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A linha tênue que distingue o dolo eventual da culpa consciente nos homicídios de trânsito

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Agenda 14/10/2012 às 14:10

2 CULPA

2.1. CONCEITO

As relações humanas, em busca de maior harmonia, ordem e civilidade, são direcionadas e amparadas por mecanismos legais que visam coibir lesões a terceiros e a coletividade. Desta feita, o homem não pode fazer o que bem entende, como bem entende e aonde quer, caso contrário gerar-se-ia o caos social. Para evitar a desordem, a vida em sociedade impõe regras que, inobstante a classe social, cor ou credo, devem ser obedecidas por todos.

Assim, ponderando o preceito primário de que o homem é um ser cercado de constantes perigos, espera-se que todos, na direção de suas condutas, observem o dever de cuidado objetivo imposto, conforme bem ensina o princípio da confiança.

Trazendo o conceito legal de crime culposo, assim dispõe o inciso II do artigo 18 do Código Penal Brasileiro: “[...] culposo quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.”

Nesta esteira,

a culpa é a inobservância do dever objetivo de cuidado manifestada numa conduta produtora de um resultado não querido, objetivamente previsível [...]. O núcleo do tipo de injusto nos delitos culposos consiste na divergência entre a ação efetivamente praticada e a que devia realmente ter sido realizada, em virtude da observância do dever objetivo de cuidado (BITENCOURT, 2004, p. 270/271).

Para Mirabete (2008, v. I, p. 136), o crime culposo é “a conduta voluntária (ação ou omissão) que produz resultado antijurídico não querido, mas previsível, e excepcionalmente previsto, que poderia, com a devida atenção, ser evitado.”.

Portanto, verifica-se que nos crimes culposos, em regra, a finalidade do agente é voltada à prática de um fim lícito, e por um defeito na forma como se obtém essa finalidade, seja de maneira negligente, imprudente ou imperita, subsiste a quebra de um dever objetivo de cuidado que, consequentemente, acarreta lesão a um bem juridicamente tutelado, ou seja, “na conduta culposa, os meios escolhidos e empregados pelo agente para atingir a finalidade lícita é que foram inadequados ou mal utilizados.” (GRECO, 2008, v. I, p. 98).

Isto posto, para fins didáticos, conceitua-se, no presente estudo, crime culposo como a conduta humana voluntária produtora de um resultado lesivo não querido, mas previsível, que poderia ter sido evitado com a atenção necessária.

2.2 ELEMENTOS DO TIPO INJUSTO CULPOSO

Segundo os ensinamentos de Rogério Greco (2008, p. 183/184), constituem elementos do tipo injusto culposo: 1 Conduta humana voluntária; 2 Inobservância de um dever objetivo de cuidado; 3 Resultado lesivo não querido; 4 Nexo de causalidade; 5 Previsibilidade; 6 Tipicidade.

Apesar de alguns doutrinadores classificarem os elementos do tipo injusto culposo de forma diversa da utilizada no presente trabalho, o produto da soma de todos os elementos trazidos pelas doutrinas, em regra, é o mesmo.

Almejando fins didáticos e por entendermos a forte ligação entre os elementos “resultado lesivo não querido” e “nexo de causalidade”, tratá-los-emos como se fossem um só: “Resultado Naturalístico e Nexo Causal”.

2.2.1 Conduta humana voluntária

Para que se entenda a denominada “conduta humana voluntária” nos crimes culposos, faz-se necessário assimilar, por primeiro, que esta não é concebida sem vontade e não existe vontade sem finalidade.

Assim, chega-se a conclusão de que toda conduta tem uma finalidade, seja ela lícita ou não. Nos crimes dolosos, como já visto, a conduta do agente é direcionada à prática de um fim ilícito. De outro giro, no crime culposo, em regra, a conduta do agente é direcionada à prática de um fim lícito.

Elucidando o assunto em comento, Zaffaroni (2011, v. I, p. 441) preleciona:

O tipo culposo não individualiza a conduta pela finalidade e sim porque, na forma em que se obtém essa finalidade, viola-se um dever de cuidado, ou seja, como diz a própria lei penal, a pessoa, por sua conduta, dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Desta feita, nos crimes culposos, o agente direciona sua conduta à prática de um fim lícito que, por um defeito na execução de tal conduta, dá causa a um resultado lesivo não querido, mas previsível.

Portando, a conduta humana voluntária do tipo penal culposo atinge seu ápice quando a busca da finalidade do agente é distorcida pela inobservância de um dever objetivo de cuidado, conforme demonstra o seguinte exemplo trazido por Rogério Greco (2008, v. I, p. 198):

Alguém, querendo chegar mais cedo em sua residência para assistir a uma partida de futebol, imprime velocidade excessiva em seu veículo e, em virtude disso, atropela e causa a morte de uma criança que tentava efetuar a travessia pela qual o automóvel do agente transitava em alta velocidade.

Analisando friamente o conceito trazido acima e considerando que o agente, em momento algum, aceitou o resultado, extrai-se que a finalidade deste era lícita (chegar mais cedo em sua residência para assistir a um jogo de futebol), todavia, o meio pelo qual buscou alcançar tal finalidade demonstrou-se inadequado, posto a inobservância do dever objetivo de cuidado que lhe era imposto (trafegar em via pública em alta velocidade), restando configurado, em tese, o crime de homicídio culposo.

2.2.2 Inobservância de um dever objetivo de cuidado

 Para a maioria dos autores, o elemento consistente na “inobservância de um dever objetivo de cuidado” constitui a essência dos delitos culposos, sob pena de atipicidade de qualquer conduta. “É a inobservância do cuidado objetivo exigível do agente que torna a conduta antijurídica.” (MIRABETE, 2008, v. I, p. 137).

Como já visto, toda conduta humana possui uma finalidade, sendo que o divisor de águas entre as condutas culposas e dolosas reside no fim almejado pela prática da conduta. Quando a finalidade do agente dirige-se a um fim ilícito, em regra, fala-se em crime doloso. Quando a finalidade do agente dirige-se a um fim lícito que, pela quebra de um dever objetivo de cuidado, da causa a um resultado lesivo não querido, tampouco assumido, fala-se em crime culposo.

Na sociedade, todos os indivíduos partem da premissa do respeito recíproco às regras de comportamento que lhes são impostas. Tal premissa tem sua origem assentada no “princípio da confiança”, que impõe que todos os membros da sociedade, na direção de suas condutas, atendam às regras de cuidado específicas a cada caso, supondo que tal atenção será sempre observada por seus semelhantes, pois “quem vive em sociedade não deve, com uma ação irrefletida, causar dano a terceiro, sendo-lhe exigido o dever de cuidado indispensável a evitar tais lesões.” (MIRABETE, 2008, v. I, p. 137).

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Assim, dever objetivo de cuidado são as regras de comportamento, escritas ou não, impostas a todos os membros da sociedade que, com fundamento no princípio da confiança recíproca, devem ser atendidas, como bem explica Bitencourt (2004, p. 274):

Na vida em sociedade, é natural que cada indivíduo se comporte como se os demais também se comportassem corretamente. Para a avaliação, in concreto, da conduta correta de alguém, não se pode, de forma alguma, deixar de considerar aquilo que, nas mesmas circunstâncias, seria lícito esperar de outrem.

Na lição de Zaffaroni (2011, v. I, p. 443), “a cada conduta corresponde um dever de cuidado”, ou seja, um é o dever de cuidado do condutor de veículos, outro é o dever de cuidado do médico cirurgião, bem como outro é o dever de cuidado da dona de casa que coloca um pesado vaso no parapeito de seu apartamento situado no quarto andar de um edifício.

Complementando tal entendimento, Greco (2008, v. I, p. 199) pondera:

Quem precisa de norma expressa para considerar perigosa a conduta daquele que coloca um pesado vaso de flores no parapeito de uma janela localizada no 13º andar de um prédio, ou daquele que avança um sinal de trânsito de parada obrigatória, o mesmo daquele pai, no exemplo de Ney Moura Teles, que deixa sua arma carregada ao alcance de seus filhos menores? Todas essas condutas devem ser evitadas porque infringem um dever de cuidado.

Em muitos casos, os deveres de cuidado objetivo encontram guarida na legislação, como, por exemplo, no Código de Trânsito, que impõe regras regulamentando o tráfego de veículo, facilitando a verificação da norma violada quando da prática de determinada conduta lesiva.

Todavia, diante da impossibilidade de regulamentação de todos os possíveis “deveres de cuidado”, inúmeras condutas são idôneas a romper o cuidado objetivo.

Nestes casos, devemos nos socorrer às normas sociais, que são as práticas exigíveis ao chamado “homem médio”, como bem ensina Mirabete (2008, v. I, p.137):

Deve-se confrontar a conduta do agente que causou o resultado lesivo com aquela que teria um homem razoável e prudente em lugar do autor. Se o agente não cumpriu com o dever de diligência que aquele teria observado, a conduta é típica, e o causador do resultado terá atuado com imprudência, negligência ou imperícia

2.2.3 Resultado naturalístico e nexo causal

Inobstante a presença dos elementos “conduta humana voluntária” e “violação de um dever objetivo de cuidado”, não há de se falar em crime culposo quando da violação de tais elementos inexistir a causação de um resultado naturalístico.

De igual forma, mesmo que sobrevenha qualquer resultado naturalístico, não existirá crime culposo se faltar nexo causal entre a conduta do agente e a causação do resultado, ou seja, “deve haver uma relação de determinação entre a violação do dever de cuidado e a causação do resultado, isto é, que a violação do dever de cuidado deve ser determinante do resultado.” (ZAFFARONI, 2011, v.I, p. 447).

Nessa esteira, o agente que, praticando uma conduta totalmente imprudente, negligente ou imperita (inobservância do cuidado objetivo), não dá causa a qualquer resultado naturalístico (aquele capaz de modificar o mundo exterior), não incide, em regra, em qualquer delito culposo.

Tomemos como exemplo o seguinte caso: Tício, conduzindo um veículo automotor em velocidade compatível com determinação legal, ultrapassa um sinal vermelho na avenida principal da cidade onde morava, todavia, nada ocorre.

O exemplo acima ilustrado demonstra didaticamente que, apesar de Tício ter incidido em infração administrativa (ultrapassar sinal vermelho), não houve a produção de qualquer resultado naturalístico relevante ao direito penal, mesmo tendo o agente praticado sua conduta com total inobservância ao cuidado objetivo.

Todavia, existem casos em que as condutas praticadas pelo agente, mesmo que careçam de resultado naturalístico e nexo causal, por si só, constituem crime, porém, não poderá se falar em culpa, como no caso do condutor de veículo que dirige embriagado: mesmo que da conduta deste motorista não sobrevenha nenhuma resultado naturalístico, conduzir veículo automotor com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer substância análoga, pois, constitui o crime tipificado no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro.

De outro giro, a produção de um resultado naturalístico, por si só, não é o bastante na configuração do crime culposo. Necessário se faz que o resultado produzido nutra pleno nexo causal com a conduta do agente. Em outras palavras, “é indispensável que o resultado seja conseqüência da inobservância do cuidado devido, ou, em outros termos, que este seja a causa daquele.” (BITENCOURT, 2004, p. 276).

Para detectar a existência do nexo causal entre a violação do cuidado objetivo e o resultado produzido, Zaffaroni (2011, v. I, p.447) ensina que:

Devemos imaginar a conduta cuidadosa no caso concreto e, se o resultado não tivesse sobrevindo, haverá uma relação de determinação entre a violação do dever de cuidado e o resultado; ao contrário, se, ainda neste caso, o resultado tivesse ocorrido, não existirá relação de determinação entre a violação do cuidado devido e o resultado.

Corroborando, no mesmo sentido, ensina e ilustra Mirabete (2008, v. I, p. 138):

Não haverá crime culposo mesmo que a conduta contrarie os cuidados objetivos e se verifica que o resultado se produziria da mesma forma, independentemente da ação descuidada do agente. Assim, se alguém se atira sob as rodas do veículo que é dirigido pelo motorista na contra-mão de direção, não se pode imputar a este o resultado (morte suicida). Trata-se, no caso, de mero caso fortuito.

2.2.4 Previsibilidade

Um dos principais elementos caracterizadores do tipo penal culposo, como já visto, é a inobservância de um dever objetivo de cuidado. Todavia, para que tal dever seja realmente observado pelo agente quando da prática de uma determinada conduta, é imprescindível que exista certa previsibilidade de que um resultado gravoso possa ocorrer caso tal dever não seja observado, pois a previsibilidade é “a possibilidade de prever o resultado conforme o conhecimento do agente.” (MIRABETE, 2006, v. I, p. 138).

Assim, quando da prática de determinada conduta exige-se que o agente, tomando como norte, em regra, a percepção do chamado homo medius, pudesse prever as consequências de seus atos, adotando, desta feita, o dever de cuidado cabível.

Cabe ressaltar que previsibilidade não é sinônimo de previsão. Nesta o agente realmente visualiza a possibilidade de um resultado, enquanto naquela o agente deveria prever, mas não previu.

Tal percepção se faz pertinente na distinção entre duas modalidades de culpa, quais sejam: culpa inconsciente – na qual o resultado era previsível, mas não foi previsto, ou seja, “o agente não prevê aquilo que lhe era previsível” (GRECO, 2008, v. I, p. 201) - e culpa consciente – na qual o resultado foi previsto, mas o agente, contando com sua habilidade, acreditou, sinceramente, que este não aconteceria.

Para Zaffaroni (2011, v. I, p. 449),

A previsibilidade condiciona o dever de cuidado: quem não pode prever não tem a seu cargo o dever de cuidado e não pode violá-lo. Quem não pode prever que, ao acender a luz, colocará em funcionamento um mecanismo diabólico, enxertado no interruptor para matar alguém, não violou qualquer dever de cuidado, mas aquele que, ao abrir a porta de um recinto , percebe um forte odor de gás e, apesar disto, aciona o interruptor, viola um dever de cuidado, porque lhe era previsível que podia causar uma explosão.

Nesta esteira, conclui-se que a previsibilidade é um elemento objetivo, que deve ser levado a cabo por meio da substituição do agente por um homem médio no caso concreto. Se, ainda assim, persistir o resultado, não há de se falar em culpa, ou seja, “a previsibilidade é um dado objetivo; por isso, o fato de o agente não prever o dano ou perigo de sua ação (ausência de previsibilidade subjetiva), quando este é objetivamente previsível, não afasta a culpabilidade do agente [...].” (BITENCOURT, 2004, p. 227).

Porém, parte da doutrina classifica a previsibilidade em dois tipos: a objetiva e a subjetiva. Aquela, já mencionada nos parágrafos acima, dispõe sobre a percepção do homem médio, substituindo-o sempre ao caso concreto. Já na previsibilidade subjetiva, não se deve considerar a percepção do homem médio, mas sim a percepção exclusiva do agente que, por causas particulares e especiais, possui limitações ou experiências além da média. “Um técnico em eletricidade pode prever, com maior precisão do que um leigo, o risco que acarreta um fio solto.” (PIERANGELI, 2011, v. I, p. 449).

2.2.5 Tipicidade

O Código Penal Brasileiro, adotando o princípio da intervenção mínima, dispôs que a regra nos ilícitos penais é o dolo, sendo a culpa a exceção. Desta feita, só há de se falar em crime culposo quando este for expressamente previsto no tipo.

No crime de homicídio, por exemplo, a letra do tipo traz expressamente a possibilidade de existência de tal crime na modalidade culposa. De outro ângulo, no crime de dano não existe qualquer previsão de incidência da modalidade culposa, posto a omissão do tipo, fato este que acarreta a atipicidade da conduta do agente que provoca dano a outrem agindo “culposamente”.

Neste sentido, para que exista tipicidade nos crimes culposos se faz necessário, além da conjugação de todos os elementos acima estudados, que o suposto crime seja legalmente previsto na modalidade culposa.

Vale destacar, de igual forma, a possibilidade de incidência do princípio da insignificância nos crimes culposos, como bem exemplifica Rogério Greco (2008, v. I, p. 205):

Suponhamos que o agente esteja numa imensa fila de espera carregando uma pesada pasta e, ao ouvir seu nome ser convocado pelo alto-falante, movimenta-se de forma brusca e atinja outra pessoa, causando-lhe um pequeno arranhão de aproximadamente um centímetro de extensão. Apesar de haver, no exemplo fornecido, uma conduta culposa, um resultado naturalístico e um nexo de causalidade entre a conduta e esse resultado, entendemos que o fato por ele cometido é atípico, uma vez que não podemos vislumbrar a presença de tipicidade material, necessária à caracterização de qualquer infração penal.

2.3 MODALIDADES DE CULPA

Também chamadas de formas de manifestação da falta do cuidado objetivo, as modalidades de culpa estão literalmente elencadas no inciso II, do artigo 18, do Código Penal Brasileiro, que dispõe, in verbis: “[...] culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência e imperícia [...].”.

2.3.1 Imprudência

É a conduta arriscada, perigosa, e desacautelada, praticada comissivamente. Para Bitencourt (2004, p. 279), “é a imprevisão ativa (culpa in faciendo ou in committendo) [...] é aquela que se caracteriza pela intempestividade, precipitação, insensatez ou imoderação.”.

Nos dizeres de Luiz Regis Prado (2007, p. 378), imprudência “vem a ser uma atitude positiva, um agir sem a cautela, a atenção necessária, com precipitação, afoitamento ou inconsideração. É a conduta arriscada, perigosa, impulsiva.”.

A doutrina oferece diversos exemplos de condutas imprudentes, quais sejam: “manejar ou limpar arma carregada próximo a outras pessoas; caçar em local de excursões; dirigir sem óculos quando há defeito na visão, fatigado, com sono [...].” (MIRABETE, 2008, v. I, p.140).

2.3.2 Negligência

Enquanto a imprudência decorre de conduta comissiva, a negligência é a inércia psíquica, a omissão, a indiferença, é o deixar de fazer aquilo que deveria ser feito.

Luiz Regis Prado (2007, p.379) conceitua negligência como “a inatividade (forma omissiva), a inércia do agente que, podendo agir para não causar ou evitar o resultado lesivo, não o faz por preguiça, desleixo, desatenção ou displicência.”.

Tomemos os seguintes exemplos fornecidos por Mirabete (2008, v. I, p. 140) para ilustrar condutas negligentes: “Não colocar avisos junto às valetas abertas para um reparo na via pública; não deixar freado automóvel quando estacionado; deixar substância tóxica ao alcance de crianças, etc.”.

Dos exemplos fornecidos acima, verifica-se que sempre existe uma ação negativa, um abster-se daquilo que a diligência normal impunha a todos os membros da sociedade.

Não obstante a patente diferença existente entre imprudência e negligência, essas duas modalidades de culpa, muitas vezes, coexistem, interligando-se no caso concreto.

Neste sentido, imaginemos a seguinte situação:

Um motorista não efetua o reparo dos freios já gastos de seu automóvel e, mesmo assim, com ele transita por uma movimentada rua no centro da cidade. Em determinado momento, necessita diminuir a velocidade do automóvel e os freios não respondem ao seu comando, pois estão totalmente gastos, e, em virtude disso, atropela e mata um pedestre (GRECO, 2008, p. 205).

No caso acima, verifica-se que o agente agiu, ao mesmo tempo, de forma negligente e imperita: negligente quando deixou de efetuar os reparos necessários à manutenção dos freios (conduta omissiva); imprudente quando, mesmo sabendo da deficiência de seu automóvel, colou-o em movimento (conduta comissiva), dando causa à morte de um transeunte.

2.3.3 Imperícia

Perícia, derivada do latim peritia, consiste na destreza, habilidade, maestria de outrem que, executando determinada conduta, dá causa a um resultado.

Desta forma, subtende-se que imperícia é a falta de destreza, habilidade, maestria ou conhecimento para o exercício de arte, profissão ou ofício.

A doutrina entende que a imperícia sempre está ligada ao desempenho de determinada atividade profissional, ou seja, somente pode-se exigir perícia daquele que esteja habilitado para determinada prática.

Assim, Greco (2008, v. I, p. 205) dispõe que “fala-se em imperícia quando ocorre uma inaptidão, momentânea ou não, do agente para o exercício de arte, profissão ou ofício.”.

São exemplos de imperícia: “a falta de habilidade no conduzir veículo (motorista profissional); não saber praticar uma intervenção cirúrgica ou prescrever um medicamento (para o médico).” (PRADO, 2007, p. 379).

2.4 ESPÉCIES DE CULPA

Tal como nos crimes dolosos, a doutrina penal delimita, didaticamente, duas espécies de culpa, a saber: culpa consciente e culpa inconsciente. Alguns doutrinadores entendem por uma terceira espécie de culpa, qual seja a culpa imprópria, que entendemos ser desnecessária para o fim almejado no presente estudo.

Neste momento, os laços que, geralmente, mantém significativa distância entre o dolo e a culpa se estreitam sobremaneira, principalmente quando se põe paralelos o dolo eventual e a culpa consciente.

O epigrafado item visa apenas conceituar as espécies de culpa trazidas pela doutrina, reservando o debate entre o dolo eventual e culpa consciente nos crimes de trânsito para momento posterior.

2.4.1 Culpa inconsciente

Apesar de a doutrina tradicional tratar por primeiro a espécie culposa “culpa consciente”, entendemos, data vênia, por melhor explanar inicialmente a respeito da “culpa inconsciente”.

Também chamada de culpa sem representação, a culpa inconsciente é a culpa comum, aquela que decorre da conduta praticada sem a previsão do resultado que deveria ser objetivamente previsto.

Para Hungria, apud Bitencourt (2004, p. 281), “previsível é o fato cuja possível superveniência não escapa à perspicácia comum”, portanto denota-se que a grande diferença entre as espécies de culpa encontra-se albergada na “previsibilidade”.

Nesta esteira, nos casos imprevisíveis, não há de se falar em culpa, muito menos em dolo. Nos casos previsíveis, mas não previstos, fala-se em culpa inconsciente. E nos casos previstos, em regra, fala-se em culpa consciente.

Em suma, Mirabete (2008, v. I, p. 141) discorre objetivamente que “a culpa inconsciente existe quando o agente não prevê o resultado que é previsível. Não há no agente o conhecimento efetivo do perigo que sua conduta provoca para o bem jurídico alheio.”.

2.4.2 Culpa consciente

A contrário sensu, a culpa consciente ocorre quando o agente, diante da situação in concreto, prevê o resultado, mas, mesmo assim, acredita, sinceramente, que este não vá ocorrer. É a chamada culpa com previsão.

Enquanto a conduta que desrespeita um dever de cuidado dando causa a um resultado naturalístico previsível se encaixa na culpa inconsciente, a conduta que desrespeita tal cuidado dando causa à um resultado lesivo previsto, mas com resultado não “assumido”, enquadra-se, em tese, na culpa consciente.

Em poucas linhas, Zaffaroni (2011, v. I, p. 450) conceitua culpa consciente da seguinte maneira:

Chama-se culpa com representação, ou culpa consciente, aquela que o sujeito ativo representou para si a possibilidade da produção do resultado, embora a tenha rejeitado, na crença de que, chegado o momento, poderá evitá-lo ou simplesmente ele não ocorrerá.

Desta feita, como o próprio nome já diz, tal espécie culposa aperfeiçoa-se quando o agente tem consciência de que sua conduta poderá gerar um resultado lesivo, porém não assume tal, ou seja, ele prevê o resultado como possível, mas acredita, sinceramente, que suas habilidades pessoais são suficientes para evitá-lo.

Sobre o autor
Filipe Soares Alho

Advogado Especialista em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALHO, Filipe Soares. A linha tênue que distingue o dolo eventual da culpa consciente nos homicídios de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3392, 14 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22800. Acesso em: 5 nov. 2024.

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