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A compra e venda romana

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Agenda 01/10/2012 às 19:55

Atualmente, se investigamos a eficácia obrigacional ou real do contrato de compra e venda, temos que contemplar o ius romanum, que utilizou as modalidades de eficácia suspensiva e resolutiva no decorrer do seu tempo.

1.Introdução

O Direito Romano é uma seara do Direito que sempre chamou a minha atenção uma vez que inúmeros institutos jurídicos contemporâneos já eram disciplinados pelos romanos.

Quando tive uma oportunidade de debruçar-me sobre o iusromanum, consegui ter uma noção ainda maior sobre a importância do seu estudo para melhor compreendermos nosso atual direito. O presente trabalho é um exemplo desse valor, visto que o tema que será tratado pode ser facilmente transposto do Direito Romano para o Direito vigente nos mais variados ordenamentos jurídicos do ocidente.

E antes de começarmos a expor acerca da compra e venda romana (emptio venditio), seria interessante começarmos por uma breve exibição sobre a história romana, naquilo que concerne ao Direito.

Iremos seguir os ensinamentos de Santos Justo para realizar essa diminuta caminhada. E começamos revelando que Roma durou aproximadamente treze séculos, o que, por si só já poderia explicar porque uma civilização conseguiu render tantos frutos férteis para o Direito.

Como a vigência da Roma Antiga foi extensa, os estudiosos costumam dividir seus treze séculos em períodos. Essa divisão pode ser realizada de diferentes formas. Uma delas é de acordo com o critério étnico-político, que divide a história romana em quatro períodos conforme as modificações políticas. Assim teríamos o período monárquico (de +- 753 a 510 a.C.); o republicano (de 510 a 27 a.C.); o imperial (de 27 a.C. a 284); e o absolutista (de 284 a 565)[i].

Como as transformações políticas nem sempre influenciavam a evolução jurídica, essa classificação é mais importante para os historiadores do que para nós. Outro critério se adequa mais às nossas necessidades, e divide o Direito Romano também em quatro épocas baseadas nas fontes. É o critério jurídico-externo que prevê a época consuetudinária; a legislativa; a jurisprudencial; e a constitucional[ii].

Embora mais útil, esse critério ainda é insuficiente para nós, já que a evolução do direito privado romano acaba por expressar alguns fatos e transformações políticas.

Deste modo, chegamos ao último critério, o jurídico-interno que se utiliza somente dos fatores jurídicos na classificação e será o critério que será utilizado durante todo o trabalho.

Nesse ponto de vista, o Direito Romano é dividido, novamente, em quatro épocas: a Arcaica, a Clássica, a Pós-clássica e a Justinianeia.

A época Arcaica começa em torno de 753 e vai até 130 a.C.. Caracterizada pela “imprecisão em que não é fácil distinguir o jurídico, o religioso e o moral, quer porque só os sacerdotes pontífices eram juristas, quer porque a iurisprudentia não se tinha afirmado, ainda, como uma verdadeira iuris scientia[iii]”.

Nesse período foram promulgadas, nomeadamente, a Lei das XII Tábuas e a Lex Aquilia, importantes marcos jurídicos do Direito Romano.

Na época Clássica, o Direito Romano atinge o ápice do esplendor. Entre 130 a.C. e 230, Roma conseguiu vários progressos jurídicos, entre eles a Lex Aebutia de formulis que legalizou o processo formulário que substituiu as legesactiones[iv].

Já na época Pós-clássica que situa-se entre 230 e 530, houve um agravamento da decadência[v] romana, iniciado na última etapa da época anterior. Nesse período, havia grande confusão terminológica, de conceitos, instituições e dos textos. Foi nesse ambiente que Justiniano encarregou Triboniano de elaborar os Digesta[vi].

A última época, a Justinianeia que durou entre os anos de 530 e 565, foi marcada pela evolução social que acabou por tornar os textos clássicos, insuficientes para solucionar a nova gama de dificuldades. Com isso acabou tornando-se necessário atualizar o Direito Romano, o que culminou na maior compilação jurídica de todos os tempos, o Corpus Iuris Civilis.

Marcam esse período “a fusão do iushonorarium com o iuscivile e da longitemporispraescriptio com a usucapio”, assim como“a substituição da distinção entre res mancipi e res necmancipi pela que opõe as res imobiles às res mobiles e o desaparecimento da mancipatioe in iurecessio”[vii].

Após essas notas históricas, que são importantes para melhor nos situarmos, chega o momento de encararmos o contrato de compra e venda do Direito Romano.


2. Contrato

2.1.Origem:

Antes de conceituarmos e caracterizarmos o contrato e seus consequentes desdobramentos na compra e venda, é importante dedicarmos especial atenção a origem do contrato no Direito Romano.

Segundo Fernández de Buján[viii], o termo contrato procede da expressão latina contractus, que nada mais é do que uma forma substantivada do verbo contrahere (contratar), significando “o contratado”.

Historicamente, entretanto, o contrato não foi o primeiro instituto do gênero a surgir. Poderíamos identificar uma evolução de complexidade que começaria pelo actus, passaria pelo negotium, o conventio e o pactum e terminaria no já mencionado contractus[ix].

O primeiro dos institutos sistematizados é o ato que advém do verbo agere no seu significado de atuar, de realizar uma atividade. Com essa amplitude conceitual, podemos verificar que nem todos os atos têm eficácia jurídica ou relevância para o direito[x].

Além da amplitude conceitual, outro complicador para definir de forma precisa o ato romano é a impossibilidade de se extrair uma noção unitária do termo nas fontes ordinárias. O ato era utilizado em variadas situações e funções, perdurando essa imprecisão em todas as épocas do Direito Romano[xi].

Em se tratando do negócio, é possível dizer que o termo era utilizado para se referir às ocupações com finalidade lucrativa[xii], mais precisamente as atividades comerciais e mercantis.

Na Roma pretérita, o termo negotium era utilizado para identificar atos jurídicos bilaterais, ou seja, os atos que se formavam pela atuação de uma ou mais pessoas conjuntamente. Nessa perspectiva, Buján[xiii] esclarece que os juristas romanos não caracterizavam a doação ou qualquer ato jurídico hereditário como tendo natureza de negotium.

O terceiro instituto é a conventio que deriva do verbo latino convenire, significando reunir-se, coincidir ou juntar-se. Assim, o termo teria o sentido de estar em acordo.[xiv] O consensus seria o acordo de vontade das partes contraentes[xv].

Para a constituição de uma relação obrigacional seria necessária uma convenção em que a vontade das partes fosse declarada[xvi], mas o contrário nem sempre é correto, em outras palavras, nem toda convenção gera, por si só uma relação obrigacional[xvii].

Já o último instituto, o pacto, era utilizado como uma espécie de convenção particular. Todo pacto seria convenção, mas nem toda convenção seria um pacto. Este seria espécie no qual o outro seria o gênero[xviii].

Antes de passarmos ao conceito de contrato, poderíamos salientar que Labeão, em uma passagem do Digesto, distingue atos, gestos e contratos. Ato seria um termo geral, celebrado por meio de palavras ou ações como a estipulação e o pagamento em dinheiro. A manifestação de vontade sem declaração de palavras caracterizaria o gesto[xix]. Por sua vez, contrato seria a obrigação recíproca (o synallagma grego)[xx].

2.2.Conceito:

Segundo Fernández de Buján[xxi], para os juristas clássicos “contratos são aqueles negócios jurídicos bilaterais, típicos e que produzem efeitos obrigatórios[xxii]”.

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Um dos aspectos que mais chamam atenção, para a nossa visão contemporânea, é a necessidade da tipicidade para a caracterização do negócio como contrato, pelo menos na época clássica.

Esse requisito pode ser percebido por meio de um texto de Gaio[xxiii], no qual ele coloca como contratos de boa-fé típicos somente a compra e venda, o arrendamento, a gestão de negócios, o mandato, o depósito, a fidúcia, a sociedade, a tutela e a reclamação de dote.

Para que um ato fosse considerado contrato ele deveria se adequar a um modelo existente, com suas características e regulamentações próprias, previsto em um numerusclausus, como já mencionado, além de ser necessário um objeto lícito e possível[xxiv]-[xxv].

Se essa rigidez era uma característica marcante do direito clássico, o mesmo não se pode dizer da etapa justianeia que consolidou uma maior flexibilidade surgida nas épocas anteriores. Nesse período os contratos consensuais ganhavam força no sistema jurídico romano. O princípio da consensualidade oferece alento às novas necessidades mercantis, que eram sem dúvida mais complexas nesse período, se estendendo para quaisquer relações jurídicas, não mais subsistindo a necessidade de observância do numerusclausus revelado por Gaio[xxvi].

O princípio da consensualidade acaba por majorar a importância da vontade humana. Mas essa vontade por si só não basta, sendo necessária uma manifestação que transcenda a esfera pessoal do sujeito. Se no período clássico essa manifestação deveria estar em conformidade com a tradição do ato praticado, a evolução do direito leva a possibilidade da eficácia e validade dos negócios informais, onde a manifestação da vontade prescinde de forma[xxvii].


3.Compra e venda

3.1.Origem:

Uma questão problemática sobre o contrato de emptio venditio versa sobre a sua origem. O passar dos anos não foi suficiente para indicar um posicionamento único sobre o tema.

O que leva Gagliardi[xxviii] a evidenciar três linhas de pensamentos sobre a origem desse contrato.

A primeira crê que a emptio venditio deriva da mancipatio. Nessa visão, a formação da compra e venda se deu no próprio iuscivile. Nega-se a possibilidade de sua origem no ius gentium, nas relações entre os comerciantes romanos e estrangeiros.

Já a segunda vê a origem nas relações entre os romanos e os estrangeiros, baseando sua teoria na recepção progressiva da emptio venditio no iuscivile ou, em última análise, de uma compra e venda real arcaica que foi adaptada.

Por último, a terceira hipótese nega qualquer origem derivada do iuscivile. Para os seus defensores, a emptio venditio, sem dúvidas, origina-se no ius gentium, graças ao pretor urbano, que permite a sua evolução de maneira independente, quando se livra do dever de observar as mesmas fórmulas do pretor peregrino.

A última linha de pensamento é a mais aceita pelos romanistas e está de acordo com o jurista romano Paulo. Para ele, a compra e venda deriva da permuta, da troca. O fundamento utilizado por Paulo é bastante eficiente. Como não existia a moeda (dinheiro) nas origens de Roma, tornava-se impossível identificar qual bem se vendia e qual bem era considerado como preço que se pagava. Somente com a invenção da moeda passou a ser possível distinguir, na troca, o bem que era vendido e o bem que era considerado o preço, no caso o dinheiro, de acordo com a declaração do texto D. 1,18,1pr[xxix]-[xxx].

Nesse sentido, Buján[xxxi] apoia o posicionamento de Paulo e reitera que não existindo o dinheiro não havia maneira de identificar a mercadoria e o preço. Isso porque cada um trocava coisas inúteis por coisas úteis, segundo suas necessidades pessoais. Todavia, mesmo antes de haver moeda cunhada, quando se utilizava o peso de algum metal na troca, era possível identificar qual bem era a mercadoria e qual o preço (no caso, a medida de metal). Assim, o melhor entendimento é que se tornava impossível identificar o preço desde que não se empregasse, em um dos polos da entrega, um material que servisse tão só como valor de cambio, seja o peso de cobre ou a moeda cunhada[xxxii].

Como, nem sempre, era possível que um mesmo bem fosse inútil a uma parte e útil a outra, elegeu-se um bem com uma valoração pública que minorasse as dificuldades da permuta. E esse bem, marcado com um símbolo público possibilitou a identificação do preço e por consequência da mercadoria.

Se antes a inexistência do dinheiro impossibilitasse o surgimento da compra e venda, após a disseminação do seu uso é possível diferenciar mercadoria e preço, abrindo espaço para outro contrato: a emptio venditio.

Para Buján, é “esta diferença de posições entre quem entrega e cobra, e entre quem recebe e paga, que faz com que nos encontremos diante um negócio diferente da permuta”[xxxiii].

Apesar de ser derivada da permuta, a compra e venda era um contrato distinto, que possuía um esquema negocial diverso, na visão de Paulo. A emptio venditio sendo iuris gentium, poderia tornar-se perfeito pelo simples consenso das partes[xxxiv].

3.2.Conceito:

O conceito da compra e venda romana[xxxv] não possui grandes divergências doutrinárias. Utilizando as palavras de Vieira Cura[xxxvi], a emptio venditio, na época clássica, “era um contrato consensual, bilateral perfeito e de boa-fé[xxxvii], pelo qual uma das partes (venditor) se obrigava a transferir para a outra (emptor) a posse pacífica de uma res (que estivesse incommercium), enquanto esta se obrigava a dar àquela uma determinada quantia em dinheiro, que recebia a designação de pretium”[xxxviii].

O objeto do contrato era designado por merx[xxxix], e poderia ser qualquer bem econômico, corpóreo ou incorpóreo[xl], genérico[xli] ou específico, presente ou futuro[xlii]. Mas era necessário que fosse suscetível de fazer parte do patrimônio de uma pessoa, no caso, se fosse uma merx lícita in commercium[xliii].

Os bens considerados in commercium[xliv] eram todos aqueles não tipificados como res extra commercium[xlv]. Seriam eles as res humani iuris que abarcariam as res publicae, as res communes (o mar, a água, o ar) e as res universitates; as res divini iuris[xlvi] abrangeriam as res sacrae[xlvii], religiosae e sanctae, que eram os bens destinados ao culto religioso e que incluíam templos, bosques sagrados, sepulcros e bens colocados sobre a proteção dos deuses; e por último o homo liber, o homem livre.

Os bens fora do comércio, que se oporiam àqueles que poderiam ser comprados e vendidos reciprocamente, eram previstos, por exemplo, em UlpXIX,5 e D.20,3,1,2[xlviii]. De acordo com Vieira Cura[xlix], os bens não negociáveis, versariam somente em relação asres humani iuris. De forma sábia, o jurista revela que as res divini iuris, por pertencerem aos próprios deuses ou estarem sob sua proteção, não careciam da qualificação como res extra commercium. Mas isso não significava que esses bens poderiam ser objetos da emptio venditio, a importância de tais bens os colocavam fora do comércio.

Prosseguindo, poderíamos identificar três elementos essenciais dos contratos: o elemento pessoal, o real e os formais[l].

O elemento pessoal seriam as partes intervenientes do contrato. A expressão que as identifica, deriva das ações que cada uma realiza. O emptor, comprador, adquire uma coisa. Já o venditor, o vendedor, é quem transfere a mercadoria[li].

Do outro lado, o elemento real do contrato de compra e venda, pode ser dividida em a coisa, merx, e o preço. Como já mencionamos, a coisa deve ser uma res intracommercium. O preço[lii], por sua vez, foi o requisito que permitiu configurar o negócio jurídico como um novo tipo contratual com peculiaridades distintas de outros negócios que cumpriam finalidades semelhantes[liii].

O último elemento, podemos considerar por inexistente na emptio venditio. Isso porque a emptio venditio desde a sua gênese foi um contrato que prescindiu de forma, superando a formalidade como requisito de validade dos negócios. Assim, a compra e venda tinha como elemento a informalidade e a preponderância da vontade das partes sobre a tradição formal, presente em outros contratos.

De acordo com Paulo[liv], por ser considerada ius gentium, a emptio venditio realizava-se por meio do consentimento.

3.3.Características:

Dentro do conceito da emptio venditiopodemos retirar três características fundamentais. O consenso, o objeto e o preço.

Baseado no texto D,18,1,1,2, Vieira Cura[lv] defende que a emptio venditio é um contrato realizado mediante o simples consenso das partes, podendo ser manifestado de qualquer modo[lvi]. Essa característica demonstraria sua gênese no ius gentium, mesmo posicionamento de Paulo, como já explicitado.

Nesse sentido, Gaius em seu texto III,136 coloca de maneira transparente que “por estes modos se contrai a obrigação consensualmente porque não é preciso o emprego de palavras nem de escritura, bastando que as partes contratantes consintam”.

De acordo com Gagliardi[lvii], o consenso tinha duas funções. A primeira, a de desatrelar a emptio venditio da formalidade que marcou o direito romano arcaico. A segunda, de permitir a execução da prestação do contrato para um momento futuro, em outras palavras, o pagamento do preço e a entrega do bem não carecia ser realizada de forma imediata.

Na visão do jurista italiano, a passagem imediata da propriedade do bem vendido ao comprador era uma característica da venda real antiga e passa a ser a grande diferença para a emptio venditio consensual[lviii].

Esse é o mesmo posicionamento de Buján, que revela que a grandeza da consensualidade na compra e venda consiste no fato de que o acordo é válido e produz plenos efeitos jurídicos sem que as partes intervenientes necessitem transferir nada no momento do ajuste. “Diferencia-se nitidamente os momentos de perfeição e de cumprimento do contrato”[lix].

Na idade pós-clássica, a decadência da forma solene do iuscivile acaba por alçar a vontade como elemento necessário para a validade do negócio[lx].

Essa preponderância da vontade sobre a forma recebe atenção especial nos ensinamentos de Buján[lxi]. Para ele, quando a stipulatio[lxii] cai em desuso, surge a força vinculante do mero acordo de vontades. As obrigações passam a surgir da força do acordo e não do respeito a uma forma.

Sobre a segunda característica, o objeto da compra e venda, já tivemos a oportunidade de delinear. Assim, passaremos para a terceira característica: o preço.

Preço deriva etimologicamente do termo latino pretium. Era utilizado para se referir à contraprestação ou ao contra-valor[lxiii] que o comprador oferece e se compromete a dar ao vendedor como equivalência em dinheiro do bem que pretende adquirir. Pode ser tomado como valor de câmbio[lxiv].

A escola proculeiana entendia desse modo, ou seja, o pretium deveria ser constituído por uma prestação monetária. Mas essa linha não era aceita pelos sabinianos que acreditavam que o pretium poderia ser representado por qualquer coisa, fazendo com que a permutatio fosse uma espécie ou modalidade da emptio venditio[lxv].

O caminho escolhido pelos sabinianos[lxvi] não permitia a diferenciação entre a permutatio e a emptio venditio da maneira como conhecemos e acabou por não perdurar.

Gaio, que se dizia um sabiniano, acabou por declarar a vitória dos proculeianos nesse sentido: “O preço deve consistir em dinheiro. Muito questionável essa questão (...) mas com razão prevaleceu a opinião de Próculo que é defendida com razões mais válidas”[lxvii].

Antes de passarmos ao outro ponto, revelemos que na época de Diocleziano dispôs-se que o preço poderia dar causa à rescisão do contrato de compra e venda. Isso, caso o pretium fosse inferior à metade do valor real da coisa. Caso fosse verificada a laesio ultra dimidium ou a laesioenormis, o vendedor poderia rescindir a venda, com a consequente restituição da coisa mediante o reembolso do preço pagado. O comprador, para impedir a rescisão, poderia pagar a diferença[lxviii].

Gagliardi[lxix] revela outra característica da emptio venditio: a garantia automática da evicção[lxx]. Entendemos, entretanto, que essa característica se aproxima mais de uma obrigação do vendedor do que um elemento essencial da compra e venda, assim como os outros mencionados aqui.

Mas trataremos dessas obrigações já no próximo tópico.

3.4.Obrigações das partes:

Podemos elencar algumas obrigações das partes na emptio venditio, mas sempre deveríamos partir da obrigação fundamental: a entrega do bem e o pagamento do preço.

Além da obrigação de entregar[lxxi] a res vendida ao comprador, o vendedor deveria proporcionar a posse pacífica da mesma, que poderia servir como fundamento para a usucapião[lxxii].

Fernández Buján[lxxiii] esclarece que essa obrigação de entrega precede, na maioria das situações, uma prévia obrigação de guarda[lxxiv] da coisa vendida até a efetiva entrega[lxxv]. Para o autor, a obrigação de guarda é consequência da obrigação de entrega.

Essa obrigação de guarda só torna-se possível com a desvinculação[lxxvi] do momento da formação e o da execução do contrato, diferente da tradicional compra e venda real de época arcaica, como já relatamos.

A obrigação de entrega não é, todavia, a única do vendedor. Soma-se a essa a obrigação de garantir a posse pacífica ao comprador[lxxvii], se responsabilizando pela evicção[lxxviii].

Evicção que “é um termo proveniente do termo latino evictio que deriva do verbo evincere, que significa, entre outras coisas, vencer em juízo. Existe evicção quando o comprador, que não completou o tempo da usucapião, é vencido em juízo, evictus, pelo verdadeiro dono da coisa ou pelo titular de um ius in re aliena sobre ela”[lxxix].

Relembra Buján[lxxx] que o vendedor somente será responsabilizado, pela evicção, se houver uma reclamação judicial de terceiro, que prospere produzindo um prejuízo[lxxxi] ao comprador, seja uma perda total ou parcial[lxxxii], do bem já recebido.

Outra obrigação do vendedor é a responsabilidade pelos vícios ocultos do bem. Esses vícios são os que tornam o bem adquirido impróprio para o uso ou finalidade a que é destinado ou que diminui de forma considerável o valor da coisa. Na primeira situação, o comprador não teria adquirido a coisa e na segunda, caso houvesse adquirido teria pagado um valor inferior ao inicialmente oferecido[lxxxiii].

Devemos chamar a atenção para o fato de nem sempre os vícios dizerem respeito a defeitos na coisa comprada. Juntam-se aos casos declarados anteriormente, os desajustes entre o que o comprador entende que compra e o que ele efetivamente compra, situação em que ocorre uma dessintonia entre as partes. Fernández Buján[lxxxiv] exemplifica essas situações com o fato do comprador pensar estar comprando um cavalo de corrida sendo ele apto como animal de tiro e carga.

Já a obrigação do comprador era o pagamento do preço compactuado[lxxxv]. Pagamento que não necessitava ser realizado de maneira imediata, como já tivemos oportunidade de mencionar.

No mais, “nenhum dos contraentes podia, na verdade, exigir judicialmente o cumprimento da obrigação do outro sem que oferecesse a realização, uno tempore, da sua própria prestação”[lxxxvi][lxxxvii].

3.5. A entrega na emptio venditio:

Matéria com importantes reflexos nos ordenamentos jurídicos atuais é o momento da transferência da propriedade no contrato de compra e venda. Muito se fala que a tradição romana consagra a compra e venda meramente obrigacional, que a aquisição de propriedade só ocorre com a transferência do bem, e que o Código de Napoleão, ao contrário, inovou ao consagrar a compra e venda como contrato real quoadeffectum, ou seja, o contrato por si só transfere a propriedade.

Realcemos que mesmo sendo um contrato com eficácia real, ele não deixa de ser consensual, o que significa que ele se aperfeiçoa com o simples acordo sobre a coisa vendida e o preço. Nesta modalidade torna-se indiferente a tradição do bem para aquisição de propriedade, que ocorre imediatamente após o consenso, nos termos explicitados, não sendo exigido o pagamento nem a transferência da propriedade[lxxxviii].

Antes de entrarmos na compra e venda com eficácia real com mais afinco, voltemos à compra e venda obrigacional para uma melhor sistematização.

Na época clássica, a emptio venditio não transferia, per si, a propriedade para o comprador. Para que tal fim fosse atingido era necessário outro negócio: a mancipatio ou a in iurecessio, em caso de res mancipi[lxxxix], ou a traditio[xc], no caso das res necmancipi[xci].

No caso das res necmancipi, Vieira Cura[xcii] aduz que, além da traditio, ainda era necessária uma iusta causa para efetuar a transmissão da propriedade, mesmo que a entrega houvesse sido realizada pelo dominusexiureQuiritum.

A emptio venditio com eficácia obrigacional perdurou até a época pós-clássica. Na época de Constantino, entretanto, houve uma fusão da venda e da transferência da propriedade no mesmo ato. Já não era necessário a mancipatio, a in iurecessio ou a traditio. A compra e venda transformou-se em um negócio jurídico capaz de, por si só, transferir a propriedade[xciii].

Essa afirmação acaba por contrariar os autores que dizem que a compra e venda com eficácia real surgiu no Código de Napoleão. Apesar de o direito romano ter originado a emptio venditio com eficácia obrigacional, esse fato não impossibilita que tenham oferecido terreno fértil para o nascimento, também, da eficácia real do mesmo contrato.

E existem comprovações sobre o nascimento dessa eficácia real no período romano. De acordo com Vieira Cura[xciv], a alteração legislativa teria sido induzida pela prática provincial ocorrida após a concessão da cidadania a todos os habitantes livres do Império por Caracala, em 212, que originou uma discrepância, entre o direito oficial e o direito observado por muitos dos novos cidadãos no ambiente provincial onde viviam, fundamentalmente de base consuetudinária e que atribuíam eficácia real a emptio venditio.

Essa discrepância foi diminuindo com o passar do tempo, por um progressivo acolhimento de regras e concepções dominantes na prática pelo direito oficial, acabando por fulminar no rescriptum de 321, que demonstrou a transformação da emptio venditio em um negócio com eficácia real[xcv].

O mencionado rescriptum não dispõe claramente essa modificação da eficácia, mas oferece sinais importantes sobre essa alteração. No caso, ele determina que se mantenham intocados os bens da mulher casada cujo marido cometeu um crime, entre os quais os que passaram a ser juridicamente seus por compra, efetuada em momento anterior à prática desse delito[xcvi][xcvii].

Mas a emptio venditio com eficácia real não perdurou no direito romano. Isso porque no período justinianeu alguns textos do Corpus Iuris Civilis comprovam, e no posicionamento de Vieira Cura, de maneira inequívoca, que a transferência da propriedade não resulta do próprio contrato de compra e venda, que gera, tão somente as obrigações de entrega e pagamento, e as demais já informadas, e sim de um ato diferente[xcviii].

O contrato de compra e venda, contudo não retomou o modelo da época clássica. O declínio da formalidade no direito romano acabou por soterrar a mancipatio e a in iurecessio. Agora o ato capaz de transferir a propriedade seria sempre a traditio.

Outra diferença do direito justinianeu para o clássico era a necessidade do pagamento do preço para que a propriedade fosse adquirida pelo comprador[xcix][c].

Ainda que tenhamos exposto de forma sucinta a questão da transferência da propriedade na emptio venditio, é possível depreender que não foi o Código de Napoleão o ordenamento jurídico criador da eficácia real nesse contrato. O que houve fora uma retomada de uma modalidade já utilizada pelo Direito Romano.

O direito brasileiro, assim como o espanhol, segue o posicionamento tradicional do direito clássico e justinianeu, impondo a eficácia obrigacional ao contrato de compra e venda.

Ao contrário, o ordenamento português seguiu a opção francesa, que por sua vez retomou a eficácia real que perdurou do período pós-clássico ao justinianeu, tendo o seu nascimento e fortalecimento entre os séc. III e V.

3.6.Condição:

Em nosso ponto de vista, é interessante dedicarmos alguns parágrafos sobre a condição visto que os pactos, em uma situação ou outra, acabam por impor condições à emptio venditio.

Nessa perspectiva seria importante dispormos sobre tal instituto em tópico próprio. Atualmente, não possuímos dificuldades para caracterizar, em abstrato, uma modalidade, ou outra, de condição. De forma diversa, em alguns momentos, pode ser difícil identificar qual a condição incidente no contrato.

Mas o que seria a condição? Seria um elemento acidental do negócio jurídico, um acontecimento futuro e incerto, do qual as finalidades do contrato dependem para produzirem efeito[ci].

Para explicitar melhor o conceito devemos prosseguir alertando sobre divisão da condição em condição suspensiva e resolutiva. A primeira situação suspende os efeitos do negócio até que o evento previsto se verifique. Já a segunda modalidade resolve o contrato automaticamente quando o evento se verifica, antes disso há produção dos efeitos do contrato[cii].

A doutrina moderna, para BlanchNougués[ciii], parece concordar que no Direito Romano a condição como elemento suspensivo do negócio jurídico e o que denominamos atualmente como condição resolutória é um pacto resolutório condicionado suspensivamente[civ].

Sobre o autor
André Guerra

Advogado, Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pós-graduado pelo Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito de Coimbra, pesquisador na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca 2012/2013,bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, André. A compra e venda romana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3379, 1 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22719. Acesso em: 23 nov. 2024.

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