Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A República Federativa do Brasil e o Estado democrático de direito

Exibindo página 1 de 3
Agenda 20/10/2012 às 18:50

A própria denominação conferida ao Brasil pelo constituinte originário de 1988 revela seu modelo de organização estatal, bem como a opção política de sua forma de governo.

Sumário: 1. Introdução – 2. Federalismo – 2.1 Noções preambulares sobre o federalismo norte americano: modelo que inspirou o Brasil – 2.2 Notas sobre o Federalismo brasileiro – 3. A Separação dos Poderes nas Constituições brasileiras – um breve passar de olhos – 4. Estado Democrático de Direito – 4.1 Forma democrática de governo – 4.2 Estado de Direito – 5. Conclusões – 6. Referências.


1.  Introdução

A própria denominação conferida ao Brasil pelo constituinte originário de 1988 revela seu modelo de organização estatal, bem como a opção política de sua forma de governo.

Por ser república, os contornos democráticos da Constituição devem ser evidentes, especialmente no tocante à Separação de Poderes (ou funções) que, evitando a sua concentração nas mãos de um ou alguns, impede um eventual desvirtuamento do texto constitucional, já que como lembrado por Bobbio (2010, p. 146) todo aquele que detém o Poder tende a dele abusar. Essa característica denota uma “horizontalidade” no trato das funções republicanas, tanto que o texto da nossa Lei Fundamental assevera serem os poderes independentes e harmônicos entre si (art. 2º).

Seguindo o ideal republicano, a forma de escolha dos membros integrantes dos Poderes do Estado deve restar em sintonia com os princípios que regem uma democracia representativa (art. 14 e ss.), de modo a conferir legitimidade a essa representação, além de haver o pleno respeito aos direitos e garantias fundamentais de todas as pessoas (art. 5º).

Pelo viés federativo, vê-se que a organização do Poder do Estado além de ser desconcentrada (característica própria de uma república, como se percebe pela Separação dos Poderes), é também descentralizada, restando o Poder distribuído em quatro esferas federativas diversas: a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios. Sendo que em uma federação as competências de cada unidade federada devem ser previstas Constitucionalmente[1].

Nesse sentido, nos tópicos abaixo serão abordadas algumas das principais características do nosso federalismo, bem como da evolução constitucional da Separação de Poderes como dado a evidenciar que nem sempre fomos efetivamente uma república, para ao final tratarmos do Brasil como um Estado democrático de direito.


2. Federalismo

2.1 Noções preambulares sobre o federalismo norte americano: modelo que inspirou o Brasil

A história da formação de um Estado norte americano foi marcada pelas discussões acerca da necessidade ou não da união das 13 antigas colônias britânicas na América sob uma única voz de comando. O fato é que para garantir a independência conquistada pós 1776, as antigas colônias firmaram um tratado entre si a fim de criar uma confederação com o objetivo básico de preservar suas soberanias.

Nessa conformação muitos problemas de cunho político-administrativo e de relacionamento interestatal surgiam, como bem destacado por Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 797):

Cada entidade componente da confederação retinha a sua soberania, o que enfraquecia o pacto. As deliberações dos Estados Unidos em Congresso nem sempre eram cumpridas, e havia dificuldades na obtenção de recursos financeiros e humanos para as atividades comuns. Além disso, a confederação não poderia legislar para os cidadãos, dispondo, apenas, para os Estados. Com isso não podia impor tributos, ficando na dependência da intermediação dos Estados confederados. As deliberações do Congresso, na prática, acabavam por ter a eficácia de meras recomendações. Não havia, tampouco, um tribunal supremo, que unificasse a interpretação do direito comum aos Estados ou que resolvesse juridicamente diferenças entre eles.

A confederação estava debilitada e não atendia às necessidades de governo eficiente comum do vasto território recém-libertado.

Diante desse quadro, nasce o movimento pela concepção de um Estado federalizado, que pretendia afastar a idéia da formação de várias confederações de Estados, no intuito de promover uma unificação de todos os 13 Estados independentes sob um único governo central, preservada a autonomia de cada um deles, sendo, contudo, reservada a soberania ao País que se formaria de sua união: os Estados Unidos da América (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 57).

Os federalistas, na defesa de suas idéias unificadoras, passaram a expor as vantagens de um governo republicano uno, diminuindo, por conseqüência, suas atuais (da época) imperfeições: a) a distribuição e divisão de poderes, com a introdução da doutrina dos freios e contrapesos ao legislativo; b) a instituição de tribunais com juízes inamovíveis; e c) o voto a proporcionar a representação dos cidadãos nas legislaturas por meio de deputados por eles escolhidos. (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 54).

A par disso, sustentavam os federalistas que para se garantir a perenidade da União que se propunha, seria necessária a existência de um governo forte e enérgico, especialmente no tocante:

a) À atribuição das funções ao governo federal (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 142), a saber: a.1) defender todos os seus membros; a.2) proteger a paz da república contra convulsões interiores e ataques externos; a.3) regular o comércio interno e com as nações estrangeiras; e a.4) dirigir as relações comerciais e políticas com as referidas nações; e

b) Ao grau de poder, eminentemente bélico, necessário à execução dessas mesmas funções (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 142-143): b.1) levantar tropas; b.2) construir e equipar frotas; b.3) prescrever leis para governar umas e outras; b.4) dirigir as suas operações; e b.5) prover a sua sustentação.

Noutro turno, os federalistas diziam que a Constituição proposta poderia ser considerada sob duas perspectivas: a) a primeira levaria à reflexão acerca da soma de poder que ela conferiria à União e retiraria dos Estados; e b) a segunda quanto à distribuição desse mesmo poder entre os diferentes ramos que comporiam o governo unificado[2].

No que toca ao primeiro questionamento, os autores federalistas, HAMILTON, MADISON e JAY, aduziam que se desequilíbrio houvesse, a balança penderia em favor dos Estados-membros e não da União. Nesse sentido, assim argumentavam:

Para nos convencermos de que os governos dos Estados hão de levar sempre a melhor do governo-geral, basta que os comparemos quanto à sua dependência recíproca – quanto ao grau da sua influência pessoal, quanto aos poderes que lhes são respectivamente confiados, quanto à predileção e apoio provável da parte do povo e, finalmente, quanto à vontade e meios de resistir às medidas da autoridade rival e de neutralizar-lhes o efeito.

Ao mesmo tempo em que os governos dos Estados podem ser considerados como partes constituintes e necessárias do Governo Federal, não pode este ser tido por essencial à organização ou à ação deles.

O presidente dos Estados Unidos não pode ser eleito sem o concurso das legislaturas, que devem ter sempre grande parte na sua nomeação, e às vezes tudo.

O Senado há de ser absoluta e exclusivamente eleito pelas legislaturas dos Estados. Mesmo a Câmara dos representantes, ainda que imediatamente tirada do povo, há de ser quase sempre escolhida debaixo da influência desta classe de homens que o seu crédito faz nomear membros das legislaturas dos Estados.

Assim, as duas partes principais do Governo Federal deveram mais ou menos a sua existência ao favor dos governos dos Estados, e ficaram por este motivo constituídas numa espécie de dependência, que mais facilmente as disporá a um excesso de condescendência que à usurpação. Pelo contrário, os membros dos governos dos Estados jamais deveram a sua nomeação à ação direta do Governo Federal e raríssimas vezes à influência local dos seus membros (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 287-288).

Corroborando esse pensamento, Tocqueville[3] já dizia que o Governo dos Estados-membros é a regra, é o direito comum, já o Governo Federal é a exceção, na clara menção de que as competências da União não invadiriam as destinadas aos Estados em razão da autonomia preconizada pela Federação norte americana. Não obstante esse discurso federalista de preservação das competências estaduais, o fato é que o federalismo dos EUA não escapou ao processo de dilatação dos poderes federais e da consequente diminuição das competências estaduais, sendo que nas palavras de Bernard Schwartz “os Estados acabarão como simples relíquias de outrora florescente sistema federativo.”[4]

Elemento importante do modelo federativo norte americano é a figura do Senado. Sobre o tema o “autor federalista” destaca, dentre outros, os seguintes pontos: a) as condições para que possa ter lugar a qualidade de Senador; b) a nomeação dos senadores pelas legislaturas dos Estados; c) a igualdade de representação no Senado; d) os poderes confiados ao Senado. Passemos a vê-los:

a)  As condições para que possa ter lugar a qualidade de Senador: o Senador, diferentemente dos representantes da Câmara, devem ter no mínimo 30 anos de idade e 9 anos de cidadão. “Esta diferença funda-se na natureza das funções dos senadores, que exigem mais instrução e mais estabilidade de caráter. É necessário que quem as desempenhar tenha chegado à idade em que aquelas duas qualidades se acham mais freqüentemente reunidas.” (HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p. 374)

b) A nomeação dos senadores pelas legislaturas dos Estados: além de favorecer a uma melhor escolha, confere, ao mesmo tempo, uma influência maior aos Estados na formação do governo federal, que, diante da independência política do Senado, procurará formar com os governos estaduais um laço útil à consecução de seus projetos de governo. (HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p. 375)

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

c) A igualdade de representação no Senado:

A igualdade de representação é o resultado evidente de uma transação entre as pretensões encontradas dos grandes e pequenos Estados; e, por conseqüência, pequena discussão pode exigir. Se é verdade que entre homens reunidos em corpo de nação cada distrito deve ter parte no governo, em proporção da sua grandeza, e que entre Estados soberanos e independentes, unidos por uma simples liga, os diferentes membros que a compõem, ainda que desiguais em grandeza, devem ter igual porção de influência nas assembléias comuns, não foi sem razão que em uma república composta, que a alguns respeitos se aproxima do governo federativo, apartando-se em outros das suas máximas, se propôs seguir ao mesmo tempo, na composição da legislatura, os princípios da igualdade, e os da proporcionalidade da representação.

(...)

Note-se que a igualdade de votos, concedida a cada Estado, é ao mesmo tempo o reconhecimento constitucional da porção de soberania que se lhes deixa e o meio de sustentá-la (...)

Outra vantagem que resulta da mesma disposição é ser ela um obstáculo demais à admissão das más leis. Com efeito, sendo tal a organização da legislatura, nenhuma lei pode passar: primeiro, sem a cooperação da maioria do povo; segundo, sem a da maioria dos Estados. (grifos nossos) (HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p. 375-376)

d) Os poderes confiados ao Senado: além de defender o povo dos erros da Câmara dos representantes, o Senado teria o dever (e o poder) de defender o “povo dos seus próprios erros e ilusões momentâneas.”[5] Além dessa função, o Senado tem o poder de aconselhar e consentir, contando que se manifestem nesse sentido pelo menos 2/3 dos seus senadores presentes, que o Presidente dos Estados Unidos conclua tratados internacionais (HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p. 388). Além disso, detém o Senado o poder de julgar o Presidente em caso de impeachment (HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p. 394).

Por fim, ao tratar do Chefe máximo da federação, como dito anteriormente, a Constituição dos EUA efetivamente criou a figura do Presidente da República, em oposição à idéia de um monarca, tendo estabelecido sob um viés eminentemente democrático (para a época) seu modo de escolha e a duração do seu governo.

Com efeito, a regra que disciplina a escolha do presidente tem por fundamento uma eleição indireta (por isso se disse “democrático para a época”): no caso, o povo vota em um corpo de representantes/eleitores (extraídos da sociedade civil) ad hoc que, por sua vez, sufragará o presidente dos Estados Unidos.

Quanto às características inerentes ao cargo de Presidente dos Estados Unidos, destacam-se: a) é eleito para um mandato de 04 anos, sendo reelegível enquanto o povo o julgar digno de sua confiança[6]; b) está sujeito a acusação e julgamento, podendo incorrer em perda do cargo, ou em outra penalidade cominada pela lei nos casos de traição, malversação do dinheiro público ou outro crime qualquer; c) a prerrogativa de vetar leis e atos normativos, votados e discutidos nas duas casas do Congresso, não sendo, contudo, absoluta a decisão presidencial, podendo o referido bill ser discutido pela segunda vez no Congresso e adquirir força de lei se reunir 2/3 dos votos da legislatura; d) de igual modo, o Presidente é comandante-chefe do exército e da marinha dos Estados Unidos, assim como das guardas nacionais dos Estados, quando forem chamadas ao serviço da União; e) tem também o direito de perdoar os crimes cometidos contra o Estado, enquanto a acusação não estiver intentada; f) além de ser encarregado da fiel execução das leis e da nomeação para os empregos da administração pública (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 413).

Sendo essas algumas das principais características da Federação norte americana, voltemos nossa atenção ao modelo brasileiro, ainda que sucintamente.

2.2 Notas sobre o Federalismo brasileiro

De início, é de se destacar que a principal diferença entre os movimentos federalistas norte americano e brasileiro é o fato de que no primeiro criou-se um governo central por meio da incorporação das “soberanias” e de parte das competências das 13 antigas colônias, na época já independentes do domínio inglês, perfazendo uma federação de modelo centrípeto ou contrípeto; já o modelo brasileiro trilhou caminho inverso. Nossa federação centrifugou[7] as competências do governo central – já que até a proclamação da república o Brasil era um Estado (Império) unitário, subdivido em províncias, com o monarca como seu chefe supremo[8] –, para os Estados-membros. De modo que se se pudesse atribuir um defeito ao federalismo dos EUA, este seria um desproporcional fortalecimento dos Estados membros no âmbito interno, ao passo que no Brasil, o principal defeito seria o desproporcional enfraquecimento dos Estados-membros se comparados com a União.

Não obstante o comentário acima, o fato é que a partir de 1891[9] até os dias atuais o Brasil adotou a federação como forma de organização política interna, sendo que o art. 60, § 4º, I[10] da atual CF/88 alça à condição de clausua petrea[11] a forma federativa de Estado[12].

Assim, como já apontado, o art. 1º da nossa Lei Fundamental preceitua ser o Brasil uma República Federativa, formada indissoluvelmente pela união dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, sendo que as suas competências[13] estão constitucional e expressamente previstas nos artigos 21, 22, 23, 24, 25, 30 e 32, § 1º, a fim de que não haja nem conflitos, nem desperdício de esforços e recursos em face da existência de mais de uma ordem jurídica incidente sobre o mesmo território e sobre as mesmas pessoas (MENDES, COELHO, BRANCO, 2008, p. 799).

Relativamente às competências, pode-se dizer que o Brasil adotou um modelo de repartição simultaneamente horizontalizado e verticalizado, isto é: há, respectivamente, tanto competências exclusivas (horizontais) próprias a cada um dos entes federativos quanto competências concorrentes (verticais), próprias a alguns entes federativos concomitantemente, sendo que nesse último caso as matérias legislativas de ordem geral são destinadas à União e as envolvendo peculiaridades locais restam afetadas aos Estados, município e Distrito Federal.

Em que pese essa dupla orientação federativa adotada pela Constituição de 1988, percebe-se facilmente uma hipertrofia das competências da União em detrimento das competências dos demais entes federados, como dito no início deste tópico. Exemplo claro desta afirmação são as competências legislativas da União consignadas no art. 22 (incisos de I a XXIX)[14].

No tocante à tributação, ponto de fulcral relevância na busca de um equilíbrio federativo, nossa Constituição em seu art. 24, I diz ser competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal legislar sobre direito tributário, financeiro e econômico. Ocorre que a competência tributária fixada na Constituição destina à União a maior gama da capacidade tributária ativa, como se vê pela leitura dos artigos 148 (empréstimo compulsório), 149 (contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas) e 153 (imposto de importação - II, imposto de exportação - IE, imposto de renda - IR, imposto sobre produtos industrializados, imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valore mobiliários - IOF, imposto sobre a propriedade territorial rural - ITR e imposto sobre grandes fortunas -IGF), o que, por si só, não permite que se alcance o mencionado equilíbrio federativo.

Em agravamento à situação, é de se destacar que o principal tributo de competência dos Estados-membros (imposto sobre as operações relativas à circulação de mercadorias e prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS, art. 155, II), está quase que exaustivamente disciplinado no próprio texto constitucional (art. 155, § 2ª e ss.), extirpando-lhes de fato, por via reversa, a competência para tratar do tema.

Nada obstante as peculiaridades da nossa Federação, deve-se ter em mente que as características geográficas e culturais do Estado brasileiro exigem, bem ou mal, que nossa forma político-organizativa se funde no federalismo[15]. Sendo esse, em linhas gerais o nosso modelo.


3. A Separação dos Poderes nas Constituições brasileiras – um breve passar de olhos

A separação dos poderes constitui-se numa das fases do processo de limitação jurídica do poder político. No caso, a disputa sobre a divisibilidade ou indivisibilidade do Poder do Estado concerne ao processo de (des)concentração das funções típicas que competirão a quem exercer o Poder supremo em um dado território: o Poder de elaborar as leis, de impor o seu cumprimento e o de julgar, com base nelas, o grau de correção das condutas praticadas.

Com efeito, a clássica teoria da Separação dos Poderes, hoje consolidada senão em todos, mas na grande maioria dos Estados Democráticos, tem como patrono Charles-Louis de Secondat, o Barão de La Brède e Montesquieu, que no século XVIII, ao escrever O Espírito das Leis fixou os pilares que ainda hoje sustentam o edifício dos Estados contemporâneos.

Referido autor, que adota como paradigma a Constituição da Inglaterra, desenvolve n’O Espírito das Leis o fundamentos do pensamento acerca da necessidade de se retirar das mãos de um único homem ou de um grupo de homens a concentração de todos os Poderes ínsitos ao Estado, a fim de, fugindo à tirania e à opressão, buscar a liberdade, que consistiria basicamente em fazer tudo o que as leis permitem. Nesse sentido assevera os “porquês” da necessidade de se separar o poder de fazer leis, do de executá-las e do de julgar as condutas de acordo com elas:

A liberdade política, num cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança; e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão.

Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabelecem leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.[16] (grifo nosso) (MONTESQUIEU, 2009, p. 86)

Por sua vez, a evolução constitucional brasileira nos mostra que desde a Constituição Imperial de 1824 até a atual Constituição de 1988 se adota, ainda que formalmente[17], o modelo de Separação dos Poderes, com algumas particularidades a depender da época de vigência da Ordem Constitucional, como se observará a seguir.

Sob a perspectiva da Separação dos Poderes, a Constituição Imperial de 1824 tem como principal característica a sua tetrapartição, com a instituição do Poder Moderador, muito similar ao Poder Prerrogativo do modelo lockeano, assim dispondo em seu Título 3º:

TITULO 3º

Dos Poderes, e Representação Nacional.

Art. 9. A Divisão, e harmonia dos Poderes Politicos é o principio conservador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer effectivas as garantias, que a Constituição offerece.

Art. 10. Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do Imperio do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial.

Art. 11. Os Representantes da Nação Brazileira são o Imperador, e a Assembléa Geral.

Art. 12. Todos estes Poderes no Imperio do Brazil são delegações da Nação.

A Constituição republicana de 1891, por sua vez, consolida o modelo da tripartição dos poderes asseverando em seu artigo 15 que “São órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si.”

Redação próxima a essa se vê no art. 3º da Constituição de 1934, de curta duração: “São órgãos da soberania nacional, dentro dos limites constitucionais, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes e coordenados entre si.”

Com a Constituição de 1937 – embora não contenha dispositivo específico tratando do tema, como as anteriores – mantêm-se formalmente (simuladamente) a Separação dos Poderes. Todavia, em face do seu cunho autoritário, mudanças substanciais foram efetivadas na estrutura orgânica de distribuição do “Poder” no Estado nacional: primeiramente, é bom que se diga que, muito embora o Poder legislativo continuasse bicameral (art. 38, § 1º), o Senado fora dissolvido por força do seu art. 178, assim permanecendo durante todo o período de sua vigência; em segundo lugar, havia previsão de que o Presidente da República poderia dissolver a Câmara dos Deputados (art. 75, b) e nesses casos, bem como nos períodos de recesso do Parlamento, teria a competência de expedir decretos-lei sobre matéria de competência legislativa da União (art. 13); e por fim, o parágrafo único do art. 96 da Carta previa que as decisões do Poder Judiciário que declarassem a inconstitucionalidade de leis, que a juízo do Presidente da República fossem necessárias ao bem-estar do povo e aos interesses nacionais, poderiam ser submetidas novamente ao exame do Parlamento, por ordem do chefe do Poder executivo, a fim de serem confirmadas por dois terços de votos em cada uma das Câmaras. Nesse caso as decisões do Tribunal ficariam sem efeito e o ato normativo voltaria a viger[18].

Assim disposto, na prática o Poder supremo estava concentrado nas mãos do Presidente da República, muito embora, topograficamente, pudesse se encontrar no texto de 1937 a previsão de existência de três poderes no Estado brasileiro ainda que não fossem eles nem independentes nem harmônicos entre si.

Restaurando o regime democrático, a Constituição de 1946 volta a prever expressamente a harmônica tripartição dos Poderes em seu artigo 36: “São Poderes da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si”; conferindo, deste modo, estabilidade política ao Estado nacional por quase duas décadas.

Já em 1967, em face da revolução militar de 1964, instaura-se uma nova ordem constitucional ditatorial que perdurou por outras duas décadas. Referida Constituição fez constar expressamente em seu texto a Separação dos Poderes, corolário da República, quando asseverou no art. 6º que o legislativo, o executivo e o judiciário eram Poderes independentes e harmônicos entre si. Todavia, o processo de escolha do Presidente da República não era tão democrático assim, bem como não refletia a disposição do artigo 1º, §1º daquele diploma: “Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido.” Ora, se todo o poder emana do povo, fórmula legitimatória de atribuição do Poder estatal a um determinado governo, o mesmo deveria ser transmitido por meio de sufrágio direto dos cidadãos. Contudo, o art. 76 da Carta de 1967 previa que o Presidente seria eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral, em sessão pública e mediante votação nominal. Não fosse isso, e talvez a previsão de censura (art. 8º, VII), a Separação dos Poderes não sairia tão lacerada em razão do “golpe” sofrido com a tomada do Poder pelos militares. Ocorre que, dentre outros considerandos[19], para “assegurar a continuidade da obra revolucionária”, o Presidente da República, no referido regime militar, tendo ouvido o Conselho de Segurança Nacional, editou o Ato Institucional nº 5 (AI 5)[20], de dezembro de 1968, que pôs fim à Separação de Poderes e limitou de forma severa direitos e garantias fundamentais do povo brasileiro.

A partir desse momento histórico a Separação de Poderes (e própria democracia) tornou-se simplesmente um simulacro a fim de pseudo-legitimar a atuação do governo revolucionário, eis que de fato concentrava todos os Poderes, ou a sua maior parte (o que já era mais do que suficiente para se constituir um governo ditatorial), nas mãos do Presidente da República que poderia decretar o recesso do Poder legislativo em todas as três esferas, assumindo, juntamente com os Governadores ou Interventores e com os Prefeitos, as referidas competências nas respectivas unidades federativas.

Ademais, todos os atos praticados de acordo com o AI 5 e seus atos complementares encontravam-se excluídos de apreciação judicial, o que de uma só vez reduziu as competências do Poder judiciário como legítimo integrante da tripartite ordem Estatal e aumentou exponencialmente a liberdade de atuação do Poder executivo.

Por fim, suprimindo-se todas as limitações ao poder de atuação do Estado previstas na Constituição, ou seja: fazendo letra morta de todas as garantias e direitos previstos na Lei Fundamental da época, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional (art. 90, §§ 1º e 2º) – o que na prática não significava mais “segurança” para a população –, poderia suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Menos de um ano depois da edição do AI 5, na escuridão do recesso Parlamentar decretado pelo Ato Complementar nº 38, de 13 de dezembro de 1968, em 17 de outubro de 1969 foi promulgada a Emenda Constitucional nº 1 à Constituição de 1967[21], que embora tenha preservado a redação original do art. 6º da Constituição de 1967, que tratava da tripartição harmônica dos Poderes do Estado (legislativo, executivo e judiciário), manteve expressamente a previsão da eleição indireta para o Chefe do Poder executivo (art. 74) e principalmente, no seu art. 182, a vigência do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968 e dos demais Atos posteriormente baixados, o que retirava qualquer força normativa do preceito político e democrático do mencionado art. 6º, chancelando com mão de ferro a rigidez e a tirania do regime revolucionário que se instalara no país.

Vinte anos depois que a Constituição de 67 c/c a EC nº 1/69 foi outorgada, houve a reabertura democrática com a promulgação da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988 (CF/88) que, como já referido, efetivamente adotou a Separação dos Poderes na sua clássica formatação tripartite, tal qual consta da redação do seu art. 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Embora inquestionável a alteração do nosso regime de governo com a adoção da democracia como bússola a nortear o Estado, há quem questione a Separação dos Poderes adotada pela Constituição de 1988, sobretudo no que tange à invasão das competências do Poder legislativo pelo Poder executivo: o caso das Medidas Provisórias, com previsão constitucional no art. 62 e §§, da CF/88.

É lição que se extrai de J. J. Gomes Canotilho o fato de a teoria da Separação dos Poderes trazer naturalmente consigo princípios informadores de sua relevância jurídico-constitucional, dentre os quais está o princípio normativo autônomo que – embora repila uma separação orgânica rígida sem que uma eventual sobreposição de funções (legislativo e judiciário exercendo funções executivas, executivo e legislativo exercendo funções judicantes e executivo e judiciário exercendo funções legislativas) venha a representar a ruptura do modelo separatista – sustenta a higidez da perfalada separação no respeito incondicional ao núcleo essencial dos limites de competência fixados na Constituição para cada um dos Poderes.

Desse modo, o referido autor português cita expressamente o caso do Brasil em torno das medidas provisórias, que segundo ele são “actos provisórios com valor legislativo editados pelo Presidente que é, simultaneamente, chefe de Estado e chefe de Governo” (CANOTILHO, 2003, p. 252, nota de rodapé 17). Tal, no seu ponto de vista, não se coadunaria com a Separação de Poderes, sob o viés do princípio normativo autônomo, pois o Poder executivo violaria o núcleo essencial de competências do Poder legislativo.

Sobre o tema, buscando conferir contornos menos drásticos ao caso específico, Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 156) assim se posicionam:

Inicialmente formulado em sentido forte – até porque assim o exigiam as circunstâncias históricas – o princípio da separação dos poderes, nos dias atuais, para ser compreendido de modo constitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz das diferentes realidades constitucionais, num círculo hermenêutico em que a teoria da constituição e a experiência constitucional mutuamente se completam, se esclarecem e se fecundam.

Nesse contexto de “modernização”, esse velho dogma da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias – que são editadas com força de lei – bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é freqüente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de controle de constitucionalidade.

Nesse mesmo sentido, e adotando como exemplo o próprio exercício de funções legislativas pelo executivo, tendo por base a edição de Medidas Provisórias, Ferreira Filho (2010, p. 163), ao discorrer sobre a interpenetração dos Poderes, parece não enxergar no mencionado caso qualquer ofensa ao núcleo essencial dos limites de competência, mas, ao contrário, afirma que modernamente a especialização funcional do Estado não pode traçar ditas competências em compartimentos estanques e incomunicáveis. Aliás, relembra o autor, que o próprio Montesquieu reconhecia a necessidade de uma comunicabilidade entre os Poderes, de modo inclusive a permitir a perenidade da própria separação. Com efeito, alude que a especialização “inerente” à Separação de Poderes é meramente relativa, consistindo numa predominância no desempenho de uma função, mas que, secundariamente, cada Poder deve estar apto a colaborar no desempenho de outras funções, teoricamente alheias à sua esfera de competências originárias.

Em tal pensamento, é acompanhado por Alexandre Aragão[22] que informa não existir “uma separação de poderes”, mas “muitas”, variáveis segundo cada direito positivo e momento histórico diante do qual nos colocamos. Eis que se se subtrair o “caráter dogmático e sacramental” impingido à clássica Separação dos Poderes, ela poderá ser colocada, sem qualquer prejuízo, em seus devidos termos: consubstanciação de uma divisão das atribuições do Estado entre distintos órgãos, que terão por conseqüência uma proficiente divisão de trabalho e, concomitantemente, configurarão empecilho à perniciosa concentração das funções estatais. E complementa aduzindo que o Princípio da Separação dos Poderes não pode conduzir à assertiva de que cada um dos respectivos órgãos exercerá tão só e necessariamente uma das três funções habitualmente consideradas – legislativa, executiva e judicial; não se podendo, ademais, dele inferir que todas as funções do Estado devam sempre se subsumir a uma das tradicionais espécies classificatórias.

Não se pode deixar de mencionar que o Capítulo IV do Título IV da Constituição Federal de 1988 trouxe uma inovação no que concerne não à clássica Separação de Poderes, mas à Separação de Funções Estatais: a figura das Funções Essenciais à Justiça – FEJ.

Sob a perspectiva acima tratada, mas sem se apartar da separação aqui tratada, Moreira Neto[23] propõe um outro modelo: modelo este que afasta o sentido originário da Separação de Poderes para atrair ao cenário do chamado “neoconstitucionalismo” o sentido da Separação das Funções Estatais. Dentre ditas funções estão as chamadas funções partidariamente descomprometidas, também chamadas de funções neutrais[24].

Segundo afirma, podem ser identificadas cinco espécies de funções neutrais constitucionalmente independentes, dentre as quais se destacam as definidas como essenciais à justiça, “categorizadas como de controle, zeladoria e promoção de interesses juridicamente qualificados de toda natureza, cometidas, respectivamente, conforme a especificidade dos interesses, a quatro complexos orgânicos distintos: ao Ministério Público, à Advocacia de Estado, à Advocacia e à Defensoria Pública (...)” (MOREIRA NETO, 2011, p. 91)

Sob esse viés, caracteriza as FEJ como funções exercidas no Estado que não necessariamente pertenceriam ou se veriam inseridas, como de fato não pertencem nem se inserem, a nenhuma das outras funções (executiva, legislativa e judiciária) exercidas pelo ou no Estado.

Sobre o autor
Filipo Bruno Silva Amorim

Procurador Federal, atualmente exercendo o cargo de Vice-Diretor da Escola da Advocacia-Geral da União. Bacharel em Direito pela UFRN. Especialista em Direito Constitucional pela UNISUL. Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Filipo Bruno Silva. A República Federativa do Brasil e o Estado democrático de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3398, 20 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22839. Acesso em: 23 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!