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A democracia e suas dificuldades contemporâneas

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Agenda 01/10/2001 às 00:00

IV - Insuficiência dos meios concebidos para salvaguarda dos ideais democráticos

12. Os valiosos expedientes a que se vem de aludir, minimizaram, mas não elidiram, a debilitação dos indivíduos perante o Estado, assim como o enfraquecimento da interação entre os cidadão e o Poder Público.

O certo é que entre a lei e os regulamentos do Executivo, hoje avassaladoramente invasivos de todos os campos (nada importando quanto a isto que hajam sido autorizados expressamente ou resultem da generalidade das expressões legais que os ensejam), há diferenças extremamente significativas que, no caso dos regulamentos, repercutem desfavoravelmente tanto no controle do poder estatal, quanto na suposta representatividade do pensamento das diversas facções sociais. Estas diferenças, a seguir referidas, ensejam que as leis ofereçam aos administrados garantias muitas vezes superiores às que poderiam derivar unicamente das características de abstração e generalidade também encontradiças nos regulamentos.

13. Deveras, as leis provêm de um órgão colegial - o Parlamento - no qual se congregam várias tendências ideológicas, múltiplas facções políticas, diversos segmentos representativos do espectro de interesses que concorrem na vida social, de tal sorte que este órgão do Poder se constitui em verdadeiro cadinho onde se mesclam distintas correntes. Daí que o resultado de sua produção jurídica, termina por ser, quando menos em larga medida, fruto de algum contemperamento entre as variadas tendências. Até para a articulação da maioria requerida para a aprovação de uma lei, são necessárias transigências e composições, de modo que a matéria legislada resulta como o produto de uma interação, ao invés da mera imposição rígida das conveniências de uma única linha de pensamento.

Com isto, as leis ganham, ainda que em medidas variáveis, um grau de proximidade em relação à média do pensamento social predominante muito maior do que ocorre quando as normas produzidas correspondem à simples expressão unitária da vontade comandante do Executivo, ainda que este também seja representativo de uma das facções sociais, a majoritária. É que, afinal, como bem observou KELSEN, o Legislativo, formado segundo o critério de eleições proporcionais, ensejadoras, justamente, da representação de uma pluralidade de grupos, inclusive de minorias, é mais democrático que o Executivo, ao qual se acede por eleição majoritária ou, no caso do Parlamentarismo, como fruto da vitória eleitoral de um partido. Daí que os regulamentos traduzem uma perspectiva unitária, monolítica, da corrente ou das coalizões partidárias prevalentes.

14. Além disto, o próprio processo de elaboração das leis, em contraste com o dos regulamentos, confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade e imparcialidade muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção incomparavelmente maiores.

É que as leis se submetem a um trâmite graças ao qual é possível o conhecimento público das disposições que estejam em caminho de serem implantadas. Com isto, evidentemente, há uma fiscalização social, seja por meio da imprensa, de órgãos de classe, ou de quaisquer setores interessados, o que, sem dúvida, dificulta ou embarga eventuais direcionamentos incompatíveis com o interesse público em geral, ensejando a irrupção de tempestivas alterações e emendas para obstar, corrigir ou minimizar tanto decisões precipitadas, quanto propósitos de favorecimento ou, reversamente, tratamento discriminatório, gravoso ou apenas desatento ao justo interesse de grupos ou segmentos sociais, econômicos ou políticos. Demais disto, proporciona, ante o necessário trâmite pelas Comissões e o reexame pela Casa Legislativa revisora, aperfeiçoar tecnicamente a normatização projetada, embargando, em grau maior, a possibilidade de erros ou inconveniências provindos de açodamento. Finalmente, propicia um quadro normativo mais estável, a bem da segurança e certeza jurídicas, benéfico ao planejamento razoável da atividade econômica das pessoas e empresas e até dos projetos individuais de cada qual.

15. Já os regulamentos carecem de todos estes atributos e, pelo contrário, ensancham as mazelas que resultariam da falta deles. Opostamente às leis, os regulamentos são elaborados em círculo restrito, fechado, desobrigados de qualquer publicidade, libertos, então, de qualquer fiscalização ou controle da sociedade ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matéria. Sua produção se faz em função da diretriz estabelecida pelo Chefe do Governo ou de um grupo restrito, composto por seus membros. Não necessita passar, portanto, pelo embate de tendências políticas e ideológicas diferentes. Sobre mais, irrompe da noite para o dia e assim também pode ser alterado ou suprimido.

Tudo quanto se disse dos regulamentos em confronto com as leis, deve-se dizer - e com muito maior razão - das medidas provisórias, sobretudo tal como utilizadas no Brasil, isto é, descompasso flagrante com seus pressupostos constitucionais e com a teratológica reiteração delas.


V - Possível agravamento da crise da democracia

16. Ao que foi dito cumpre acrescer - e é este possivelmente o aspecto mais importante - que, na atualidade, está ocorrendo um distanciamento cada vez maior entre os cidadãos e as instâncias decisórias que lhes afetam diretamente a vida. A claríssima tendência à formação de blocos de Estados, de que a Europa é a mais evidente demonstração, por exibir um estágio qualitativamente distinto das ainda prodrômicas manifestações, mal iniciadas em outras partes, revela o surgimento de fórmulas políticas organizatórias muito distintas das que vigoraram no período imediatamente anterior e, como dito, um distanciamento, quase que inevitável entre o cidadão e o Poder. Com efeito, as decisões tomadas pelos Conselhos de Ministros Europeus (os quais não são investidos por eleições para este fim específico) possivelmente afetam de maneira mais profunda a vida de cada europeu do que as tomadas pelos respectivos Parlamentos nacionais, isto é, pelos que receberam mandato expresso para lhes regerem os comportamentos (O chamado "Parlamento Europeu", distintamente do que o nome sugere não é um órgão legislativo).

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Procederia concluir que um número cada vez menor de pessoas decide sobre a vida de um número cada vez maior delas e que os modelos tradicionais, sobre os quais se assentou e se procurou assegurar a democracia, estão se esgarçando. Os valores liberdade, igualdade, assim como a realidade da soberania popular (que se pretendeu traduzir nas formas institucionais da democracia representativa) encontram-se, hoje, provavelmente, muito mais resguardados enquanto valores incorporados à cultura política do ocidente desenvolvido, do que, propriamente, pela eficiência dos vínculos formais das instituições jurídico-políticas. Dito de outro modo: a convicção generalizada de que liberdade e igualdade são bens inestimáveis atua como um freio natural sobre os governantes e permite que a positividade concreta de tais valores se mantenha ainda incólume, conquanto as instituições concebidas para assegurá-los já não possuam mais as mesmas condições de eficácia instrumental que possuíram.

Para usar uma imagem exacerbada, é como se já houvesse se iniciado uma caminhada em direção a um "despotismo esclarecido".

17. Poder-se-ia entender que os valores próprios da democracia encontram-se tão profundamente enraizados na consciência coletiva de sociedades politicamente mais evoluídas que se constituiriam em estágio já definitivamente incorporado, tornando impensável a possibilidade de qualquer retrocesso, independentemente da intrínseca eficiência das instituições concebidas para lhes oferecer o máximo de respaldo.

Nada garante, entretanto, o otimismo desta suposição. Ainda permanece verdadeira a clássica asserção de MONTESQUIEU: "todo aquele que tem poder tende a abusar dele; o poder vai até onde encontra limites" . A História da humanidade, inobstante a progressiva evolução em todos os campos, confirma, tanto quanto fatos e episódios ainda muito recentes, que a prevalência de idéias generosas ou o sepultamento de discriminações odiosas e preconceitos de toda ordem mantém correlação íntima com as situações coletivas de bem estar e segurança. E duram tanto quanto duram estas.

18. No patamar do humano existem algumas constantes de comportamento social comuns à generalidade da esfera animal. Tal como os irracionais, que, uma vez saciados, convivem bem com as demais espécies e, inversamente, agridem quando tangidos pela fome ou acicatados pelo temor, também as coletividades humanas, quando ameaçadas pela presumida insegurança ou pelo risco ao seu bem estar, substituem suas convições e ideais mais elevados pelas pragmáticas (e já agora especificamente humanas) racionalizações e atacam com zoológica violência. Surtos de racismo, de rechaço ao estrangeiro, de nacionalismo exacerbado, de inconformismo com as levas migratórias advindas de um refluxo do colonialismo ou simplesmente da descomposição política, econômica ou social de outras sociedades - quaisquer deles já prenunciados nas tendências de grupos políticos ou sociais em algumas sociedades européias - tanto como o recente e devastador consórcio bélico dos principais Estados desenvolvidos contra um país árabe, o Iraque (cujo ditador, quanto a isto, em nada é diferente dos demais, distinguindo-se deles apenas em que se revela mais resistente aos interesses das grandes potências e mais preocupado na defesa dos pertinentes ao próprio País), demonstram exemplarmente a precariedade das idéias que não se encontrem alicerçadas, simultaneamente, em interesses e em instituições formais hábeis para mantê-las consolidadas.

À vista deste panorama, ainda incipiente, mas desde logo preocupante, é difícil prenunciar, nestes umbrais do próximo milênio, o que seus albores reservam para a sobrevivência da democracia e, muito mais, portanto, para as possibilidades dos países subdesenvolvidos acederem às condições propiciatórias de uma democracia substancial. É que os subdesenvolvidos têm sido e são, naturalmente, meros piões no tabuleiro de xadrez da economia e, pois, da política internacional; logo, por definição, sacrificáveis para o cumprimento dos objetivos maiores dos que movem as peças.


VI- Globalização e neo-liberalismo: novos obstáculos à democracia

19. Talvez se possa concluir, apenas, que as condições evolutivas para aceder aos valores substancialmente democráticos, como igualdade real e não apenas formal, segurança social, respeito à dignidade humana, valorização do trabalho, justiça social (todos consagrados na bem concebida e mal-tratada Constituição Brasileira de 1988), ficarão cada vez mais distantes à medida em que os Governos dos países subdesenvolvidos e dos eufemicamente denominados em vias de desenvolvimento - em troca do prato de lentilhas constituído pelos aplausos dos países cêntricos - se entreguem incondicionalmente à sedução do canto de sereia proclamador das excelências de um desenfreado néo-liberalismo e de pretensas imposições de uma idolatrada economia global. Embevecidos narcisisticamente com a própria "modernidade", surdos ao clamor de uma população de miseráveis e desempregados, caso do Brasil de hoje, não têm ouvidos senão para este cântico monocórdio, monolítica e incontrastavelmente entoado pelos interessados.

20. Diga-se de passagem que é incorreta a suposição de que tanto a chamada "globalização da economia" (com as feições que, indevidamente, se lhe quer atribuir como inerências), quanto o "neo-liberalismo", constituam-se simplesmente em um estágio evolutivo determinado tão só por transformações econômicas inevitáveis e, conseqüentemente, que encampá-las nada mais significa senão adotar uma atitude racional de atualização do pensamento para mantê-lo conformado ao que há de incoercível no desenvolvimento histórico. Esta forma de "interpretar" o fenômeno presente é - como freqüentemente ocorre - apenas uma forma astuciosa de valorizar o próprio ideário e de desacreditar, por antecipação, as contestações que se lhes possam fazer. É que traz consigo, implícita, ou mesmo explicitamente, a prévia qualificação dos que se lhe oponham, como ultrapassados ("dinossauros").

Em rigor, elas nada mais são que "teorizações" pobres, racionalizações, elaboradas para justificar interesses meramente políticos - e destarte contendíveis - dos países cêntricos e das camadas economicamente privilegiadas, em cujo bojo e proveito foram gestadas. Com efeito, o modesto acervo de idéias atualmente difundidas "sub color" de verdade científica universal nada mais é que o uso de nomenclaturas novas encobridoras de experiências velhas, destinadas a consagrar um simples movimento de retorno, quando menos parcial, ao século passado, ao "statu quo" precedente à emergência do chamado Estado Social de Direito ou Estado Providência.

21. Relembremos que a partir de meados do século XIX e sobretudo no início do atual irrompeu e expandiu-se um movimento de inconformismo das camadas sociais mais desfavorecidas cujas condições de vida, como é notório, eram extremamente difíceis. Fazendo eco a tais eventos, eclodiram, no campo das idéias e sucessivamente das realizações políticas, manifestações, de maior ou menor radicalismo, ponto de origem de duas diversas vertentes - comunismo e social democracia - insurgentes ambas contra o quadro político social da época.

O manifesto comunista (1848) e assim também ulteriormente Encíclicas papais ("Rerum Novarum", 1891, "Quadragesimo Ano", 1931) são expressivas de uma visão então crítica e renovadora. Os resultados concretos deste panorama de insurgência, em suas duas vertentes, foram, respectivamente, de um lado, a Revolução Comunista de 1917 e implantação de tal regime na Rússia e, de outro a expansão da social democracia. Em sintonia com esta segunda vertente, consagraram-se, pois, pela primeira vez, em Texto Constitucional, os "Direitos Sociais", na Constituição Mexicana, também de 1917 e ao depois na Constituição alemã, de Weimar, em 1919, disseminando-se pelo mundo a acolhida de tais direitos, de tal sorte que a preocupação em fazer do Estado um agente de melhoria das condições das camadas sociais mais desprotegidas expande-se ao longo de todo o século presente, explicando porque passou a ser referido como Estado Social de Direito ou Estado Providência. De outra parte, o regime comunista, ano a ano se alastrava, implantando-se em novos países. Paralelamente, o colonialismo e seu sucessor, o imperialismo das grandes potências do Ocidente, inicia um processo de agonia, lenta, mas contínua, afligido também por censuras crescentes ao excessivo desequilíbrio entre as nações (Encíclicas "Mater er Magistra", 1961, "Pacem in Terris", 1963 e "Populorum Progressio", 1967).

22. Foi, desde o início, o temor de que se expandisse a concepção comunista - radicalmente antitética à sobrevivência do capitalismo - com sua capacidade de atrair as massas insatisfeitas, ou quando menos de alimentar os ativistas que as mobilizavam, o que forneceu o necessário combustível para a implantação e disseminação do Estado Social de Direito. Com efeito, a História não registra gestos coletivos de generosidade das elites para com as camadas mais carentes (ainda que seja pródiga em exemplos dela no plano individual). Ora bem, assim como o receio do comunismo propiciou a irrupção do Estado Providência, sua falência na União Soviética e no Leste Europeu - e sinais precursores de seu declínio no Extremo Oriente - está a lhe determinar o fim.

23. A simples cronologia dos eventos e das correlatas idéias o demonstram de modo incontendível. O Estado Social de Direito emerge, encerrando o ciclo do liberalismo, quando emerge o comunismo. Tão logo fracassa o comunismo, renascem, de imediato, com vigor máximo as idéias liberais, agora "recautchutadas" com o rótulo de "néo", propondo liminarmente a eliminação ou sangramento das conquistas trabalhistas e direitos sociais, do mesmo passo em que revive o imperialismo pleno e incontestado, sob a designação aparentemente técnica de "globalização". Não há nisto, como é óbvio, coincidência alguma. O que há é disseminação de idéias políticas, de interesse dos países dominantes e das camadas sociais mais favorecidas. Livres, uns e outros, dos temores e percalços que lhes impuseram as concessões feitas no curso do século presente, empenham-se, agora, ao final dele, em retomar as posições anteriores. Trata-se, como se vê, de um retorno ao mesmo esquema de poder, nos planos interno e internacional, vigente no final do século passado e início deste, sob aplausos praticamente unânimes em ambas as frentes.

No momento, parece que não há mais núcleo algum capaz de contender esta rebarbativa unaninimidade que se auto lisonjeia com o qualificativo de moderna, categorizando como ultrapassados quaisquer que ainda não hajam renunciado ao trabalho de pensar criticamente. A bipolaridade mundial, dantes existente (mas finda com a implosão da União Soviética), com o confronto de idéias provindas dos dois centros produtores de ideologias antagônicas, ensejava, além da área de fricção, de per si desgastadora de seus extremismos, um natural convite à crítica de ambas, na trilha da síntese resultante de tal dialética. A momentânea ausência das condições objetivas para um debate consistente possivelmente é, para os países subdesenvolvidos, um dos piores dramas deste final de milênio e um dos maiores obstáculos a que venham, finalmente, a abicar em regimes efetivamente democráticos.

Sobre o autor
Celso Antônio Bandeira de Mello

professor titular de Direito Administrativo da PUC/SP, professor honorário da Universidade de Mendoza (Argentina), do Colegio Mayor de Rosario (Colômbia), membro correspondente da Associação Argentina de Direito Administrativo, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo e do Instituto de Direito Administrativo Paulista (IDAP), membro do Instituto Internacional de Derecho Administrativo Latino, ex-conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo, membro remido da Associação de Advogados de São Paulo, diretor da Revista Trimestral de Direito Público, autor de diversas obras sobre Direito Administrativo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELLO, Celso Antônio Bandeira. A democracia e suas dificuldades contemporâneas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2290. Acesso em: 30 abr. 2024.

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