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Embriaguez ao volante e direito a não autoincriminação

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Agenda 23/10/2012 às 16:55

A inclusão de teor alcoólico como elementar do tipo penal da embriaguez ao volante, ao invés de aumentar o rigor no tratamento dos casos práticos, trouxe um benefício aos condutores flagrados em estado etílico, uma vez que depende do etilômetro ou de amostra de sangue.

Resumo: O presente artigo analisará as alterações trazidas pela Lei 11.705/2008 ao Código de Trânsito Brasileiro, referentes ao tipo penal de embriaguez ao volante. Será abordada a inclusão do índice de teor alcoólico configurador da embriaguez no referido tipo penal, aferível apenas pela submissão dos condutores ao teste do etilômetro ou exame sanguíneo, ambos considerados pela doutrina e jurisprudência pátria violadores do direito a não produzir provas contra si mesmo, decorrência da redação do artigo 5º, inciso LXIII, da Carta Magna de 1988. Será analisada, ainda, a redação do artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro que prevê a imposição de penalidade administrativa ao condutor que se recusar a submeter-se ao teste do etilômetro.

Palavras-chave: Código de Trânsito Brasileiro. Lei 11.705/2008 (Lei Seca). Princípio da não autoincriminação.

Sumário: 1 Introdução.  2 O Princípio DA não AutoIncriminação.  2.1 antecedentes históricos e direito comparado.  2.2 O DIREITO A NÃO AUTOINCRIMINACAO NO BRASIL.  2.3 OS FINS DOS DIREITOS e garantias fundamentais.  3 O TIPO PENAL DA EMBRIAGUEZ AO VOLANTE E O DIREITO DE NÃO SE AUTOINCRIMINAR.  3.1 TEOR ALCOÓLICO COMO ELEMENTO DO TIPO PENAL.  3.2 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO NEMO TENETUR SE DETEGERE NOS CASOS DE EMBRIAGUEZ.  3.3 SISTEMA DA EXIGÊNCIA DA CAUSAÇÃO DO RISCO EM CONCRETO EM VEZ DA OPÇÃO PELO TIPO DE PERIGO ABSTRATO.  3.3 IMPOSIÇÃO DE PENALIDADE DE MULTA AO CONDUTOR QUE SE RECUSA AO TESTE DO ETILÔMETRO.  4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.  Referências.


1 Introdução

O presente trabalho tem por objetivo a análise da alteração legislativa trazida pela Lei n. 11.705/2008, concernente ao tratamento dispensado aos casos de embriaguez ao volante.

O novo artigo 306 do código de trânsito brasileiro passou a considerar embriaguez ao volante quando o condutor estiver com a concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas,[1] diferentemente do sistema anterior que não continha em sua redação o índice de álcool, contentando-se apenas com os sintomas de embriaguez, comprovados por qualquer meio de prova, no entanto, dependente da constatação de que a condução do veiculo houvesse gerado um perigo de dano concreto à incolumidade pública.

Apesar de incrementar um tratamento mais rigoroso ao condutor etílico, tornando prescindível a causação de qualquer risco a incolumidade pública para a configuração da embriaguez ao volante, bastando apenas a concentração alcoólica de seis decigramas ou mais, a nova lei trouxe antinomias no ordenamento jurídico de difícil superação.

A configuração da embriaguez passou a exigir prova técnica, possível apenas pela submissão do condutor ao teste do etilômetro ou ao exame de sangue, procedimentos que dependem da colaboração do acusado, o qual, por força do princípio da proibição de produção de prova contra si mesmo, possui a prerrogativa constitucional de quedar-se inerte frente à sanha persecutória criminal do Estado.

Outrossim, para completar a contradição apontada, o legislador, ciente da prerrogativa constitucional de negar-se a produção de prova autoincriminatória, trouxe a previsão de imposição de penalidade administrativa de multa e suspensão do direito de dirigir por 12 meses ao condutor que se negar a submeter-se ao teste do etilômetro quando convocado pelo agente de trânsito.[2]

São estes os aspectos que se pretende analisar no presente estudo, ou seja, apontar os problemas de aplicabilidade ocasionados pela chamada lei seca, os limites do princípio da não autoincriminação no direito comparado e, ao final, apontar algumas alternativas para melhor enfrentar o grave problema da embriaguez ao volante em nosso ordenamento jurídico.


2 O Princípio DA não AutoIncriminação

2.1 antecedentes históricos e direito comparado

A origem histórica remota do direito a não se autoincriminar é atribuída à regra talmúdica do direito hebraico, que já por volta do século III a.C., prescrevia que a ninguém é dado tirar a própria vida, entendendo-se que a autoincriminação, com a confissão de eventual crime punido com a pena de morte, seria forma indireta de cometimento de suicídio, proibido pela regra.[3]

A atual compreensão deste princípio, no entanto, surge com vigor a partir da ascensão dos ideais iluministas que influenciaram as revoluções burguesas do século XVIII. As atrocidades cometidas pelo antigo regime, baseado no sistema processual inquisitivo, no qual a confissão se traduzia na “rainha das provas”, colocando o acusado na condição de meio para a busca da verdade, em vez de sujeito de direitos, foi a força motriz deste processo de transformação para o sistema acusatório presente nos dias de hoje.

Apesar deste reconhecimento maciço em grande parte das nações desenvolvidas, a proibição da autoincriminação assume diferentes conformações dependendo do ordenamento jurídico em questão.

Passa-se a analisar o tratamento dispensado pelos principais ordenamentos jurídicos mundiais sobre o tema.

Na Inglaterra, existe uma interpretação bastante restritiva da abrangência do instituto no Criminal Justice on Public Order Act, de 1994, apesar de ser considerado o berço do moderno direito a não autoincriminação. Há previsão do direito do acusado não responder às perguntas que lhe foram formuladas, permitindo, no entanto, que o magistrado extraia inferências deste silêncio. Existe ainda a obrigatoriedade de submissão a coleta de amostras biológicas não íntimas, como as que se procedem superficialmente, ou na cavidade oral.[4]

Da recusa em coletar amostras, tanto das invasivas, que incidem sobre a esfera intima da pessoa, quanto das não invasivas, não decorre nenhuma execução forcada ou imposição de sanção, mas a negação do consentimento sem motivo justificável poderá ser considerado idônea para corroborar outros elementos de prova contrários, avaliando-se o conjunto probatório.[5]

Na Alemanha, assegura-se o direito ao silêncio, mas caso o acusado resolva responder ao interrogatório, e deixar sem resposta algum questionamento – silêncio parcial – pode o magistrado inferir valoração de seu silêncio. O silêncio total, quando o acusado decide silenciar por completo, não pode ser valorado negativamente pelo magistrado. Admite-se a coerção estatal quanto às formas não verbais, tais como: coleta de sangue, fluidos corporais, padrões grafotécnicos, reconhecimento, registro de imagem em fotografias, desde que tal se justifique a luz de critérios de proporcionalidade no caso concreto.

Salienta-se que a coleta de material probatório pode ocorrer de forma coercitiva, ou seja, contra a sua vontade, devendo a prova ser utilizada somente no processo em que houve a autorização, devendo ser inutilizada quando findo aquele.

Percebe-se que no direito alemão o acusado assume posição de objeto de prova, pois tem a obrigação de colaborar ativamente para a sua produção, encontrando limites apenas quando da execução forçada possa ocorrer risco a saúde do individuo.

Apesar da abrangência da intervenção corporal do acusado, há um entendimento majoritário na doutrina e jurisprudência que

[...] mesmo nos casos de execução forcada da intervenção corporal, o acusado não exerce uma colaboração ativa, mas passiva, tolerando a execução. Tal postura de tolerância, que corresponde à colaboração passiva, é o que se poderia exigir do acusado.[6]

Há uma visível opção pela efetividade do processo penal em detrimento dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Há uma preferência explicita pela garantia dos interesses da coletividade em face dos interesses individuas do acusado.

Nos Estados Unidos, o chamado privilege against self-incrimination abrange apenas as formas orais de autoincriminação, deixando livre a ingerência estatal nas demais colaborações do acusado, possibilitando a coação física para a produção de prova incriminatória, como fornecimento de sangue, padrões gráficos, e outros.

Naquele Estado, a embriaguez pode ser constatada por meio de submissão ao teste de etilômetro, pois,

Em 1966, a Suprema Corte decidiu em Schemerber v. Califórnia, por cinco votos a quatro, que o privilege against self-incrimination somente protegia o acusado de ser compelido a testemunhar contra si próprio e que se referia as provas testemunhais e de natureza comunicativa. O caso referia-se a coleta de sangue para a prova de embriaguez de motorista.[7]

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Algumas cortes têm o entendimento de que o acusado que se recusa a colaborar com a produção de prova comete o crime de desobediência, enquanto outras entendem pela possibilidade de produção coercitiva das provas que dependem do acusado.

Na Espanha, existe a possibilidade de se extrair inferências do silêncio parcial do acusado, e nas demais condutas não verbais não há proteção constitucional do acusado, sendo possível a submissão às investigações tributárias e ao controle de alcoolemia, ficando reservada a submissão a determinadas interferências invasivas, pelo direito à intimidade e inviolabilidade do corpo humano.[8]

2.2 O DIREITO A NÃO AUTOINCRIMINACAO NO BRASIL

No Brasil o direito de não se autoincriminar sofreu transformações desde sua primeira previsão nas ordenações manuelinas, de 1514, passando por um tratamento pouco abrangente no código de processo penal de 1941, culminando com a previsão constitucional do direito ao silêncio na Constituição da República de 1988.

Nas ordenações, previa-se o direito, mas na prática a confissão do acusado nos casos graves era extraída por meio de tormentos, ou por imposição de multas nas situações menos graves.

Com a elaboração do Código de Processo Penal de 1941, diploma que uniformizou o processo penal no Brasil, pois até então os Estados Federados legislavam sobre processo, houve a previsão expressa de que o silêncio do réu, embora permitido, poderia ser valorado pelo magistrado em desfavor do mesmo.[9]

Somente com a promulgação da Constituição de 1988 é que esse direito ganhou contornos mais relevantes, com barreiras mais amplas, em função da previsão expressa do direito ao silêncio[10] no artigo 5º da CF/88, e de outras garantias constitucionais de grande envergadura, tais como o da dignidade da pessoa humana, considerado o valor do qual decorrem todos os direitos e garantias fundamentais, assim como o devido processo legal e a presunção de não culpabilidade.[11]

Na jurisprudência dos Tribunais Superiores é que se alargou a moldura do direito a não autoincriminação, passando a ter status de princípio fundamental praticamente absoluto, protegendo o cidadão de qualquer ingerência do Estado na busca da verdade processual, não apenas em relação à autoincriminação verbal, mas também contra a participação ativa em diligências probatórias que dependam de atuação positiva por parte do acusado.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça entendem que qualquer colaboração do acusado que exija uma atuação positiva viola o direito de não se autoincriminar. É exatamente neste ponto em que surge a barreira que impede os órgãos de fiscalização de trânsito a submeterem os condutores ao teste do etilômetro, pois, segundo o entendimento consolidado tanto na doutrina quanto na jurisprudência, tal procedimento exigiria uma conduta positiva do condutor.

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBLIDADE DE SE EXTRAIR QUALQUER CONCLUSÃO DESFAVORÁVEL AO SUSPEITO OU ACUSADO DE PRATICAR CRIME QUE NÃO SE SUBMETE A EXAME DE DOSAGEM ALCOÓLICA. DIREITO DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO: NEMO TENETUR SE DETEGERE. Não se pode presumir a embriaguez de quem não se submete a exame de dosagem alcoólica: a Constituição da República impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo [...].[12]

Observa-se que os Tribunais Superiores adotam uma postura extremamente garantista em relação ao direito de não produzir provas contra si, descuidando-se destarte, de que os princípios fundamentais possuem uma face que milita em favor dos anseios da sociedade. São os deveres de eficiência do Estado na persecução penal.

O processo penal possui funções distintas. De um lado é instrumento pelo qual se afirma o poder punitivo estatal, e de outro é um sistema de garantias dos direitos individuais que servem para conter o poder punitivo do Estado, colocando o individuo em situação de paridade de armas com o estado acusador. O tempero entre estas duas funções é que vai determinar a característica assumida por determinado sistema criminal.

Entretanto, qualquer tentativa de submissão de acusado a produção de prova contra si, é vista pela doutrina nacional como aviltante da dignidade da pessoa humana. Com este entendimento é que se rechaça a possibilidade de submissão aos testes de alcoolemia. Nesse sentido ressalta Colomer que, “por isso, tem-se sustentado que a polícia não pode exigir do acusado uma colaboração ativa, como ocorre quando se exige que o condutor exale no aparelho para medir o teor alcoólico”.[13]

Entendemos que há uma grande diferença entre a submissão a um sopro em aparelho medidor de teor alcoólico e a submissão forçada à coleta de sangue ou outros fluídos coletados em áreas da intimidade da pessoa. Há que se aplicar os critérios de razoabilidade na análise do caso concreto, para não se chegar a posições extremas de intangibilidade e conseqüente impunidade, principalmente em casos considerados graves ou de difícil elucidação.

Reduzir a análise da questão apenas pelo aspecto da diferença entre conduta ativa ou passiva do acusado, sem levar em conta outros critérios como a reprovabilidade do crime, grau de comprometimento da intimidade do acusado, imprescindibilidade da prova que se quer produzir, muitas vezes, torna impossível o exercício do poder punitivo estatal, levando-o a uma situação de total descrédito perante a sociedade, a principal interessada na efetividade das normas.

Não obstante a pacificação deste entendimento na doutrina e jurisprudência, o legislador ordinário insistiu na criação de um tipo penal totalmente dependente de uma conduta autoincriminatória para ser constatado, e pasmem, impondo penalidade administrativa àquele que exercer este direito.

O resultado disso no âmbito dos Tribunais não foi outro senão a consolidação do entendimento no sentido de que

A nova redação do crime de embriaguez ao volante exige, para caracterizar a tipicidade da conduta, seja quantificado o grau de alcoolemia. Essa prova técnica é indispensável e só pode ser produzida, de forma segura e eficaz, por intermédio do etilômetro ou do exame de sangue.[14]

Constatando a impropriedade da Lei Seca no aspecto do tipo penal de embriaguez, tramita no Senado Federal o projeto de lei que altera a redação do artigo 306 do CTB,[15] passando a considerar crime a condução de veículo automotor com qualquer teor alcoólico no sangue, extraindo-se a elementar objetiva do tipo penal “6 decigramas por litro de sangue” que vincula a formação probatória aos exames violadores do privilégio da não autoincriminação.

Na exposição de motivos, o autor do projeto ressalta a necessidade de alteração do artigo 306 do CTB diante da consolidação do entendimento no âmbito do Superior Tribunal de Justiça de que o teste do etilômetro ou exame de sangue são imprescindíveis à configuração do crime de embriaguez ao volante, retirando-se o índice de teor alcoólico da redação do tipo penal.

 Apesar da alteração proposta, o tipo penal continuará sendo de perigo abstrato, e a geração de perigo de dano será considerada causa de aumento de pena. A análise neste aspecto será feita em capítulo específico.

2.3 OS FINS DOS DIREITOS e garantias fundamentais

Os direitos e garantias fundamentais militam em duas frentes distintas, pois, de um lado servem como barreiras que impedem a ingerência excessiva do Estado na esfera individual do cidadão, e de outro, preservam os interesses da sociedade como um todo. Nota-se que, em ambas as situações, a finalidade é a mesma, ou seja, quando preservam os direitos e garantias de um único individuo, levantam barreiras em defesa de toda a sociedade.

Ocorre que, quando há uma hipertrofia desses direitos, tanto para o lado do garantismo individual quanto para o lado da eficácia social, há um flagrante desequilíbrio, que muitas vezes inviabiliza uma ou outra função, ou seja, a exacerbação das garantias individuais do acusado transmite à sociedade uma ideia de intangibilidade e impunidade, e quando pende exageradamente para o lado da eficácia do poder punitivo Estatal, desequilibra a balança da paridade de armas, causando a sensação de medo e impotência frente a um Estado totalitário.

Nesta toada, a doutrina aponta duas dimensões que legitimam a intervenção penal do Estado, denominando-as de dimensão subjetiva e dimensão objetiva.

Em sua dimensão subjetiva, os direitos fundamentais apresentam-se como expressão de defesa de posições jurídicas do individuo frente ao Estado, ou seja, são as situações que se exigem uma abstenção do Estado.

Por outro lado, em sua concepção objetiva, o Estado deve ser o garantidor da sociedade contra ataques em seus direitos e garantias individuais perpetrados por outros indivíduos. Sob este prisma, exige-se uma ação do Estado.

Paulo Canabarro Trois Neto acentua que

A expansão dos direitos fundamentais para além do abstencionismo estatal exige do Estado uma atuação ativa. Como detentor do monopólio da força, ele tem a missão não apenas de respeitar os direitos fundamentais (perspectiva negativa), mas também de protegê-los (perspectiva positiva) contra ataques e ameaças de terceiros.[16]

Quando o legislador cria tipos penais sem o cuidado necessário sob o aspecto de sua eficácia técnica, cujo processo de tipificação dependa exclusivamente da violação dos direitos fundamentais do cidadão, como é o caso do artigo 306 da lei seca, acaba por ferir tanto uma quanto a outra dimensão, tanto pela proibição do excesso, ao impor a obrigatoriedade de submissão do acusado aos procedimentos autoincriminatórios, quanto pelo aspecto da proibição da proteção insuficiente, ao deixar impune uma conduta criminosa pela impropriedade técnica do tipo penal incriminador.

Para tanto, entende-se que não é necessária a abolição total das garantias do acusado em nome de uma eficácia social plena, mas é preciso que o ordenamento jurídico atue de forma a contemplar tanto uma quanto a outra face dos direitos fundamentais, proporcionando um julgamento justo com plenas garantias ao acusado sem descuidar-se da eficácia do poder punitivo Estatal.


3 O TIPO PENAL DA EMBRIAGUEZ AO VOLANTE E O DIREITO DE NÃO SE AUTOINCRIMINAR

3.1 TEOR ALCOÓLICO COMO ELEMENTO DO TIPO PENAL

O maior entrave à aplicabilidade das disposições da chamada “Lei Seca” (Lei n. 11.705/08) diz respeito à inclusão do índice de teor alcoólico no tipo penal da embriaguez ao volante,[17] ao contrário da sistemática anterior que se contentava com qualquer meio de prova, exigindo-se, no entanto, a causação de um risco à incolumidade publica.

Alarmado com o alto índice de acidentes de trânsito que ocorriam em virtude da ingestão de bebidas alcoólicas antes de dirigir, o legislador buscou tornar mais rígido o tratamento a essas condutas. No entanto, o efeito constatado foi exatamente o oposto do pretendido.

A interpretação dada pela doutrina e jurisprudência nacional ao direito ao silêncio inviabilizou a aplicação do artigo 306 do CTB, pois a submissão ao teste do etilômetro ou coleta de sangue, conforme mencionamos no capitulo anterior, são consideradas violadoras do princípio do “Nemo tenetur se detegere”.[18]

O resultado prático dessa alteração tem sido a absolvição de aproximadamente 80 por cento dos condutores flagrados sob efeito de álcool, por terem se recusado a submeter-se ao teste do etilometro,[19] com fundamento na inexistência de provas suficientes, restando condenados os demais, o percentual de 20 por cento que aceitou colaborar na formação do conjunto probatório, diga-se, submeter-se ao teste do etilômetro. “Trata-se de situação inaceitável que fomenta a impunidade e atenta contra o prestigio, credibilidade e segurança da atividade jurisdicional [...]” [20]

Prevalecendo o entendimento atual, conclui-se que a Lei criou uma faculdade ao cidadão de responder ou não a ação penal, porque, caso se negue a produzir as únicas provas capazes de configurar a embriaguez, não haverá o lastro probatório mínimo para o oferecimento da denuncia, devendo ser rejeitada por falta de justa causa para o exercício da ação penal. É um patético caso de Lei penal opcional.

3.2 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO NEMO TENETUR SE DETEGERE NOS CASOS DE EMBRIAGUEZ

Questão que se coloca neste ponto, diz respeito à interpretação dada pela doutrina e jurisprudência pátria sobre o direito constitucional ao silêncio dos acusados em geral, previsto no artigo 5º, inciso LXIII da Constituição Federal,[21] nas questões relacionadas à obrigatoriedade da submissão dos condutores de veiculo automotor ao teste do etilômetro (bafômetro).

Entendem que há uma conduta positiva por parte do condutor quando compelido a soprar no referido aparelho, conduta que violaria o direito de não se autoincriminar. Por outro lado, admitem a submissão do acusado, por exemplo, a procedimento de reconhecimento de pessoas, identificação criminal, sob o fundamento de que nesses casos há uma tolerância passiva na produção da prova.

Em sentido contrário, segmentos abalizados da doutrina nacional, como o magistério do Professor Eugênio Pacelli, defendem que,

Determinadas intervenções corporais, quando não puserem em risco a integridade física e psíquica do acusado em processo penal, e desde que previstas em lei, não encontram obstáculo em quaisquer princípios constitucionais, sobretudo quando se destinarem a colher prova em crimes que atingiram direitos fundamentais das vitimas. Afinal, o direito penal, intervenção estatal mais radical, não é também destinado a proteção de direitos fundamentais?[22]

E arremata,

O condutor apenas “assopra”, ou seja, expele, expulsa ar por meio de sopro. Ausente “risco a integridade física ou psíquica da pessoa, a sua dignidade humana ou a sua capacidade de autodeterminação”, admite-se a intervenção corporal não consentida.[23]

Mesmo filiando-se à tese prevalente atualmente, segundo a qual o sopro em aparelho devidamente esterilizado seja considerado um ato que traga violação à esfera íntima da pessoa, restaria ainda a possibilidade, em privilégio a presunção de constitucionalidade da lei seca, de desenvolvimento tecnológico de um aparelho etilômetro que captasse o ar alveolar expelido espontaneamente dos pulmões, sem a necessidade do condutor assoprar no aparelho, descaracterizando a conduta positiva vedada pela interpretação doutrinária.

O que não admite a doutrina, no atual estágio de desenvolvimento dos direitos e garantias fundamentais, é o retrocesso no processo de criação legislativa, com o conseqüente ativismo judicial por parte dos tribunais Superiores na tentativa de salvar a norma, ressaltando que

A pretexto de resolver a impunidade gerada pela falta de equipamentos necessários a realização do exame [...] A impunidade decorrente de problemas estruturais da administração (no caso da falta de aparelhos) ou de péssima técnica legislativa (no caso da impossibilidade de comprovação do delito se o acusado recusar-se a se submeter a exames) não pode ser superada com uma decisão que ignora ou tangencia direitos garantias constitucionais em prol da necessidade de punir a qualquer preço.[24]

Por outro lado, entendemos que, o ato de respirar, por ser movimento necessário à manutenção da vida do ser humano, não é conduta positiva, pois o indivíduo não tem a faculdade de deixar de respirar. O ar expelido dos pulmões é produto descartado pelo corpo, saindo da esfera íntima da pessoa. A utilização deste ar não configuraria qualquer violação à intimidade. Seria, portanto, comparável à submissão do acusado ao reconhecimento, à identificação criminal, aceitos majoritariamente pela doutrina e jurisprudência.

3.3 SISTEMA DA EXIGÊNCIA DA CAUSAÇÃO DO RISCO EM CONCRETO EM VEZ DA OPÇÃO PELO TIPO DE PERIGO ABSTRATO

Anterior à vigência da Lei 11.705/08, o artigo que tratava da embriaguez ao volante[25] exigia a produção de um perigo de dano a incolumidade pública para sua caracterização, não sendo necessário, no entanto, que sua constatação dependesse apenas de testes de etilômetro ou exame de sangue, conforme o atual, contentando-se com a produção de qualquer prova em direito admitida, como a testemunhal, termo de constatação de embriaguez lavrado pelo agente de trânsito, ou exame clinico feito por profissional habilitado.

Assim, o crime que era classificado como de perigo concreto, exigindo-se a prova de que a conduta colocou efetivamente em risco a incolumidade física de alguém, depois da alteração pela lei 11.705/08, passou a ser de perigo abstrato, não sendo mais necessária a demonstração da causação de qualquer risco, bastando apenas a realização da conduta, sendo o risco previamente presumido pelo legislador.

A criação de tipos penais de perigo abstrato tem sido criticada pela doutrina moderna do direito penal, sob o fundamento de que violaria o princípio da lesividade, da culpabilidade e da presunção de inocência. Tal assertiva estaria presente implicitamente no artigo 98, inciso I da Carta da República de 1988.[26]

A exigência da existência de lesividade ao bem jurídico tutelado, consubstanciada na efetiva lesão ou no perigo concreto ou idôneo de dano ao interesse jurídico, é própria de um direito Administrativo decorrente do Estado Democrático e Social de Direito, visando a restringir ao máximo o poder de polícia da administração pública, a fim de, realmente, exercer sua verdadeira função, de apenas punir ou sancionar as condutas capazes de prejudicar a vida coletiva. [27]

Por sua vez, o professor Luiz Flavio Gomes, importante defensor da inconstitucionalidade dos tipos penais de perigo abstrato, defende que na esfera administrativa o perigo abstrato presente na norma não ofenderia qualquer principio constitucional, asseverando que “a infração administrativa contenta-se com o perigo abstrato (até porque essa característica é da sua natureza). Já os delitos exigem a comprovação (concreta) da potencialidade lesiva da conduta presumidamente perigosa”.[28]

De lege ferenda, conforme mencionamos anteriormente, o projeto de lei nº 48/2011, já aprovado no Senado e encaminhado à Câmara dos Deputados, promove novamente a alteração do artigo 306 do CTB, extraindo-se de sua redação o termo “com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas”, mantendo-o, no entanto, como tipo penal de perigo abstrato, transformando a elementar “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem” como causa de aumento de pena.[29]

Observa-se que, apesar de o legislador estar resolvendo o imbróglio criado pela lei seca com a inclusão do índice de teor alcoólico no tipo penal, está criminalizando a ingestão de qualquer quantidade de álcool, presumindo que a condução de veículo automotor com uma ínfima quantidade de álcool no sangue causa risco, sem que de tal conduta decorra qualquer alteração no estado psíquico de determinada pessoa.

Neste aspecto, colaciona-se importante trecho da doutrina de Bruno Preti Souza, segundo o qual

Interessante notarmos que, não existindo a necessidade de demonstração pelo agente público da concretude ou da idoneidade do perigo causado pela conduta, em relação ao bem jurídico, há flagrante contradição com o princípio do estado de inocência, pois este exige do acusador a comprovação legal da culpabilidade.[30]

Entretanto, escorados em importante estudo sobre o tema, elaborado por Pierpaolo Cruz Bottini, que propõe uma abordagem num aspecto próximo da concepção funcionalista, entende-se que os tipos penais de perigo abstrato não sofrem de qualquer vício de inconstitucionalidade, pois, determinadas condutas, pelo alto risco que representam à sociedade, devem ser coibidas pelo Estado de forma preventiva, mesmo antes de atingirem a esfera do risco concreto dos bens jurídicos, pela relevância que tais bens representam ao convívio social harmônico.

Assevera o mencionado doutrinador que

O enfrentamento dos novos âmbitos de risco pelo direito penal, portanto, estará pautado pela necessidade, revelada pela importância dos bens jurídicos possivelmente afetados por estes riscos e pela limitação imposta pelo modelo de estado, que implicará a observância dos parâmetros de garantia da dignidade humana. Sobre esta metodologia serão avaliados os crime de perigo abstrato [...] Desta forma, esta categoria típica somente será legitima se estiver voltada a proteção exclusiva a bens jurídicos relevantes para a dignidade da pessoa humana, e for aplicada de modo a não violar esta mesma dignidade, respeitando os princípios de subsidiariedade, de fragmentariedade e de proporcionalidade.

Portanto, a manutenção da embriaguez ao volante como crime de perigo abstrato vem ao encontro dos anseios de toda a sociedade, pois a antecipação da criminalização dessas condutas se traduz em proteção da dignidade humana sem qualquer afronta a direito fundamental dos acusados.

3.3 IMPOSIÇÃO DE PENALIDADE DE MULTA AO CONDUTOR QUE SE RECUSA AO TESTE DO ETILÔMETRO

Outra novidade trazida pela Lei Seca diz respeito à possibilidade de aplicação de penalidades e medidas administrativas ao condutor que se recusar a se submeter aos testes de etilômetro ou a coleta de sangue.[31]

Prevalecendo o entendimento de que a submissão ao teste de alcoolemia constitui-se em violação ao Nemo tenetur se detegere, tal previsão legal estaria em conflito com o ordenamento jurídico constitucional vigente.

A lei acabou por criar uma espécie de “perigo abstrato” ao sancionar a quantidade mais ínfima de álcool, bem como criou uma presunção de culpabilidade ao sancionar o condutor que se recusar a ser submetido aos exames previstos no artigo 277 do CTB.[32]

O exercício de um direito constitucionalmente reconhecido não pode dar ensejo à aplicação de qualquer tipo de sanção, seja de ordem civil ou administrativa, muito menos de ordem penal. É o típico caso de antinomia de normas em uma relação de contraditoriedade,[33] citado por Bobbio, segundo o qual, não pode haver uma norma que permite determinada conduta ao mesmo tempo em que outra proíbe de fazê-la, como no caso em exame.

O principio da não autoincriminação proíbe a intromissão do Estado na liberdade de autodeterminação do cidadão, mas a lei seca permite que o Estado imponha uma penalidade consistente no pagamento de uma multa de aproximadamente R$ 1.000,00, e a suspensão do direito de dirigir por 12 meses, ao condutor que se negar a se submeter ao teste do etilômetro.

 Portanto, entende-se que neste aspecto há flagrante antinomia de normas que levaria a inconstitucionalidade do dispositivo da lei seca que comina sanção administrativa ao condutor que se recusa a submeter-se aos testes de alcoolemia, pois tal conduta constitui-se em direito fundamental expresso na Constituição da Republica de 1988.

Sobre o autor
Lisandro Martinelli

Policial Rodoviario Federal. Especialista em Direito Publico pela Unisul. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Univali.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINELLI, Lisandro. Embriaguez ao volante e direito a não autoincriminação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3401, 23 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22832. Acesso em: 23 dez. 2024.

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