8. Enquadrando o software: o direito fundamental processual à transparência tecnológica
A transparência não deve ser apenas da informação, mas da ferramenta que trata a informação também.
CF, art. 5°, LXXIX - a todos, no âmbito judicial e administrativo, é assegurado o acesso pleno às normas tecnológicas: transparência tecnológica.
Segundo Oliveira Baracho, “ [...] as Constituições do século XX, com poucas ressalvas, reconhecem a necessidade de proclamação programática de princípio do direito processual como necessário, no conjunto dos direitos da pessoa humana e as garantias respectivas.” 33
Os esforços teóricos parecem indicar ser necessário alargar o famoso princípio do devido processo de uma forma expressa. Os juristas da Common Law sempre se negaram a enquadrá-lo num conceito, deixando-o aberto para movimentos como os que agora se fazem necessários34.
Como informa Paulo Henrique dos Santos Lucon, a manifestação paradigmática do juiz Frankfurter, da Suprema Corte Norte Americana, em 1951, espelha bem esse pensamento. Para o magistrado, o devido processo não cabe nos limites de uma fórmula, “[...] o due process é produto da história, da razão, do fluxo das decisões passadas e da inabalável confiança na força da fé democrática que professamos.” 35 Embora, nesse primeiro passo, Frankfurter se volte ao passado e valorize as raízes do instituto, ele não dá a formulação do Due Process como acabada. Ao contrário, ele avança seu raciocínio para a ideia de processo, de contínuo vir a ser, dizendo que o Devido Processo não é mecanicista, nem representa um padrão imutável, sendo “[...] um delicado processo de adaptação que inevitavelmente envolve o exercício de julgamento por aqueles a quem a Constituição confiou o desdobramento desse processo”. Menciona, pois, um processo de adaptação permanente às circunstâncias externas novas que devem ser enfrentadas pela comunidade. Num linguajar pós-positivista, falar-se-ia em concretização atualizante dos conteúdos. E relembra a profética advertência de John Marshall, de 1819, sobre a durabilidade das constituições – “durar por eras” – e sobre a necessária ductibilidade exegética de seu texto – “ser adaptada às várias crises das atividades humanas.” 36
Assim, o grande guarda-chuva da principiologia fundamental processual precisa albergar mais alguns subprincípios. Tudo indica ser necessária a explicitação de um direito fundamental processual à transparência tecnológica, para espancar perplexidades no assunto. A transparência não deve ser apenas da informação, mas da ferramenta que trata a informação também.
O entendimento do software, seus limites e possibilidades, e a aceitação do caráter duplo-instrumental da tecnologia37 (instrumento a serviço do instrumento), devem levar os juristas a concluir que o devido processo passa a incluir, na nova realidade do processo eletrônico, esse indispensável subprincípio: da transparência tecnológica. Mais ainda quando se caminha da direção da unicidade do sistema eletrônico de processamento de ação judicial, conforme a pretensão do Conselho Nacional de Justiça.
Na construção de uma linha argumentativa em prol dessa previsão, podem-se situar os tópicos adiante que, sem dúvida, mereceriam outras e mais profundas considerações, incompatíveis com a extensão deste artigo.
8.1 Na relação processual, o software desloca (assume o lugar de) servidores e também o juiz.
A tecnologia não é um mal a ser espancado. Ela é um bem a ser controlado. E a transparência é um instrumento efetivo para esse controle.
Os jurisdicionados têm direito à transparência tecnológica, não apenas informacional.
A softwarização do processo já evidencia, a toda prova, que o software assume papéis antes entregues ao prudente arbítrio do juiz, além de aos servidores. E tem de ser assim mesmo, para o bem do processo. Não há porque não ser, embora isso tenha de estar transparente em moldes adequados, sobre os quais se fazem sugestões neste trabalho.
Alguns casos já vividos são notórios, como o famoso e recente caso em que um recurso foi considerado intempestivo porque o horário do sistema processual era o de Brasília e o recurso vinha de um Estado com outra hora. Outros são corriqueiros, como as muito comentadas rejeições de peças porque não se atendem limites de tamanho que “alguém” incluiu no software por conveniências de ordem administrativa ou financeira. Aliás, numa manobra em que direitos fundamentais são desprezados e prevalecem as tais conveniências.
Os processos sempre tiveram atores visíveis e invisíveis. Em legitimação pelo procedimento, ao tratar da autonomia do sistema processual, Niklas Luhmann38 evidencia a preocupação com os atores invisíveis, presentes no processo via papéis externos dos operadores. Mas o software é um invisível permitido, extremamente ativo e que age diretamente, não pela via de outros operadores.
A tecnologia não é um mal a ser espancado. Ela é um bem a ser controlado. E a transparência é um instrumento efetivo para esse controle. Os jurisdicionados têm o direito à transparência tecnológica, não apenas informacional.
8.2. A softwarização permite evoluir na virtualização e a transparência passa a ser essencial.
A tecnologia tem sido usada, no sistema processual, principalmente para a gestão de rotinas e e documentos. Entende-se que o uso da tecnologia deverá avançar para levar o sistema processual à condição de um efetivo sistema de apoio à decisão, quando o juiz passará, finalmente, a utilizar a tecnologia em favor do cumprimento de seu mister constitucional de decidir. Até o presente momento, todos se beneficiaram da introdução da tecnologia no processo (partes, advogados, MP etc), menos os juízes. Esses tiveram sua carga de trabalho ampliada e suas responsabilidades, inclusive administrativas (?), aumentadas ou dificultadas.
Esse maior apoio ao juiz significa transferir mais atividades para o software, o que pode ser expresso sob a forma de “aumentar a inteligência do sistema processual” ou, como se demonstrou em outro trabalho39, de caminhar da “digitalização” para a “virtualização”.
Vê-se que, nessa ampliação da softwarização do sistema processual, mais importante se torna a transparência tecnológica.
8.3. A insuficiência da abertura do código-fonte
É preciso pensar e escrutinar o software em termos jurídico-normativos também, não apenas tecnológicos.
Como visto, para alguns a abertura dos códigos-fonte40 seria um instrumento, previsto em lei, suficiente para garantir a transparência tecnológica.
Este tópico, parcialmente abordado acima, merece considerações adicionais, embora um tratamento efetivo dele exigisse um artigo específico. Apresentam-se, portanto, apenas algumas ponderações pontuais a respeito, tendo em vista a profunda conexão disso com a questão da transparência tecnológica.
8.3.1. Aspectos do regime legal em vigor que comprometem a transparência
No artigo 14, da lei 11.419/2006, lê-se: “os sistemas a serem desenvolvidos pelos órgãos do Poder Judiciário deverão usar, preferencialmente, programas com código aberto, acessíveis ininterruptamente por meio da rede mundial de computadores, priorizando-se a sua padronização.”
O legislador nacional fala dos “sistemas a serem desenvolvidos pelos órgãos do Poder Judiciário”. O legislador não diz que o processo eletrônico será operacionalizado com sistemas desenvolvidos pelo PJ. Portanto, o regramento do artigo ocupa-se de um subconjunto de tais sistemas, não de todos. Ficam de fora os que não são desenvolvidos pelo PJ. A regra, no plural, claramente aponta para um subconjunto não necessariamente unitário, ou seja, para um sistema único. Tanto é assim que a última recomendação do artigo é de padronização. Não se padroniza o único. Padronizam-se os vários.
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Nos termos da lei, portanto, se o Poder Judiciário desenvolver sistemas, ficará sujeito à observância da disposição que vem a seguir: tais sistemas deverão “[...] usar, preferencialmente, programas com código aberto”.
O “dever”, esvaziado ou matizado, logo a seguir, pelo advérbio “preferencialmente”, cria a falsa ilusão da obrigação. Na verdade, joga-se a decisão para a discrição do administrador.
Depois, no mesmo trecho da norma, o legislador utiliza a famosa locução código aberto. Ela é indutora de muitas confusões, porque ambígua: a abertura dos códigos, preconizada pelo legislador, tem a ver com confidencialidade (transparência) ou com código proprietário? Com toda a vênia, pensa-se que a redação se apresenta equívoca. Aparentemente, nasceu das mãos de alguém não afeito à redação legal ou, então, de alguém que não sabia exatamente do que estava tratando. Parece que o redator pensou numa coisa e o técnico que o auxiliava pensou noutra. Ambos acharam um ponto comum de pensamento na expressão código aberto, e a incluíram na lei, lançando, na norma, fonte de enorme ambigüidade.
Como o legislador fechou o foco nos sistemas que o Poder Judiciário desenvolve, parece razoável excluir a hipótese de aberto referir-se ao oposto de proprietário, no sentido adotado no mundo tecnológico.
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Assim, a interpretação da locução código aberto, para a promoção da transparência tecnológica, deveria ser tomada no sentido de não confidencial. Pensa-se, aliás, que o legislador mirou nisso ao incluir a locução, ao contrário do técnico, que embalado pelas disputas empresarial-ideológicas por trás da propriedade dos softwares, pensava em dificultar a vida do código-proprietário.
O regime legal, entretanto, para os fins da transparência, é capenga porque (a) permite a utilização de sistemas proprietários (e, portanto, imanentemente confidenciais) e (b) pode ser interpretado no sentido de deixar ao alvitre do administrador a questão da abertura ou confidencialidade dos códigos.
8.3.2. Aspectos de um regime novo, inspirado na ideia de promoção dos direitos fundamentais processuais, com transparência tecnológica plena
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É preciso pensar e escrutinar o software em termos jurídico-normativos também, não apenas tecnológicos. Somente assim se concretizarão, em plenitude, as exigências de transparência. Não haverá transparência se os juristas, todos eles, não receberem a expressão dos códigos em linguagem que lhes permita entender e acompanhar, sem dificuldades, os meandros pelos quais os sistemas eletrônicos alcançam conclusões a respeito do jurídico. Todas as funções tecnológicas (software) que incorporam normas jurídicas, processuais ou materiais, deverão ser transparentes nos três sentidos: a) as pessoas devem ter ciência plena e prévia de que a aplicação daquela função está sendo transferida de um humano para um software; b) procedimentos democráticos devem permitir a mais ampla participação nos processos de definição da interpretação normativa a ser incorporada (legitimação) e c) do acesso pleno à função, em expressão tecnológica (códigos-fontes) e, principalmente, em expressão em linguagem acessível aos juristas (não técnica).
Em todos os SEPAJs, proprietários ou não, do Poder Judiciário ou de terceiros, a obrigação de abertura dos códigos deve ser imperativa, e não preferencial, em relação a todas as normas com alcance jurídico; as regras da legitimação da norma tecnológica e da transparência plena devem estar presentes para promover, acima de tudo o mais, os direitos fundamentais processuais.
No desenvolvimento dos sistemas processuais pelo Poder Judiciário deveria ser vedado utilizar/aproveitar, diretamente ou via terceiros contratados para a prestação de serviços, qualquer ferramenta, código-fonte, trecho de código-fonte, algoritmo e qualquer outro instrumental ou elemento cujas condições de licenciamento/autorização de uso implicassem a transferência, em relação ao software produzido, de quaisquer obrigações, para o Estado brasileiro, na condição de desenvolvedor direto ou encomendante, referentes à titularidade, cessão, licença, permissão de uso, dação de créditos ou derivação estipuladas em licenças postas por terceiros (contágio). A titularidade do sistema processual, ao final do desenvolvimento, deve ser do Estado brasileiro, exclusivamente e sem quaisquer limitações;
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Um regime adequado para a área, portanto, voltado à concretização máxima dos ditames constitucionais do artigo 5°, da Constituição, deve fundar-se (a) na explicitação e promoção das regras de transparência propostas no item 7, (b) em conceitos operacionais claros e explícitos de código-aberto, código-fechado ou proprietário e confidencialidade de código, (c) na distinção dos níveis tecnológico e jurídico das expressões das normas e (d) na conceituação de norma tecnológica (a versão interpretada do texto normativo incorporada num software).
Num regime como o aqui preconizado, diferenciando-se os níveis jurídico-normativo e tecnológico, dever-se-ia estabelecer plena e irrestrita publicização das normas tecnológicas, na linguagem fonte (técnica) em que foi codificada para o sistema processual e a partir da qual as versões executáveis são geradas, e, também, em código jurídico-normativo, que deve ser a expressão, semanticamente válida, para os juristas e o público em geral, da função “trivial” aplicada em linguagem tecnológica, em cada caso. Na lei de software, no artigo 3°, § 1°, II, encontra-se a menção à “descrição funcional do programa de computador” 41. Entende-se que a descrição jurídico-normativa deva atender a requisitos específicos, em termos da linguagem a ser utilizada e dos conteúdos.