao tema da regularização fundiária. Tratou-se de normatizar o procedimento extrajudicial e judicial tocantes às regularizações fundiárias, de forma a flexibilizar e padronizar a análise documental pelos notários e registradores.

Segundo entendimento do autor, o ponto negativo desta norma jurídica é a carência de informações ao alcance do cidadão referente aos procedimentos previstos no projeto. Outro fato relevante ao procedimento do Projeto More Legal IV consiste na cobrança de emolumentos pelos notários e registradores, visto que, a previsão legal relativa à gratuidade na elaboração da Escritura Pública e no registro da mesma somente será aplicada às regularizações fundiárias de interesse social. Sendo assim, a camada da população que está no foco do projeto não utiliza do mesmo em razão da falta de conhecimento e falta de recursos.

Feitas as considerações acerca das insuficiências encontradas nos instrumentos de regularização fundiária urbana, passa-se ao próximo ponto do capítulo, em que serão tratados os apontamentos referentes ao papel do ente municipal como agente promotor da regularização fundiária urbana.

4.2 O papel do ente municipal como agente promotor da regularização fundiária urbana

A figura principal na regularização fundiária no Brasil é o Poder Público, englobando os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, conforme o artigo 2º[53] da Constituição Federal. O Poder Executivo atua diretamente nas fases de implantação das políticas públicas de regularização fundiária. O Judiciário e o Legislativo exercem, igualmente, um papel importante para o êxito das ações regularizadoras.

Cita-se como exemplo, no tocante ao Poder Judiciário estadual, a fiscalização dos atos praticados pelos notários e registradores no âmbito extrajudicial, ocorrendo pelo Corregedor-Geral da Justiça. Esses profissionais, que possuem a delegação de um serviço público, notários e registradores, estão diretamente ligados à regularização fundiária, visto que atuam na confecção e registro do título objeto da regularização.

Segundo o artigo 182 da Constituição Federal, a política de desenvolvimento urbano é de responsabilidade do Município, que deve executá-la conforme diretrizes gerais fixadas em lei federal. O Poder Executivo municipal é o órgão público responsável pelo regramento das condições de uso do solo urbano e fiscalização do seu cumprimento[54]. Dessa forma, sugere-se que os Municípios tenham uma Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. A nomenclatura pode alterar, mas a função deve ser assemelhada, garantindo ao Município um setor especializado para tratar do tema.

Os Municípios caracterizam-se cada vez mais pela elevada densidade demográfica, pela concentração de áreas construídas e pela extensiva impermeabilização do solo. A ocupação desordenada do espaço resulta na perda de qualidade de vida urbana, o surgimento de áreas de sub-habitações, poluição das águas e do ar, enchentes, desmoronamentos, violência e epidemias, dentre outros problemas (MARICATO, 2002).

O legislador, de forma coerente, ampliou, na Constituição de 1988, a autonomia dos Municípios para se autorganizarem, elegerem seus representantes, elaborarem suas leis e arrecadarem tributos próprios. Conforme Leme (2010, texto digital) “os Municípios passaram, então, a assumir uma série de competências com relação a diversas políticas públicas”.

Embora as diretrizes da política urbana devam ser fixadas pela União, sua ausência não impede de o Município legislar. Para Leal (1998), só há o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade se houver o direito de todo cidadão ter acesso à moradia, ao transporte público, ao saneamento, à segurança, à saúde e à educação.

No tocante ao poder local dos Municípios, segundo Hermany (2007, p. 263):

São justamente os governos locais os responsáveis pela execução de políticas públicas adequadas para o fortalecimento da qualidade de vida, seja em função da (re)definição de competências constitucionais, seja em virtude da crise de financiamento do Estado Nacional, que o incapacita de atender com efetividade às demandas da população. Tais razões justificam a importância, até paradoxal, do poder local para o desenvolvimento econômico na sociedade globalizada, vinculado ao conceito de qualidade de vida como fator de produtividade e, por conseguinte, de eficiência do sistema produtivo.

Nesse sentido, nota-se a importância do poder local dos Municípios, visto que o Estado não é capaz de atender a todas as demandas habitacionais da população. O Município deve priorizar o progresso e o desenvolvimento urbano na execução de políticas públicas. Embora tenha ocorrida uma descentralização da União, dando maior autonomia ao poder municipal, sob o ponto de vista orçamentário, os pequenos Municípios não são capazes de gerar uma arrecadação tributária suficiente, dependendo dos repasses estaduais e federais.

O avanço da urbanização não constituiria um problema social se não fosse o modo como ele ocorre. É preciso atenção nesse processo, pois a sustentabilidade da área urbana, em sua composição física, relaciona-se com diversas variáveis, dentre as quais se destacam: a forma de ocupação do território; a disponibilidade de insumos para seu funcionamento e a descarga de resíduos. Além disso, exige cuidados com o grau de mobilidade da população no espaço urbano; a oferta e o atendimento às necessidades da população por moradia, equipamentos sociais e serviços e com a qualidade dos espaços públicos. Dessa maneira, as políticas que sustentam o parcelamento, uso e ocupação do solo, assim como as práticas urbanísticas que viabilizam estas ações, têm papel efetivo na meta de conduzir as cidades no percurso do desenvolvimento sustentado (GROSTEIN, 2001).

As normas encontradas no Estatuto da Cidade, por disposição de seu artigo 1º e parágrafo único, são de ordem pública e interesse social. Nesse sentido, consolidam a ideia de que a propriedade deve estar revestida de sua função social, e, dessa forma, vincula a política urbana à necessária garantia dos direitos sociais[55].

Para se garantir a função social da propriedade urbana, deve-se primeiro garantir as funções sociais da cidade[56]. Tem-se que, dentre as diretrizes que compõem as funções sociais da cidade estão a cooperação entre o poder público e a iniciativa privada, a integração das atividades urbanas e rurais em busca do desenvolvimento socioeconômico do Município, e a necessidade de programação de produção de consumo visando à sustentabilidade ambiental e socioeconômica da região.

A partir do poder local, instalado no âmbito municipal, ocorre a democratização da gestão urbana. O Estatuto da Cidade agrega os princípios da política urbana contidos na Constituição, permitindo que as decisões públicas em nível local sejam tomadas em decorrência de uma atuação compartilhada dos cidadãos e dos agentes políticos, responsáveis pela realização das normas e execução das decisões públicas resultantes do processo democrático (HERMANY, 2007).

A competência para a criação do Plano Direitor é um exemplo da autonomia dos Municípios pós-Constiuição de 1988. Tem-se que o referido plano é uma ferramenta da política de desenvolvimento e expansão urbana e, de acordo com a realidade da população de cada município, está relacionado a fatores políticos, econômicos, financeiros, culturais, ambientais e sociais. A Constituição Federal  conferiu ao Plano Diretor a tarefa de definir o conteúdo que atende à função social, indo ao encontro das soluções dos problemas que atingem os moradores das cidades.

Nesse aspecto é cabível a crítica já mencionada, no sentido de que, independentemente do número de habitantes na cidade, a confecção do Plano Diretor deveria ser obrigatória à todas as cidades brasileiras. Segundo Cymbalista (2006, p. 295-296):

Os novos Planos Diretores devem também ser construídos democraticamente, com a participação da população em todas as etapas, desde as primeiras leituras de realidade local até a implementação e revisão periódica. O Plano Diretor é agora o instrumento por excelência da política urbana municipal, sem o qual não se efetivam todos os parâmetros colocados acima: o reconhecimento da cidade real, a intervenção sobre os mercados imobiliários, a função social da propriedade, a gestão democrática da cidade.

O Município, ao possuir um Plano Diretor, demonstra a prática da política urbana municipal. Desse modo, passa a possuir atribuições e uma relevante importância na execução de políticas públicas ambientais e de garantia do direito constitucional à moradia. Considerando-se que uma das causas da precariedade de moradia é a falta de terras acessíveis à população de baixa renda, é preciso que o município tenha uma política habitacional adequada e preventiva, com a finalidade de ampliar o acesso ao solo urbano e permitir construções de moradia dignas.

De acordo com o Ministério das Cidades (2004), a regularização fundiária e as políticas públicas destinadas à sua implementação possuem importância proporcional à presença das habitações informais. Decorrentes de um processo excludente de desenvolvimento urbano baseado na ideia já ultrapassada de propriedade como direito individual ‘absoluto’ e conduzido, inclusive, pelo Estado:

O modelo de desenvolvimento sócio-econômico que comandou a urbanização acelerada no Brasil produziu cidades fortemente marcadas pela presença das chamadas "periferias". Dezenas de milhões de brasileiros não têm tido acesso ao solo urbano e à moradia senão através de processos e mecanismos informais - e frequentemente ilegais –, auto-construindo um habitat precário, vulnerável e inseguro em favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares, loteamentos clandestinos, cortiços, casas de frente e fundo, bem como nas ocupações de áreas públicas, encostas, áreas de preservação, beiras de reservatórios e rios. Todo esse processo foi o resultado de séculos de dominação e apropriação privada das terras/áreas públicas, decorrendo daí um aparato jurídico-institucional, econômico, social e ideológico que definiu a propriedade da terra como um valor fundamental de controle das classes dominantes (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2004, p. 39).

Sendo assim, a regularização fundiária passa a ter um papel social importante, sendo elencada como um instrumento da política urbana. Também na perspectiva humanitária, a regularização fundiária é um importante instrumento de política pública, que deve ser promovida para assegurar o uso e a ocupação do solo adequado às necessidades de moradia digna dos moradores. Tem por finalidade combater a desigualdade social e melhorar as condições de vida da população dos assentamentos precários (SAULE; UZZO; CARDOSO, 2002).

Sobretudo, a aplicação pelo Poder Público municipal dos instrumentos de regularização fundiária constantes da Lei nº 11.977/09 têm vinculação direta ao Plano Diretor. Porém, os Municípios somente poderão usufruir destes instrumentos caso tenham a delimitação do perímetro urbano pelo Plano Diretor ou, esta por lei municipal específica.

Em decorrência da Lei nº 11.977/09, no que tange as regularizações fundiárias, as prefeituras municipais têm por competência:

-Dispor sobre o procedimento de regularização fundiária em seu território, por meio de norma municipal, embora a ausência não impeça a aplicação dos dispositivos da Lei Federal nº 11.977/09;

-Definir os requisitos para a elaboração do projeto de regularização fundiária, no que se refere aos desenhos, memorial descritivos e cronograma físico de obras e serviços nele previstos;

-Autorizar a redução do percentual de áreas destinadas ao uso público e da área mínima dos lotes definidos na legislação de percelamento do solo urbano, nos assentamentos implantados anteriormente à Lei Federal nº 11.977, ou seja, antes de 07 de julho de 2009;

-Analisar e aprovar o projeto de regularização fundiária;

-Promover o licenciamento urbanístico e ambiental de intervenções caracterzadas como regularização fundiária de interesse social, num ato único correspondete à análise e aprovação do projeto de regularização fundiária, desde que o Município possua conselho de meio ambiente e órgão ambiental capacitado; e

-Admitir a regularização fundiária de interesse social em Áreas de Preservação Permanente, respeitados os requisitos da lei (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2010, texto digital).

Nesse sentido, a Lei nº 11.977/09 ampliou o rol de competências dos Municípios no tocante às regularizações fundiárias. Visto que o Poder Público municipal está mais próximo das irregularidades fundiárias quando comparados com a União e com os Estados.

É imprescindível estabelecer políticas de regularização fundiária, como por exemplo, no tocante aos loteamento irregulares, conforme Pasternak (2010, p.137):

O município deve estabelecer uma politica de regularização de loteamentos irregulares, que pode incluir a delimitação das áreas com grande concentração de loteamentos irregulares, ou loteamentos irregulares com elevada densidade populacional, e transformá-los em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), com normas especiais de parcelamento, uso e ocupação do solo e de edificações.

No artigo 182, parágrafo 4º, inciso III, da Constituição Federal[57], cuida-se da desapropriação por descumprimento da função social da propriedade urbana, instituto que foi apresentado no capítulo segundo da monografia. É pertinente informar que, somente o Município pode proceder à essa modalidade de desapropriação, como instrumento de regularização fundiária. Prioriza-se o mesmo, justamente pelo fato de ser o ente público com o contato mais próximo do cidadão.

Um fato negativo na condução dos intrumentos disponíveis ao Poder Público  municipal, consiste no valor direcionado pelo orçamento anual à realização de regularizações fundiárias. Em muitas municipalidades não há recursos suficientes para tais realizações. Diante dessa carência, a União e os Estados devem contribuir de forma decisiva com dotações orçamentárias, cursos e treinamentos de capacitação, realização de algumas atividades em regime de cooperação por meio de convênios, integração de programas locais de regularização fundiária com outros programas federais e/ou estaduais (AVZARADEL, 2012).

É necessário ter a clareza de quais são os objetivos da regularização fundiária, para que os projetos realizados surtam os efeitos positivos almejados. Do mesmo modo, é de suma importância não deixar de reconhecer possíveis efeitos negativos, de forma que as cabíveis medidas sejam adotadas. Tal relevância é fundamental para que a regularização fundiária atinja seus objetivos, garantindo o direito à moradia, auxiliando no crescimento, e desenvolvimento econômico e social.

O cidadão poderá buscar judicialmente, diante da omissão do Poder Público em realizar políticas públicas, o seu direito à moradia digna. Dessa forma, de um lado, estará o Poder Judiciário garantindo a pretensão pelos direitos sociais; e, de outro, a sociedade, contrapondo-se às decisões políticas de poderes legitimados pela democracia representativa, desestabilizando a previsão orçamentária anual destinada ao Executivo, após aprovação do Legislativo (HESS, 2011).

Nesse sentido, democraticamente os agentes políticos do Poder Legislativo e Executivo são escolhidos através do voto do cidadão, tendo legitimidade para elaborarem e executarem as políticas públicas. Os representantes do Poder Judiciário não possuem mandato conferido pelo voto do cidadão, mas diante de suas competências, julgam as omissões e os atos dos demais poderes no tocante a essas políticas. O papel do Judiciário para a concretização das políticas públicas é chamado de ativismo judicial, que segundo Miranda (2011, p. 361):

[...] quanto à conceituação do “ativismo judicial” praticado pelo STF, temos como possível a interferência do Poder Judiciário nos pilares que regem as políticas públicas: ação, coordenação e finalidade, quando houver omissão legislativa que as impossibilite de efetiva realização/execução. O inc. XXXV do art. 5º da CF/1988, disciplina que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Segundo Bucci (2006) a tutela do judiciário nas políticas públicas deve ocorrer na medida em que elas expressem direitos. Excluindo-se as hipóteses de lançamentos de juízos acerca da qualidade ou adequação das mesmas. Dessa forma, é possível afirmar que o Supremo Tribunal Federal é ator interferente em políticas públicas em face de omissões executivas e legislativas, não só porque crises institucionais naqueles poderes o obrigaram atuar, desde que provocado, mas também porque nossa Constituição trata de uma gama de temas, sendo que, na medida em que existem normas jurídicas, pretensões de toda ordem podem ser analisadas sob a ótica destas normas, inclusive as políticas públicas (MIRANDA, 2011).

No procedimento padrão, o Supremo Tribunal Federal sempre que constatar ausência de legislação deve enviar notificação ao Congresso Nacional. Porém, segundo o Ministro Gilmar Mendes[58] (2012) apesar das notificações, não há articulação entre os parlamentares para deliberar nem mesmo sobre o aviso do Poder Judiciário.

Conforme analisado, os Municípios possuem uma extensa lista de competências e atividades pertinentes à regularização fundiária. O Município situa-se como o principal responsável pela questão da regularização fundiária urbana, justamente pelo fato de ser o ente mais próximo dos problemas urbanos deve agir visando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade.

Demonstrada a questão do ente municipal como agente promotor da regularização fundiária urbana, passa-se ao último ponto do terceiro capítulo, no tocante ao estudo da suficiência de instrumentos e a (in)suficiência da concretização do direito fundamental à moradia.

4.3 Da suficiência de instrumentos e a (in)suficiência da concretização do direito fundamental à moradia

O direito à moradia digna é um desafio ao Poder Público, prova disso consiste no fato de tal direito social, assim como os demais, não ser auto-aplicável, necessitando da atuação estatal[59]. A efetividade dos direitos sociais[60] carece de concretização, isso ocorre com boa parte dos direitos de segunda e terceira dimensão, segundo Sarlet (2007, p. 68):

Cremos que o mais importante segue sendo a adoção de uma postura mais ativa e responsável, governantes e governados, no que concerne à afirmação e à efetivação dos direitos fundamentais de todas as dimensões, numa ambiência, necessariamente heterogênea e multicultural, pois apenas assim estar-se-ia dando os passos indispensáveis à afirmação de um direito constitucional genuinamente ‘altruísta’ e ‘fraterno’.

Foi principalmente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e com o Estatuto da Cidade de 2001 que se consolidou uma nova ordem jurídica no Brasil, baseada no princípio da função social da cidade e da propriedade. Vindo na sequência, a Lei 11.977/09 trouxe a previsão de recursos e novos instrumentos de regularização fundiária urbana, em consonância com os mesmos fundamentos e princípios que buscam a fundamentalidade social da propriedade e da posse.

A produção habitacional pelo Poder Público necessita aliar política urbana habitacional e fundiária com programas voltados à regularização fundiária e à ocupação de áreas centrais e vazios urbanos. Segundo Pagani (2009, p. 130-131):

O Estado brasileiro tem legitimidade para legislar a respeito de programas e planos de ação sobre a política habitacional que proporcionem promover a garantia do direito à moradia para os cidadãos brasileiros. Esses programas e planos de ação devem criar mecanismos includentes que facilitem o exercício do Direto à moradia pela população, como exemplo, por meio de financiamentos de habitações de interesse social. Concomitante, também é obrigação do Estado brasileiro promover políticas de regulamentação, fiscalização e intervenção no setor privado imobiliário urbano com o objetivo de que seja atendida a função social da propriedade, a regulamentação do mercado imobiliário e a regulamentação do uso e gestão do solo e do direito de construir.

Nesse sentido, demonstra-se que o Estado deve legislar frente a matéria em questão, de forma a privilegiar programas e planos de ação com o objetivo de atender a função social da propriedade e regulamentar o setor privado imobiliário.

Pretende-se demonstrar que o sistema normativo brasileiro possui uma variedade de normas e princípios acerca da matéria em estudo, porém carece da aplicabilidade destes:

Há o ordenamento urbanístico, o ambiental, o ordenamento relativo à questão patrimonial e à questão registrária, além da questão dos direito do consumidor, dado que se trata de compra e venda de uma mercadoria. As leis não têm diálogo entre si, foram produzidas pelas suas respectivas corporações e não conversam entre si. As ordenações se desdizem e essas incongruências são aproveitadas para obstaculizar todo o processo de regularização (PASTERNAK, 2010, p. 138).

No presente estudo, foram priorizados alguns instrumentos que permitem ampliar o acesso à moradia digna, sobretudo, à terra bem localizada. Porém, partiu-se do ponto-chave de que as cidades devem ter um Plano Diretor. É por meio deste que se apresentam os instrumentos urbanísticos.

A sociedade civil, diante da vasta normatização e frequente omissão do Poder Público no tocante à efetivação dos direitos sociais, como o caso em rogo direto à moradia, socorre-se do Poder Judiciário para ver efetivado seu direito. Para Souza Neto (2002, p. 37):

Uma das questões que preocupam o centro do debate contemporâneo é exatamente a de determinar em que grau de intensidade e de abrangência o Judiciário pode concretizar direitos como o à saúde, à educação, ao trabalho, ao lazer à moradia etc. Uma plêiade de autores e correntes de pensamento se pronunciou sobre o tema, variando as posições desde uma firmação da total possibilidade de concretização jurisdicional desses direitos, sob o argumento de que se se tratam de normas jusfundamentais positivas devem ser concretizadas, nos termos do § 1º do art. 5º da CF/1988, até a negação de que cabe ao Judiciário interferir nesse seara, visto que as questões sociais têm nas políticas públicas o seu meio por excelência de efetivação.

As cidades precisam se preparar para suportar a atual demanda por moradia e infraestrutura. Segundo Alvarenga (2008, p. 63) “a expansão desordenada dos processos informais prejudica o espaço como um todo, ocasionando risco para as pessoas, degradação do meio ambiente e dos recursos naturais”. Faz-se necessária a participação da sociedade, para Hermany (2007, p. 271):

Para isso, é fundamental a ampliação da democracia participativa, não entendida apenas em seu conjunto de procedimentos, mas sim, tendo como pressuposto uma participação discutida a partir das peculiaridades locais e que tenha como princípio informativo essencial a dignidade da pessoa humana como valor substancial a ser concretizado. Não basta, portanto, atribuir-se ênfase à esfera local, sem que esta análise esteja cotejada com o déficit social do paradigma globalizado e da insuficiência dos institutos nacionais, tendo em vista as múltiplas crises do Estado-Nação.

O Brasil passou por um Regime Militar[61] em que era vedada a manifestação de ideias contrárias ao Estado. Após esse momento na história, através da abertura à democracia, possibilitou-se novamente o diálogo entre o Estado e o cidadão. Porém, verifica-se que a sociedade está inerte no tocante à participação.

Um exemplo de participação da sociedade com o Poder Público é na elaboração do Orçamento Participativo, segundo Cymbalista (2006, p. 292) é o “processo no qual a população decide em plenárias como será gasta parte do orçamento municipal para o ano seguinte”. No Orçamento Participativo os cidadãos priorizam a aplicação dos recursos públicos em demandas de maior interesse coletivo, para Alvarenga (2008, p. 73):

A sociedade civil deve exercer a fiscalização rígida quanto às políticas urbanas adotadas pelos municípios. A produção informal das cidades está diretamente relacionada com a política urbana adotada pela administração pública. Infelizmente, o Poder Público tem sido omisso, não realiza campanhas de esclarecimentos sobre os malefícios urbanos e ambientais em razão do uso irregular do solo e não exerce fiscalização adequada no combate à implantação da ocupação desordenada do solo urbano.

O Poder Público e a sociedade civil devem firmar parcerias para divulgação dos [...] institutos da ordem jurídico-urbanístico e combater o avanço da produção informal.

Em Porto Alegre, durante quatro mandatos do Partido dos Trabalhadores teve-se como principal bandeira o Orçamento Participativo. Esta é uma marca da gestão democrática das cidades que ganhou força com o Estatuto da Cidade, segundo Pereira (2003, p. 198):

O legislador quis, ao instituir a Gestão Democrática da Cidade, que o administrador público não apenas convocasse audiências públicas, onde seria sem dúvida alguma manipulada a vontade dos participantes.

Para que as pessoas entendessem o que estava acontecendo, antes da deliberação, o administrador tanto executivo como legislativo, deveria proceder debates, audiências e consultas públicas.

A gestão democrática das cidades é uma forma de garantia da participação efetiva dos cidadãos com os assuntos de interesse urbano. Porém, partindo do pressuposto que a educação do povo brasileiro é baixa, o legislador previu a hipótese de ocorrer primeiramente debates sobre os assuntos que estarão na pauta das deliberações.

Na Constituição Federal, o princípio da função social da propriedade e a inclusão do direito à moradia no rol dos direitos sociais privilegiam o interesse coletivo. Nesse sentido, Alvarenga (2008, p. 65):

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoa humana passa a ser fundamento do Estado brasileiro (art. 1º, III). Com a Emenda 26/2000, a moradia passou a ser direito social assegurado pela Carta Magna (art. 6º). A propriedade imobiliária, outrora individual e absoluta, cede lugar ao interesse social. É a chamada funcionalização da propriedade: garante-se a propriedade, mas esta deve obedecer à sua função social.

O sentido da função social da cidade e da propriedade é o condicionamento do poder a uma finalidade comunitária. Para Leal (1998) não se trata de extinguir a propriedade privada, mas de vinculá-la a interesses outros que não os exclusivos do proprietário.

A função social atingirá a sua finalidade quando, dentre outras coisas, todos os cidadãos tiverem o acesso à moradia. É necessário solucionar o problema do direito à moradia com a efetiva aplicação dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, na Lei 11.977/09, e com os procedimentos do Projeto More Legal IV.

A escolha pelo instrumento correto se dá pela análise da situação apresentada, cabendo ao Poder Público a verificação e o devido enquadramento. Deve-se levar em conta a infraestrutura já implantada no local e o potencial de equipamentos já instalados, como escolas, hospitais, equipamentos de lazer. Segundo Alvarenga (2008, p. 72):

Os procedimentos de regularização devem conciliar medidas corretivas e preventivas. As primeiras buscam urbanizar a gleba, dotando-a de infraestrutura e dos equipamentos necessários, ao passo que as segundas visam a não-ocupação de determinados espaços, como as áreas de risco e de proteção ambiental.

Nesse sentido, é cabível a demarcação das Zonas Especiais de Interesse Social pelo Município. Esse instrumento previsto pelo Estatuto da Cidade permite a delimitação e destinação de determinadas áreas do Município para abrigar moradia popular, com o objetivo de implantar habitação de interesse social. Segundo Paiva (2009) é uma alternativa de assegurar terras bem localizadas e providas de infraestrutura para o uso da população de baixa renda, criando uma reserva de mercado para a habitação social.

Após a criação de ZEIS, definidas no Plano Diretor do Município ou em lei municipal específica, o Poder Público poderá fomentar a construção de moradias para o uso da população de baixa renda através dos recursos previstos via o Programa Minha Casa, Minha Vida (Lei 11.977/09). Dessa forma, alcança-se o direito à moradia ao cidadão carente de recursos.

O direito de preempção, instrumento inaugurado no Estatuto da Cidade, gera ao Município a preferência de compra de um imóvel contra um terceiro. O Plano Diretor delimita regiões onde poderá ser exercido o direito, e a lei municipal específica determinará quais as áreas dentro destas regiões que sofrerão a limitação.

O enquadramento de um imóvel com o direito de preempção trará ao proprietário enorme desvalorização na venda do mesmo. O proprietário da área deverá anexar a proposta de compra da área por um terceiro, as condições de pagamento e o prazo de validade de proposta, segundo Pereira (2003, p. 145-146):

Não é necessário fazer-se um exercício da reação de mercado, para as áreas atingidas pelo direito de preempção. O justo seria a avaliação do imóvel, para fins de desapropriação, ser anterior à declaração de área escolhida pelo direito de preempção. Após serem manchadas com este instituto, não valerão absolutamente nada.

Caso o Município não tenha interesse na compra da área, não será extinto o direito de preempção, pois durante o prazo que foi fixado em lei continuará incidindo o direito do Poder Público municipal sobre aquela área determinada. O prazo de vigência não será superior a cinco anos.

A regularização de assentamentos pelo Projeto More Legal IV carece de informações ao alcance dos cidadãos. Trata-se de um provimento jurídico-administrativo de iniciativa da Corregedoria-Geral da Justiça, órgão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

O Projeto More Legal IV estabelece um conjunto de medidas normativas e extrajudiciais que objetivam a regularização e registro de loteamento, desmembramento, fracionamento ou desdobro de imóveis urbanos ou urbanizados. Em contrapartida a Lei 11.977/09, este projeto não pode ser aplicado para regularização em áreas de preservação permanente e legal, unidades de conservação de proteção integral, terras indígenas.

A aplicação do Projeto More Legal IV visa a diminuir o número de imóveis irregulares, por meio do parcelamento do solo urbano e rural com o registro do loteamento ou desdobramento, que apresentam situações de posses consolidadas e irreversíveis conferindo aos possuidores títulos de propriedade (PAGANI, 2009).

O procedimento extrajudicial previsto no Projeto More Legal IV, sem dúvida, apresenta o menor espaço de tempo para obter a regularização pretendida. Porém, em relação aos valores cobrados, o procedimento é mais custoso, visto que o Oficial de Notas e o Oficial Imobiliário devem cobrar emolumentos relativos ao procedimento encaminhado pelos particulares, sob pena de serem enquadrados em punições pela Corregedoria-Geral da Justiça.

De acordo com Paiva (2011, texto digital) acerca dos documentos a serem apresentados para registro:

[...] é importante que o procedimento extrajudicial para a extremação/extinção de condomínio, com reconhecimento de divisas de imóvel urbano, há que se observar que a documentação, nessa hipótese, para uma perfeita descrição tabular, para que atenda ao princípio da especialidade objetiva, devendo constituir preocupação do Registrador quanto à perfeita descrição do imóvel. Daí a sugestão dada pelo Dr. Mário Pazutti Mezzari, Registrador Imobiliário, sobre os documentos a serem apresentados: a localização do terreno será formalizada em escritura pública notarial a ser assinada pelos proprietários e pelos lindeiros e será apresentada ao Registro de Imóveis acompanhada dos seguintes documentos:

I – planta do imóvel;

II - memorial descritivo, incluindo a descrição das configurações da planta;

III – anotação de responsabilidade técnica (ART) do responsável pelo projeto, devidamente quitada;

IV – certidão narrativa do terreno, fornecida pela Prefeitura Municipal.

O Projeto More Legal IV elenca situações em que são cabíveis as gratuidades[62] nos procedimentos da regularização fundiária com projeto aprovado nos termos da Lei nº 11.977/09. A regularização fundiária requerida por proprietários, na condição de loteadores, não goza de isenções de emolumentos. Nesse caso, não se está tratando do interesse público, mas sim, do interesse particular de cidadãos que possuem o título de propriedade, porém sem a devida regularização do lote individual, descrito dentro de área maior.

Quando existir a situação consolidada definida no artigo 512, parágrafo primeiro[63] da CNNR recomenda-se a regularização pela forma extrajudicial, por ser mais simples. É crucial saber a vontade de quem regulariza, se o interesse é regularizar todo empreendimento ou somente o seu imóvel.

Caso o proprietário decida registrar somente o seu lote, tratando-se de loteamento clandestino a situação consolidada pode ser certificada pelo Município, a quem competiria a aprovação do parcelamento. O Registrador de Imóveis encaminhará à Direção do Foro para decisão, que somente será prolatada após manifestação do órgão do Ministério Público. Após o trânsito em julgado, os autos do processo serão remetidos ao Ofício do Registro de Imóveis para cumprimento das determinações judiciais e arquivamento.

Quando tratar-se da regularização fundiária de um empreendimento, onde o interesse na regularização é de vários proprietários, deve-se enquadrá-la na Lei nº 11.977/09, o que exigirá a participação do Município. Visto que sem ele, não ocorrerá o auto de demarcação.

Caso o Município não venha a agir, aplica-se o Projeto More Legal IV, que exige a intervenção judicial. Neste procedimento, a regularização poderá ser individual ou coletiva, convém levar ao conhecimento do Ministério Público para forçar a regularização pelo empreendedor faltoso e pelo Município.

No registro do parcelamento urbano realizado antes da Lei nº 6.766/70, de 19 de dezembro de 1979, a Lei nº 11.977/09 flexibilizou as exigências perante o cartório de registro de imóveis. Devendo ser instruído por requerimento do interessado dirigido ao cartório de registro de imóveis competente, com a certidão emitida pela prefeitura municipal comprovando que a gleba foi parcelada antes de 19 de dezembro de 1979, e que o parcelamento está implantado e integrado à cidade; plantas e demais documentos necessário ao registro, incluindo aqueles que comprovem que o requerente tem legitimidade para promover a ação (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2010).

Conforme tratado neste capítulo, o ordenamento jurídico brasileiro é capacitado para solucionar as demandas de regularização fundiária existentes. Na opinião do autor, o que existe é a falta de operacionalização dos instrumentos disponíveis ao Poder Público, no sentido de pôr em prática o que está disponível.

Sobre o autor
Guilherme Eidelwein Wolf

Escriturário no Banco do Estado do Rio Grande do Sul. Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Univates.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WOLF, Guilherme Eidelwein. A regularização fundiária urbana no Brasil e seus instrumentos de alcance.: Notas introdutórias acerca do direito fundamental à moradia frente às políticas públicas de regularização fundiária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3376, 28 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22699. Acesso em: 5 nov. 2024.

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