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Usucapião administrativa: reflexos no registro de imóveis

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Agenda 09/10/2012 às 09:52

A usucapião administrativa não representa afronta injustificada ao direito de propriedade. O titular do domínio não é sumariamente despojado de seu bem imóvel, pois é oportunizada impugnação ao procedimento.

"Enquanto as leis forem necessárias, os homens não estarão capacitados para a liberdade" (Pitágoras)

Resumo: A Conversão da Legitimação de Posse em Propriedade, também conhecida como Usucapião Administrativa, é um importante instrumento de regularização fundiária e política urbana que visa concretizar a função social da propriedade. Foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 11.977/2009, ou Lei do Programa Minha Casa, Minha Vida. Investigar o instituto, sua aplicação prática e o impacto na atividade do Oficial Registrador Imobiliário são objetivos deste trabalho de pesquisa. As etapas de Averbação do Auto de Demarcação Urbanística, Elaboração do Projeto de Regularização Fundiária, Registro do Parcelamento decorrente do Projeto de Regularização Fundiária, Registro da Legitimação de Posse, Registro da conversão da legitimação de posse em propriedade e a Averbação do cancelamento da Legitimação de Posse serão objeto de análise.

Palavras-chave: usucapião administrativa, regularização fundiária, política urbana, função social da propriedade

Sumário: INTRODUÇÃO. 1.  O DIREITO DE Propriedade E A OCUPAÇÃO DO SOLO. 1.1 O Direito de Propriedade e as Dimensões de Direitos Fundamentais. 1.1.1 1ª Dimensão – liberdade. 1.1.2 2ª dimensão – Igualdade. 1.1.3 3ª dimensão – Fraternidade. 2. a função social da POSSE e da propriedade e Os instrumentos de Regularização Fundiária no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2.1 A Função Social da Propriedade. 3. da usucapião administrativa e seus reflexos no registro de imóveis. 3.1 Do Procedimento da Usucapião Administrativa. 3.1.1 Da Averbação do Auto de Demarcação Urbanística. 3.1.2 Elaboração do Projeto de Regularização Fundiária; 3.1.3 Registro do Parcelamento decorrente do Projeto de Regularização Fundiária; 3.1.4 Do Registro da Legitimação de Posse. 3.1.5 Do Registro da Conversão da Legitimação de Posse em Propriedade. 3.1.6 Da Averbação do Cancelamento da Legitimação de Posse. 3.2 A Redução dos Emolumentos na Lei 11.977/2009 e a Vedação das Isenções Heterônomas. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

A Lei 11.977/2009 é conhecida por ter criado o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV destinado a suprir o deficit habitacional e assegurar o direito constitucional à moradia. Isto tudo através da geração de emprego e renda por meio do fomento do setor da construção civil.

No entanto, a Lei não se resumiu à criação do referido Programa. Felizmente o legislador não fechou os olhos à realidade fática de milhares de aglomerados populacionais que se formaram de maneira irregular nas cidades brasileiras. Neste contexto, a Lei 11.977/2009 também tratou da Regularização Fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, e inovou ao instituir uma forma de usucapião que dispensa a intervenção judicial.

Neste contexto, os novos instrumentos jurídicos que passam a fazer parte do dia-a-dia dos serviços de Registro de Imóveis, como a averbação do auto de demarcação urbanística, o registro da legitimação de posse e da conversão da legitimação de posse em propriedade, prevista no art. 60 da Lei 11.977/2009 integram o tema da presente pesquisa.


1.  O DIREITO DE PROPRIEDADE E A OCUPAÇÃO DO SOLO

Na antiguidade não existia a ideia de propriedade individual de imóveis. O homem, como ser gregário que é, vivia em grupos, ocupando conjuntamente casas e terras. Individualizavam-se apenas os bens de consumo, como roupas e armas.

“Somente quando a terra passou a ser explorada para fins comerciais aquele que a tornava produtiva ficou sendo não só seu dono, como também de seus frutos e produtos, mas essa ocupação não recebia proteção jurídica, por não haver ainda uma sociedade politicamente organizada”.[1]

O direito de propriedade começou a ser assegurado em sua plenitude no Brasil pela Constituição Imperial de 1824. Na época, era tido como um direito absoluto, bastante distante do direito de propriedade vinculado à função social tal qual no texto constitucional de 1696 e na Constituição vigente[2].

Desde a Constituição Imperial de 1824 o Brasil adota um sistema de registro imobiliário eclético, resultante da fusão entre o sistema alemão e o francês: trata-se de um procedimento complexo, em que não basta o título, mas é imprescindível seu registro. Neste ínterim, o registro possui o duplo efeito de constituir o direito real (efeito constitutivo) e anunciá-lo a terceiros (efeito publicitário). Antes do registro existe apenas direito pessoal entre os contratantes e a partir do lançamento registral nasce o direito real. “A causa é a escritura, e o efeito é o registro. Pelo sistema brasileiro, anulada a escritura que é a causa, por consequência, anula-se o registro”,[3]

O art. 1.227 do Código Civil estabelece que a constituição ou transmissão dos direitos reais sobre imóveis dependem do registro do título aquisitivo no Cartório de Registro de Imóveis.

No mesmo norte, o art. 1.245[4] estabelece que a transferência entre vivos da propriedade se dá mediante o registro do título translativo no Registro Imobiliário.

Assim, o Registro Imobiliário tem a importante função de “permitir a aquisição da propriedade, passando o adquirente e a ser, com segurança, o proprietário do imóvel adquirido por ato inter vivos, a partir do registro”.[5]

Note-se que esta transmissão estará condicionada ao registro apenas nos atos inter vivos, pois nos atos causa mortis a transmissão se dá no momento da abertura da sucessão nos termos do artigo 1.784 do Código Civil[6]. Neste último caso, o registro imobiliário não processará a transferência da propriedade, mas será indispensável o registro do formal de partilha ou carta de adjudicação para que se perfectibilize a cadeia sucessória e o herdeiro passe a ter disponibilidade sobre o bem.

Assim, tem-se que

 “ a aquisição da propriedade imóvel pelo direito hereditário, pela acessão ou pelo usucapião independerá de registro, visto que este tão somente afirmará a disponibilidade do bem de raiz e será feito em obediência ao princípio da continuidade”.[7]

A dinâmica social de ocupação do solo urbano nem sempre segue os procedimentos previstos para parcelamento do solo e regularização dos novos grupos habitacionais. Considerando-se a existência em praticamente todas as cidades do país de assentamentos populacionais irregulares, e que predominam moradores de baixa renda, fez-se necessário que o Direito criasse instrumentos para a regularização fundiária destes assentamentos urbanos consolidados. 

Neste norte, a demarcação urbanística, a legitimação de posse e a sua posterior conversão em propriedade, ou seja, os institutos envolvidos na chamada usucapião administrativa, inserem-se no contexto de um sistema registral imobiliário socialmente útil e voltado à consecução dos objetivos constitucionais.

Por se tratar de institutos relativamente novos, e pouco conhecidos no mundo jurídico, justifica-se o desenvolvimento deste trabalho monográfico.

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Note-se que desde o final da década de 1970 vigora no Brasil a Lei 6.766/1979 que prevê os institutos de desmembramento e loteamento para parcelar o solo urbano de maneira regular e dar origem a novos núcleos populacionais.

Contudo, a dinâmica das relações sociais presente nas cidades brasileiras, em especial entre a população de baixa renda, fez com que as famílias fossem se estabelecendo em zonas não ocupadas e dando origem a novos assentamentos urbanos sem qualquer espécie de planejamento ou tutela jurídica.

Por muito tempo, o sistema registral brasileiro que tinha como primado a proteção da propriedade privada não previa soluções para regularizar a situação fática destes assentamentos urbanos consolidados.

Ocorre que para se tentar compreender a dinâmica dos instrumentos jurídicos de regularização fundiária, que em última análise destinam-se à consolidar uma garantia constitucional do direito social à moradia, faz necessário previamente analisar o direito de propriedade e sua relação com as dimensões de direitos fundamentais.

1.1 O Direito de Propriedade e as Dimensões de Direitos Fundamentais

A partir da evolução constante da sociedade, as necessidades solidificam-se em direitos que, quando consolidados, deixam marcas na evolução histórico-jurídica das nações[8]. Assim o foi com os direitos individuais, civis e políticos (ou direitos de 1ª dimensão), os direitos sociais (ou de 2ª dimensão) e, finalmente, os direitos transindividuais (de 3ª dimensão)[9].

Ressalte-se que a divisão dos direitos fundamentais em gerações - ou dimensões como prefere Paulo Bonavides[10] - leva em conta o modelo de Estado então vigente. Trata-se de uma divisão meramente didática que representa um “processo histórico em que os direitos se somam, nunca se excluem”[11].

1.1.1 1ª Dimensão – liberdade

A primeira dimensão de direitos consagra os direitos civis e políticos, ou seja, deveres negativos que impõe um não agir estatal para preservar os direitos e garantias individuais e coletivos.

Historicamente, na Europa pré-revolucionária (absolutista), vigorava o Discurso do Absolutismo. O Rei era o representante de Deus para os assuntos Políticos e este período ficou marcado pelas seguintes máximas: “The king can do no wrong” e “Le Estat se Moi”.

Com a secularização do conhecimento e a ascensão do LIBERALISMO, passou a viger a regra de que o Estado não pode interferir na vida privada.

Durante o século XVIII, as “luzes” iluminaram a Europa. O modelo Liberal ascendeu no contexto da Revolução Industrial e a ordem do dia era a interferência estatal mínima nas relações sociais. Como reação da burguesia ao Estado absolutista das décadas anteriores, consolidaram-se os direitos de 1ª dimensão ou direitos negativos, os quais consistiam em um dever de não-intervenção, um não-agir estatal[12].

Em um momento histórico pós-absolutista foi necessário limitar a atuação estatal e impor um não-agir estatal.

A forma então pensada para se limitar eficazmente o poder estatal consistiu na asseguração dos direitos civis (boa parte do nosso atual artigo 5º da Constituição) e políticos (Capítulo IV, arts. 14, 15 e 16, também da Carta Magna).

No entanto, o problema não estava solucionado definitivamente, pois a sociedade é dinâmica e a evolução do processo histórico Demonstrou que a burguesia que concentrava o poder econômico era a única que usufruía dos direitos civis e políticos em detrimento da patuléia. Surge o embate capital versus trabalho e desenvolvem-se os direitos fundamentais de 2ª dimensão.

Note-se que se buscarmos inserir o direito de propriedade neste contexto, não é difícil observar que ao assegurar o direito de propriedade aos cidadãos estar-se-ia limitando a ingerência estatal sobre os bens de propriedade privada.

É possível concluir, pois, que dentro deste raciocínio geracional, podemos situar o direito de propriedade entre os direitos fundamentais de 1ª dimensão, caracterizados por um não agir estatal, ou seja, na limitação do poder do Estado para privilegiar um direito e garantia individual: a propriedade.

No entanto, do embate capital versus trabalho e da instabilidade social dele decorrente fez-se necessário rever o papel do Estado, naqueles que chamamos de direitos de 2ª dimensão.

1.1.2 2ª dimensão – Igualdade

Aqui se inserem os direitos fundamentais ligados ao Estado de bem-estar social, ou welfare state. Tratam-se dos direitos sociais, econômicos e culturais.

Com o “avanço lento e gradual da conquista de direitos[13]”, o liberalismo econômico passou a demonstrar-se insuficiente. O impacto causado pela Primeira Guerra Mundial e o “crash” da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, contribuíram para alterar irremediavelmente o status quo ante. “Estavam em ebulição os direitos sociais que deram origem ao Estado social: o direito à educação, à saúde, ao trabalho [...]”[14].

Consolidaram-se, então, os direitos fundamentais de segunda dimensão. Vigia o Estado de bem-estar social, o qual pressupunha uma ação estatal intervencionista, de índole material ou normativa, a fim de promover os benefícios e anseios sociais que o capitalismo liberal não deu conta de suprir[15].

Foi necessário mudar o perfil do Estado, que passou de mero expectador para fomentador e garantidor de direitos sociais.

Chamam-se direitos positivos ou prestacionais, porque o Estado precisa intervir e fornecer os serviços básicos para a sociedade visando equacionar as desigualdades materiais.

Note-se que a propriedade, apesar de originalmente ser um direito fundamental de 1ª dimensão também tem um viés social. Ora: é através da garantia do direito de propriedade imobiliária que se pode concretizar um dos direitos sociais inseridos no rol do caput do art. 6º da Constituição: o direito à Moradia[16].

Ademais, uma série de institutos atuais, ligados ao direito urbanístico e às formas de intervenção do Estado na propriedade privada estão relacionados com este aspecto prestacional do Estado.

Se por um lado a Constituição assegura no art. 5º, XXII, o direito à propriedade, logo no inciso seguinte estabelece que esta propriedade deverá atender à sua função social.

Se esta função social da propriedade não for observada, leia-se, se o proprietário de imóvel urbano não der ao bem destinação compatível com as diretrizes do plano diretor ou se o proprietário de área rural não a tornar produtiva dentro de parâmetros estabelecidos pelo Poder Público, “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.[17]

1.1.3 3ª dimensão – Fraternidade

Na terceira dimensão de direitos fundamentais consolidam-se os direitos difusos dos povos, que estão relacionados com o ambiente, com o consumidor e com o desenvolvimento.

Em evolução constante, a sociedade passou a clamar por direitos em que o titular deixa de ser o indivíduo e passa a ser a coletividade: são os chamados direitos transindividuais, difusos ou coletivos. “Nesta ordem, veio a proteção ao meio ambiente, aos consumidores e [...] ‘os direitos econômicos (salário mínimo, proteção econômica dos menores, desvalidos, idosos, etc)’ ”[18].

A respeito desta 3ª dimensão de direitos, Geilza Diniz[19] aponta o ideal de fraternidade como dotado de uma amplitude maior que as gerações que o antecederam. Tratam-se de “direitos transindividuais, direitos dos povos e da solidariedade: paz, autodeterminação, desenvolvimento – direitos coletivos e difusos: consumidor, meio ambiente, criança”.

Na esfera do meio ambiente, insere-se o direito ao meio ambiente artificial propício ao desenvolvimento humano. O direito urbanístico, na medida em que se destina a ordenar o desenvolvimento da funções sociais das cidades e garantir o bem-estar de seus habitantes, pode, pois, ser considerado um direito de terceira dimensão.

Fica evidente nesta 3ª dimensão a proteção à pessoa humana como um tema global. No pós-segunda guerra mundial foram criadas instituições (ONU) e publicadas cartas de direitos (Declaração Internacional dos Direitos Humanos) demonstrando esta preocupação universal.


2. a função social da POSSE e da propriedade e Os instrumentos de Regularização Fundiária no Ordenamento Jurídico Brasileiro

No Título da Ordem Econômica e Financeira, a Constituição da República destinou o Capítulo II à Política Urbana. Em seu art. 182, reserva especial importância ao Poder Público Municipal ao responsabilizá-lo pela execução da política de desenvolvimento urbano, que tem por “objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.[20]

O Estatuto das Cidades, Lei 10.257/2001 regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição da República de 1988 e estabeleceu as diretrizes básicas da política urbana no pais, elegendo como instrumentos básicos o plano diretor e a disciplina do parcelamento, uso e ocupação do solo.

Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:

I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;

II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;

III – planejamento municipal, em especial:

a) plano diretor;

b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo [...][21];

Já no que concerne à regularização Fundiária de Assentamentos Urbanos, o Capítulo III da Lei do Programa Minha Casa, Minha Vida passou a ser a verdadeira lei de referência no ordenamento jurídico atual.

Sem fechar os olhos para a situação dos assentamentos urbanos consolidados, a Lei prevê no seu art. 52 que se os assentamentos forem anteriores à 08/07/2009 (data de publicação da Lei), “o Município poderá autorizar a redução do percentual de áreas destinadas ao uso público e da área mínima dos lotes definidos na legislação de parcelamento do solo urbano”[22]. Em outras palavras, o Legislador relativiza requisitos urbanísticos para viabilizar a regularização dos núcleos urbanos já instalados, permitindo aos seus moradores o acesso à titulação de suas propriedades.

Também considerando que regularizar uma área muito extensa é um procedimento complexo que gera custos consideráveis e poderia atrasar ou inviabilizar a conclusão do projeto do auto de demarcação, a Lei prevê no § 3º  do art. 51 que “a regularização fundiária pode ser implementada por etapas”.

Vale mencionar que o Capítulo III que trata da Regularização Fundiária de Assentamentos Urbanos possui uma seção destinada à Regularização Fundiária de Interesse Social, em que será indispensável a aprovação do projeto pelo Município, e também uma seção que trata da Regularização Fundiária de Interesse Específico em que serão necessários o aval da autoridade licenciadora, bem como a emissão das respectivas licenças urbanística e ambiental.

A Lei define regularização fundiária de interesse social como sendo aquela destinada a formalizar assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por população de baixa renda, nos seguintes casos:

“a) em que a área esteja ocupada, de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5 (cinco) anos; 

b) de imóveis situados em ZEIS; ou 

c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas de interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social;”[23]

Já o conceito de regularização fundiária de interesse específico vem por exclusão: “quando não caracterizado o interesse social”[24] nos termos acima.

O Legislador atribuiu legitimidade a diversos interessados para promover a regularização fundiária dos assentamentos urbanos. A atribuição engloba desde a apresentação ao Oficial do Registro de Imóveis do auto de demarcação urbanística para sua averbação até todos os demais atos necessários à regularização fundiária, inclusive os de registro.

Os legitimados estão previstos no art. 50 da Lei do PMCMV. Vejamo-lo:

“Art. 50.  A regularização fundiária poderá ser promovida pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios e também por: 

I – seus beneficiários, individual ou coletivamente; e 

II – cooperativas habitacionais, associações de moradores, fundações, organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público ou outras associações civis que tenham por finalidade atividades nas áreas de desenvolvimento urbano ou regularização fundiária”. 

Note-se que a legitimação abrange desde entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) até os beneficiários direitos, individual ou coletivamente, sem excluir as entidades coletivas e organizações fundacionais ou associativas que tenham entre seus objetivos a atuação na área de regularização fundiária.

Fica evidente, pois, que a atuação do Legislador teve como desiderato a regularização de áreas ocupadas por famílias de baixa renda, tendo como norte a função social da propriedade e da posse. Em outras palavras, o Estado está preocupado em fornecer titulação aos possuidores de bens imóveis em áreas de ocupação irregular como ocorre nas favelas brasileiras.

Esta preocupação não é recente, e fica bem evidenciada se considerarmos os dois incisos inseridos no art. 1.225 do Código Civil pela Lei 11.481 de 2007. A concessão de uso especial para fins de moradia e a concessão de direito real de uso são direitos reais pensados para atribuir alguma segurança jurídica aos titulares do domínio útil de bens públicos não passíveis de aquisição por usucapião.

Note-se, porém, que a Lei 11.977 estabelece que os imóveis abrangidos no auto de demarcação urbanística podem estar inseridos em uma das seguintes situações:

“I - domínio privado com proprietários não identificados, em razão de descrições imprecisas dos registros anteriores; 

II - domínio privado objeto do devido registro no registro de imóveis competente, ainda que de proprietários distintos; ou

III - domínio público”.[25]

Assim, ainda que se trate de bem de titularidade indefinida ou de bem de domínio público, a lei autoriza sua inserção no projeto de regularização fundiária de interesse social.

É neste norte que, muito além de considerar apenas as teorias subjetiva e objetiva da posse, com seus expoentes e Savigny e Iherin, o Código Civil de 2002 abraçou a Teoria Social da Posse, em que a posse seria formada pelo conjunto de corpus (poder de fato sobre a coisa) e Função Social.

A opção do Legislador fica bem evidenciada pelos artigos 1.238, parágrafo único, 1.242, parágrafo único e 1.228 parágrafos 4º e 5º. Nos dois primeiros casos temos as usucapiões extraordinária e ordinária com prazo reduzido quando estiver presente a posse-trabalho. Já nos parágrafos do 1.228 temos o instituto da desapropriação judicial particular, mediante indenização.

No que concerne à regularização fundiária de interesse social da Lei 11.977/2009, vale dizer que o “Estado-providência” e intervencionista típico dos direitos fundamentais de segunda dimensão fica evidente quando se analisa o art. 55 que atribui ao Poder Público a implantação do sistema viário e de infraestrutura básica  previstos no  § 6º do art. 2º da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, ainda que a regularização seja promovida por outro legitimado.

E mais, como o objetivo é fornecer dignidade aos moradores destas áreas favelizadas até então esquecidas pelo Poder Público, “a realização de obras de implantação de infraestrutura básica e de equipamentos comunitários pelo poder público, bem como sua manutenção, pode ser realizada mesmo antes de concluída a regularização jurídica das situações dominiais dos imóveis”.[26]

2.1 A Função Social da Propriedade

A propriedade privada sempre foi um direito chave no sistema jurídico, visto por muito tempo como viés de absolutividade, tal qual um direito intocável que só poderia ser atingido em casos extremos, com intervenção judicial.

Ao mesmo tempo em que garante o direito de propriedade[27], a Constituição da República limita seu exercício ao determinar que “a propriedade atenderá a sua função social”[28];

Com a introdução de institutos como o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, IPTU progressivo no tempo, desapropriação com pagamento em títulos, usucapião especial de imóvel urbano, direito de superfície, direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir, entre outros, o Estatuto das cidades passou a dar tutela diferenciada à propriedade privada. Após o transcurso do século XX sobre influência de viés fortemente protetivo da propriedade privada, nos termos do Código Civil de 1916, a propriedade socialmente útil passou a se impor com o advento da Constituição Cidadã, do Novo Código Civil e do Estatuto das Cidades.

Destro deste contexto de mudança paradigmática no direito registral e nos diretos reais brasileiros, em que a primazia da proteção à propriedade privada passa a ceder espaço para a função social da propriedade é que se pretende estudar a usucapião administrativa e os institutos correlatos.

Nos dizeres de Sérgio Jacomino, ao comentar a palestra proferida pelo desembargador Venício Salles do TJSP, a Lei 11.977/2009 tem um enorme potencial revolucionário no âmbito jurídico:

“A Lei 11.977/2009 concebe uma novidade capaz de provocar muita disputa e discussão no mundo jurídico, pois estrutura uma forma rápida e aparentemente eficaz de usucapião administrativa, que prescinde, por óbvio, de qualquer intervenção judicial, incumbindo à Administração Pública, mediante impulso próprio, assim como de interessados e entidades privadas (art. 50), prerrogativas para, através da demarcação e da legitimação de posse – instrumentos voltados à outorga da titulação dominial – , declarar o direito de propriedade privada beneficiando população de baixa renda.”[29]

Note-se que o instituto da Usucapião Administrativa não representa afronta injustificada ao direito de propriedade. Ao contrário, insere-se neste contexto em que o direito de propriedade deve ser exercido tendo em vista sua função social.

“A usucapião administrativa representa uma forma para o reconhecimento do perecimento do direito de propriedade pela inércia ou descaso de seu titular, por exigir que o proprietário seja notificado, pessoal ou fictamente, quando da averbação do auto de demarcação, podendo promover impugnação. Ademais, dispõe de cinco anos, contados do registro da legitimação de posse, para reclamar ou reivindicar sua propriedade.”[30]

Vale dizer que não é de hoje que o ordenamento jurídico atenta para a posse como uma situação fática de poder exercido por uma pessoa sobre um bem para juridicizar esta situação concreta transformando-a em direito.

Há mais de um século e meio, a Lei nº 601 de 1850 tratou de regularizar a situação dos sesmeiros ilegítimos, posseiros ou simples ocupantes de terras sem título hábil. Através da sanatio in radice os sesmeiros foram ‘revalidados’ e os posseiros ‘legitimados’ desde que nas terras mantivessem sua moradia habitual tornando-a produtivas.  [31]

Note-se que a ideia de posse-trabalho e destinação econômica da propriedade já estava presente naquele momento, e com a usucapião administrativa não é diferente.

Sobre a autora
Gabriela Lucena Andreazza

Advogada, professora de Direito Notarial e Registral.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDREAZZA, Gabriela Lucena. Usucapião administrativa: reflexos no registro de imóveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3387, 9 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22767. Acesso em: 23 dez. 2024.

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