Resumo: Na hierarquia dos atos normativos, a lei se sobrepõe ao decreto, que existe para regulamentá-la. No entanto, a Constituição consagrou espaços de atuação originária do Poder Executivo, no qual a lei não pode invadir, sob pena de receber a pecha da inconstitucionalidade. É a chamada “reserva de administração” dos regulamentos autônomos.
Palavras-chave: Lei. Decreto. Hierarquia. Regulamentos autônomos. Reserva de administração.
A lei, como principal fonte de regulação de comportamentos, é uma conquista democrática. Expressão da vontade geral, na difundida expressão de Carré de Malberg, a lei é a principal fonte de direitos e obrigações para os particulares e para o próprio Poder Público, afinal ninguém é obrigador a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Um Decreto, por se tratar de ato infralegal, não pode se sobrepor à lei, já que dela retira seu fundamento de validade. No entanto, sem adentrar na questão da crise da lei[1], existem espaços de atuação da Administração Pública inerente ao exercício de sua competência, ao qual é defeso à lei invadir, sob pena de inconstitucionalidade. É a chamada “reserva de administração”.
Com efeito, a lei não pode tudo. O Congresso Nacional, embora dotado de legitimidade popular, não pode, por meio de lei, nomear e exonerar Ministros, condeder indultos, comutar penas, declarar a guerra, nem dispor sobre a organização e funcionamento da Administração Pública. Nos primeiros exemplos soaria até estranho imaginar uma inversão de competências dessa natureza entre o Executivo e o Legislativo. No entanto, no último exemplo, a organização e funcionamento da Administração Pública, é que estão os casos mais emblemáticos dessa reserva infensa à disciplina legislativa.
No âmbito do Poder Executivo, a organização e funcionamento de algum órgão é sempre feita por Decreto do Presidente da República . Nesse sentido, reza o art. 84, VI, “a” da Constituição Federal:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VI – dispor, mediante decreto, sobre:(Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001) “
Os Decretos podem ser de mera execução – os mais comuns –, quando apenas ampliam a eficácia da Lei, sem destoar de suas prescrições, garantindo-lhe “o seu fiel cumprimento” (art. 84, IV da CF) ou podem ser Decretos autônomos, que tem por fundamento de validade a prória Constituição, inovando na ordem jurídica nas matérias que lhes são afetas (art. 84, VI da CF).
A competência do Presidente para disciplinar a “a organização e o funcionamento da administração federal” é consectária lógica do princípio da separação dos Poderes, que concentra nas mãos do Chefe do Poder Executivo a gestão da máquina federal e, por conseguinte, lhe dá os meios para que o faça.
De nada valeria a atribuição de competências privativas ao Presidente, se o Legislativo pudesse nela se imiscuir, ou vice-versa. Seria absurdo pensar em Decreto Presidencial dispondo sobre o Regimento Interno do Senado, assim como não faz sentido pensar em Lei tratando da organização e funcionamento da Administração Federal.
A esse respeito, no julgamento de ação direta de inconstitucionalidade contra lei do Estado do Rio Grande do Sul (ADI nº 2.806-5/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão), o STF entendeu que, dentre outras afrontas ao Texto Magno, a lei gaúcha revelava-se contrária “ao poder de disposição do Governador do Estado, mediante decreto, sobre organização e funcionamento de órgãos administrativos, no caso das escolas públicas”. Vale lembrar que a ratio decidendi de uma decisão de inconstitucionalidade, em sede de controle concentrado, passa a vincular outros julgamentos, por força da teoria dos efeitos transcendentes dos motivos determinantes[2].
Outrossim, a estruturação, organização, atribuições e funcionamento da Administração Federal são matérias reservadas aos Decretos de que trata o art. 84, VI, “a” da Constituição, após as mudanças levadas a cabo pela EC nº 32/2001 que lhes subtraiu do campo do processo legislativo.
Com efeito, na redação antiga, o art. 84, VI da CF rezava:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VI - dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Federal, na forma da lei;”
A atual redação deixou clara a intenção de tratar a matéria apenas por Decretos, pelos chamados regulamentos autônomos, pois retirou do Texto Constitucional a expressão “na forma da lei”, excluindo a matéria do processo legislativo, in verbis:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(…)
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; ”
A Emenda Constitucional nº 32/2001 também afastou da competência do Poder Legislativo o tratamento da estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da Administração Pública em geral. Na sua redação originária, o art. 88 da CF prescrevia:
“Art. 88. A lei disporá sobre a criação, estruturação e atribuições dos Ministérios”.
Na nova redação, a estruturação e atribuições de órgãos administrativos foram excluídas da reserva da lei, reforçando tratar-se de assunto da alçada exclusiva dos Decretos:
“Art. 88. A lei disporá sobre a criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública.”
Além disso, foram reduzidas, expressamente, as atribuições do Congresso Nacional, retirando da competência normativa do Poder Legislativo matérias agora atribuídas ao Chefe do Executivo. Nesse sentido, o art. 48, X e VI da CF dispunha, originalmente, o seguinte:
“Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
(…)
X – criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas;
XI – criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública;”
O texto vigente passou a ser o seguinte:
“Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
(…)
X - criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que estabelece o art. 84, VI, b;
XI - criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública;”
Na mesma linha de reforma, foi alterada a alínea “e” do inciso II do § 1º do art. 61 da Constituição Federal, que trata da iniciativa legislativa reservada ao Presidente da República. Com efeito, a redação originária era a seguinte:
“Art. 61. (in omissis):
§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
(…)
II - disponham sobre:
(…)
e) criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública”.
Após a EC nº 32/01, foram colocadas de fora do processo legislativo matérias referentes à “estruturação” e “atribuições” dos órgãos administrativos:
“Art. 61. (in omissis):
§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
(…)
II - disponham sobre:
(…)
e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI”
A EC nº 32/2001 promoveu, portanto, uma verdadeira mudança de paradigma no direito constitucional e no direito administrativo brasileiro.
Mesmo antes da EC nº 32/2001, já havia espaços normativos em que o Parlamento não podia se imiscuir, a exemplo do art. 155, §2º, XII, “g” da CF/88. Segundo a Lei Maior, somente por deliberação, mediante convênio, dos Estados e do Distrito Federal é que poderão ser concedidos benefícios fiscais referentes ao ICMS. Qualquer Lei que invadisse essa esfera exclusiva de competência da Administração era taxada, pela jurisprudência pacífica do STF[3], de inconstitucional.
Um outro caso bastante interessante ilustra bem a questão. A Lei nº 6.385/76, que criou a Comissão de Valores Mobiliários, foi alterada pelo Decreto nº 3.995/2001, resultando no ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 2601, Rel. Min. Carlos Veloso), em que se impugnou, dentre outras coisas, a revogação de dispositivos de Lei por um Decreto. O Supremo ainda não julgou a ação, mas o Ministério Público Federal pugnou pela improcedência dos pedidos. Ou seja, para o Procurador-Geral da República, é constitucional a revogação de dispositivos de Lei por um Decreto do Presidente da República, quando se tratar de matéria que lhe é reservada (art. 84, VI, “a” da CF).
O processo legislativo é rico em exemplos similares. Nesse sentido, o Ministro da Fazenda, na Exposição de Motivos nº 213, que resultou no referido Decreto nº 3.995/2001, registrou que “as atribuições e a estruturação dos Ministérios e órgãos da administração pública não mais tocam à lei, podendo ser veiculadas em decreto autônomo – (...) espécie normativa primária – desde que não implique aumento de despesa ou criação ou extinção de órgãos públicos”.
Em outro exemplo também envolvendo a CVM, houve o veto presidencial, por inconstitucionalidade, contra o art. 5º do Projeto que resultou na Lei nº 10.303/2001, que pretendia acrescentar o art. 21-A à Lei nº 6.385/76. Na Mensagem nº 1213/2001, o Presidente da República defendeu que as normas que “têm por objetivo atribuir competências à Comissão de Valores Mobiliários (...) tornaram-se, por força da Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, questões reservadas a Decreto”. E o veto, diga-se de passagem, não foi derrubado pelo Congresso Nacional.
Mais recentemente, o Presidente da República, na Mensagem nº 182/03, utilizou o mesmo argumento para vetar dispositivo do Projeto de Lei de Conversão nº 1 de 2003 (Medida Provisória nº 79/02 – o chamado “Estatuto do Torcedor”), sobre dispositivos que estabeleciam “atribuições ao Ministério do Esporte, que, por serem ínsitas à organização e funcionamento de órgão da administração pública, devem ser objeto de decreto”.
Em outras palavras, o Chefe do Executivo interveio, com o veto jurídico, no processo legislativo de conversão de uma Medida Provisória, que é ato normativo de sua iniciativa, por entender que certas matérias não poderiam ser disciplinadas por lei, sob pena de usurpar sua competência constitucional prevista no art. 84, II e VI da CF.
O exemplo do Estatuto do Torcedor deixa claro, portanto, que de pouco importa de quem foi a iniciativa legislativa: o tratamento da matéria por lei retira do Chefe do Poder Executivo a agilidade necessária para administrar a máquina federal.
A doutrina não destoa dessa orientação. Maria Sylvia Zanella Di Pietro[4] defende que, a partir da EC nº 32/2001, na “seara especí?ca e restrita” da organização interna da Administração, existe uma “reserva de regulamento, sendo vedada intromissão legislativa nesses assuntos, sob pena de inconstitucionalidade.”
No julgamento da ADI nº 4663/RO no Supremo, o Min. Luiz Fux, ao apreciar a questão sobre a vinculatividade do Executivo à lei orçamentária, defendeu que “existem espaços de reserva de administração, atos cuja realização é atribuída à Administração Pública, sob sua conveniência e oportunidade, como a celebração de contratos administrativos”. Esse julgamento cuidou do estudo do caráter vinculante do orçamento brasileiro, reconhecendo que a regulação de pormenores seria uma questão afeta à Administração. Não cuidou, evidentemente, da separação de atribuições normativas entre os Poderes, mas ratificou que a lei não pode tudo, nem mesmo administrar.
Portanto, não se está diante de nenhuma novidade. Conquanto estranho, num primeiro momento, a ideia de prevalência de um Decreto sobre a Lei, a questão se resume ao respeito à separação dos poderes e ao respeito mútuo, entre Executivo e Legislativo, sobre o exercício das atribuições de cada um e a forma como ela se exterioriza: mediante Lei ou mediante Decreto.
Notas
[1]BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 2ª Ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 125
[2]Rcl 2986 MC/SE (Informativo nº 379/STF), Rcl 2.475 (Informativo nº 335/STF).
[3] ADI 286-RO. Rel. Min. Maurício Corrêa. DJ, 30/08/2002, p. 60.
[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Direito regulatório: temas polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2003. p. 566