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Sociedade civil, políticas públicas e participação democrática

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Agenda 14/10/2012 às 08:45

6O Papel dos Conselhos na Política de Direitos Humanos

Atuando no âmbito da formulação e implementação das políticas na esfera governamental, assim como no planejamento e na fiscalização das ações, os conselhos são órgãos concebidos para influir no Estado mediante as competências conferidas pelas leis reguladoras. Trata-se, portanto, de espaços públicos, compostos de forma plural e paritária por atores governamentais e não governamentais. Considerando-se sua natureza deliberativa, os conselhos têm como função a formulação e o controle da execução das políticas públicas setoriais (TATAGIBA, 2002).

Podem-se destacar três características primordiais que distinguem os conselhos de políticas de outras experiências de conselhos:

QUADRO 2– Características dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas

Característica

Descrição

Composição paritária e plural

Representação de organizações da sociedade civil e agências do Estado, portadores de valores e interesses distintos e até mesmo antagônicos

Processo dialógico

Instrumento de mediação dos conflitos inerentes à natureza dos interesses distintos em jogo

Negociação de forma pública e aberta, com argumentos passíveis de serem sustentados publicamente a partir de princípios éticos elementares relacionados à vida pública

Instâncias deliberativas

Competência legal para formulação e fiscalização da implantação de políticas, buscando a democratização da gestão

Os conselhos gestores têm força legal para influir no processo de produção de políticas públicas, redefinindo prioridades, recursos orçamentários e públicos a serem atendidos, na direção da partilha do poder entre Estado e sociedade civil

Fonte: baseado em Tatagiba (2002, p. 54).

Cabe mencionar que, além dos conselhos gestores de políticas públicas, existem outros tipos de conselhos, que, contudo, não gozam da mesma prerrogativa nem do mesmo papel. Os conselhos de programas, por exemplo, são vinculados a ações governamentais concretas, com função executiva no âmbito do respectivo programa. Já os conselhos temáticos são criados de forma independente de um sistema ou legislação nacional (em geral, por iniciativa local ou estadual). Embora tenham diferentes formatos, são bastante próximos aos conselhos de políticas, exceto pelo caráter deliberativo e pela obrigatoriedade.

No que tange à política estadual de direitos humanos, pode-se ressaltar o papel exercido pelos três tipos de conselho. Os conselhos nas áreas de saúde, criança e adolescente, cidades e meio ambiente têm exercido papel fundamental na gestão, execução e fiscalização dessas políticas setoriais. Conselhos temáticos, como de direitos humanos, idosos, pessoas com deficiência, mulheres e igualdade racial, embora não tenham caráter deliberativo, vêm se constituindo como o principal espaço de discussão pública das políticas públicas e de interação entre Estado e sociedade civil. Já os conselhos de programas, como o conselho gestor do Programa Bolsa Família e os conselhos deliberativos dos programas de proteção à pessoa ameaçada, têm exercido o papel de manutenção, discussão, direcionamento e fiscalização dos programas governamentais.

Na perspectiva dos conselhos, devem ser ressaltados dois desafios que têm se apresentado com maior frequência em diversas análises e pesquisas: (i) a efetividade da deliberação, relacionada diretamente com a partilha do poder (AVRITZER; PEREIRA, 2005), e (ii) a representação da sociedade civil (TATAGIBA, 2002; DAGNINO, 2002; SÖRJ, 2004; MIGUEL, 2003).

Sempre que se analisa a efetividade dos conselhos, ainda que se trate de conselhos gestores, passa-se pela discussão de seu poder deliberativo ou, em outras palavras, em que medida o Estado está disposto a partilhar seu poder de decisão (TATAGIBA, 2002). Claro que a efetividade do conselho não está vinculada somente ao seu poder de deliberação, mas as funções de qualquer conselho gestor são bastante reduzidas quando o Poder Público não o reconhece como fórum legítimo de formulação e controle sobre as políticas públicas setoriais, temáticas ou específicas.

Quando examinamos a natureza dos conflitos relatados nos estudos de caso é possível afirmar que o seu foco mais generalizado é a partilha efetiva do poder. [...] Essas diferentes concepções se manifestam, paradigmaticamente, de um lado, na resistência dos Executivos em compartilhar o seu poder exclusivo sobre decisões referentes às políticas públicas. De outro [sic], na insistência daqueles setores da sociedade civil em participar efetivamente dessas decisões e concretizar o controle social sobre elas. Essa polarização está claramente presente nos Conselhos Gestores e no Conselho Cearense dos Direitos da Mulher (CCDM), e naquelas relações ONGs – Estado onde [sic] as funções de decisão e execução de políticas estão claramente separadas, recaindo sobre essas organizações apenas as últimas [i.e. execução]. Assim, o poder deliberativo previsto para os Conselhos Gestores com frequência se transforma na prática em uma função consultiva ou até mesmo apenas legitimadora das decisões tomadas nos gabinetes. (DAGNINO, 2002, p. 282-283, grifos como no original)

A discussão da partilha efetiva do poder pode ser mascarada por outras práticas, como a presidência do conselho e a definição da pauta das reuniões. Se a presidência é ocupada pelo Executivo (como comumente ocorre nos conselhos de saúde, em que, em geral, o secretário de saúde é presidente nato) e se a pauta da reunião é definida pelo presidente, pouco espaço é concedido para que a sociedade civil possa fomentar outros debates e alcançar deliberações contrárias aos interesses do poder público (FARIA, 2007). Por outro lado, quando a presidência do conselho é eleita em plenária e/ou a construção da pauta é descentralizada – seja proposta pelos conselheiros ou por uma mesa diretora mais ampliada –, há de fato uma possibilidade de discussão e deliberação para além da mera função consultiva ou legitimadora das decisões do Executivo (TATAGIBA, 2002).

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De maneira associada a essas discussões, está o reconhecimento da função deliberativa dos conselhos e de que forma é possível efetivá-la. Uma questão não solucionada nem pelos teóricos participacionistas nem pelos doutrinadores jurídicos consiste em como o conselho pode garantir que uma decisão adotada em plenária pelos conselheiros seja respeitada pelo Estado. Há, de fato, uma reduzida capacidade deliberativa desses espaços, a qual pode ser justificada de diversas formas, tais como:

[a] centralidade do Estado na elaboração da pauta, falta de capacitação dos conselheiros, problemas com a representatividade, dificuldade em lidar com a pluralidade de interesses, manutenção de padrões clientelistas na relação entre Estado e sociedade civil, recusa do Estado em partilhar o poder etc. Para além desses motivos, a análise da bibliografia vincula ainda a fragilidade deliberativa dos conselhos à sua ambígua inserção no conjunto da institucionalidade e à questão da existência e da efetividade dos fundos. (TATAGIBA, 2002, p. 94).

Tais problemas constituem, ainda, obstáculo de difícil transposição pela maior parte dos conselhos existentes no Brasil, inclusive os tidos como conselhos gestores. Tais conselhos vêm exercendo uma atuação mais formal do que realmente deliberativa e tão somente legitimam decisões e ações do Executivo na gestão das políticas públicas.

Um segundo desafio a ser apresentado acerca da efetividade dos conselhos refere-se à representação da sociedade civil – o que Lüchmann (2007) chama de “representação nas experiências de participação”. Há, inevitavelmente, que se questionar o fundamento de legitimidade das organizações da sociedade civil que atuam nos conselhos, sem que tal debate, contudo, invalide a atuação e o papel da sociedade civil salientada por Habermas (FARIA, 2000).

Considerando esse papel habermasiano de “dar voz” para a população e transmitir os problemas da esfera privada para a esfera pública, a discussão que ora se tangencia se refere ao fator de legitimação dessas organizações representadas no conselho e, conjuntamente, à accountability necessária para todos os atores que se apresentam na esfera pública. Em nome de quem e o que fazem são questões que devem ser claramente apresentadas pelas organizações da sociedade civil e pelos demais movimentos sociais, sob risco de terem sua atuação questionada e minorada (SÖRJ, 2004; AVRITZER, 2007).

Nos estudos relacionados aos conselhos – muitos dos quais com enfoque nos conselhos gestores, haja vista a sua obrigatoriedade e seu papel legalmente definido –, tem-se constatado um frágil vínculo entre os conselheiros não governamentais e suas entidades, as quais se preocupam mais em eleger seus representantes do que de fato pautar uma atuação junto ao conselho gestor. De certa forma, isso reflete a falta de homogeneidade entre as organizações ou entre o que se convencionou chamar de “terceiro setor”, conforme atesta o então presidente da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG):

Uma das dificuldades em compreender a natureza e o papel das ONGs está no fato de que, sob uma mesma nomenclatura – organizações não governamentais –, podemos encontrar uma infinidade de entidades com histórias, tamanhos, missões, modelos organizacionais e mecanismos de sustentabilidade completamente diferentes uns dos outros. Por se definirem como não Estado e por suas características de organizações sem fins lucrativos – sendo um não mercado, portanto –, cabem aí gatos e sapatos. A mesma dificuldade pode ser encontrada sob o ponto de vista jurídico. Elas se constituem juridicamente como associações civis de direito privado sem fins de lucro ou como fundações, uma vez que não há um marco legal que contemple essa diversidade das ONGs. Por esses critérios, também, a coisa não ajuda muito. Estão juntas nessas categorias jurídicas coisas muito distintas: as escolas católicas, hospitais, organizações filantrópicas, times de futebol, associações de moradores, entidades beneficentes, grupos políticos e tantas outras entidades, todas igualmente privadas e sem fins lucrativos. (HADDAD, 2001)

Tem-se verificado que as opiniões e debates no âmbito do conselho correspondem mais à opinião pessoal do conselheiro do que a uma posição institucional debatida e construída coletivamente com sua entidade de origem (TATAGIBA, 2002). De maneira geral, tal discussão reflete o debate existente acerca da representatividade das ONGs, haja vista que vêm ocupando espaços de representação junto aos órgãos públicos e às políticas públicas, falando em nome de coletividades sem existir qualquer grau de certeza de que as ONGs têm algum diálogo efetivo com os setores da sociedade que dizem representar (GOHN, 2005).

De certa forma, pode-se também constatar que essa fragilidade e falta de representação são percebidas pelo Estado e utilizadas como forma de esvaziar o papel dos conselhos, já que inexiste um trabalho de mobilização efetivo que sustente o “mandato” do conselheiro:

Houve uma centralização da relação entre o Conselho e o Governo do Estado, ficando para o segundo plano a busca da legitimidade na relação com a opinião pública, especialmente a socialização de informações e a formação sobre os direitos da criança e do adolescente. Com isto, persistiu a gestão tradicional e o conselho foi reduzido à sua existência formal. (MORAES, 1998, p. 67)

Essa relação entre Estado e sociedade civil nos conselhos também é determinada pela forma como são escolhidas as entidades de origem dos conselheiros, o que demonstra como vêm sendo constituídas a representação e a legitimidade no interior dos conselhos. Não se pode negar, todavia, que os conselhos são práticas recentes no Brasil, sendo necessário o rompimento com a tradição centralizadora e pouco democrática que caracterizou o planejamento, execução, controle e avaliação das políticas públicas no Brasil.7Considerações Finais As propostas de democracia participativa visam ressignificar a prática democrática, tornando a deliberação pública consolidada em esferas públicas e criando mecanismos de accountability nos regimes burocráticos modernamente instalados. A sociedade civil organizada, nesse sentido, apresenta-se como esse espaço público não estatal capaz de captar os “ecos” dos problemas sociais na esfera privada e debatê-los na esfera pública.

No caso brasileiro, a redemocratização ocorrida pós-1985 tem íntima e estreita relação com os movimentos sociais, destacando-se diversas experiências participativas exitosas que foram implantadas a partir da Constituição Federal de 1988. Os conselhos, dentre tais experiências, figuram-se como instituições híbridas, compostas por representantes governamentais e não governamentais e capazes de intervir diretamente no planejamento, gestão, execução, fiscalização e controle das políticas públicas.

Se a democracia é o melhor regime para a efetivação dos direitos humanos, a gestão, execução e implementação da política de direitos humanos devem contar com o maior grau de participação democrática possível. De nada adianta o titular da pasta ou os gestores dos órgãos públicos almejar(em) uma interlocução profunda com a sociedade civil organizada se os atores responsáveis pela execução direta não se filiam a esse entendimento ou sequer têm compreensão dos objetivos envolvidos na proposta. Se os debates da teoria democrática perpassam a radicalização da democracia, compreendendo os limites da representação e implantando espaços participativos, a sociedade civil organizada precisa se inserir no fomento de experiências participativas junto às políticas públicas.

A democratização da representação social passa pela interação com outros atores responsáveis pela gestão de políticas, como os conselhos e centros de pesquisa. A ampliação das experiências participativas tem partido sempre da sociedade civil organizada, mas o papel do Estado no estímulo, informação e interação precisa ser referenciado – em especial, no âmbito da efetivação dos direitos sociais e na tutela do interesse público.


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NOTAS

[1]A ideia de Sul aqui discutida se refere ao Sul político, isto é, países da América Latina, Ásia e África. Esse conceito vem sendo trabalhado em espaços de mobilização, como o Fórum Social Mundial (www.fsm.org.br) e o Colóquio Internacional de Direitos Humanos (www.conectas.org/coloquio).

[2]A paridade aqui pode ser entre Estado e sociedade civil ou entre certos segmentos representados dentro do conselho (como no caso dos conselhos da Saúde e dos conselhos da Assistência Social).

[3]Nos conselhos das Cidades, há representação dos empresários e, embora de acordo com o conceito de sociedade civil aqui apresentado o mercado esteja fora da sociedade civil organizada, tais conselheiros também são eleitos nos espaços das conferências das Cidades.

Sobre o autor
Marcelo Dayrell Vivas

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2004). Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Brasília (2009). Especialista em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2010). Atualmente, é assistente jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo, em exercício na Promotoria de Justiça de Bertioga.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIVAS, Marcelo Dayrell. Sociedade civil, políticas públicas e participação democrática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3392, 14 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22782. Acesso em: 5 nov. 2024.

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