INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa analisar alguns dos pontos nodais da teoria política iluminista. Buscou-se delinear os contornos conceituais dados pelo iluminismo à liberdade e à igualdade, bem como pesquisar a interdependência e recíproca implicação dos dois conceitos.
Nesse sentido, objetivou-se verificar se o conceito de democracia está inexoravelmente ligado com a temática iluminista, ou, reversamente, se é apenas um elemento acidentalmente incluído.
Por derradeiro, buscou-se comprovar se a doutrina iluminista enxerga o Direito como forma de concretização da liberdade humana.
1 Direitos humanos, divisão de poderes e democracia.
A vertente política do iluminismo surge na sucessão histórica com o fundamental mote de defesa de direitos que seriam indissociáveis da condição se ser humano. Tais direitos, ditos direitos humanos, constituiriam um núcleo mínimo de liberdades individuais, limitantes do agir – estatizado ou não – contra o particular.
Nesse ponto, começa a se delinear a relação de recíproca implicação entre os direitos humanos e a forma democrática de governo. No discurso iluminista, para que exista democracia efetiva é necessário que os entes sociais sejam materialmente livres. Assim, mais do que a mera enunciação do direito de liberdade, é imprescindível que o particular disponha de condições materiais mínimas para que possa compreender as teses democraticamente debatidas, bem como para externar sua convicção pessoal sem sofrer represálias.
Daí se percebe que a liberdade material, na concepção iluminista, compreende espectro formidavelmente amplo de garantias, desde o direito a condições de integridade orgânica do indivíduo (alimentação e saúde, por exemplo) até o direito a participar ativamente da escolha de seu destino e da sociedade que integra.
Dessa forma, apenas em uma democracia os direitos humanos poderiam ser inteiramente encontrados. Apenas naquela sociedade em que ao indivíduo é franqueada sua autodeterminação os direitos humanos poderiam se desenvolver com a amplitude pretendida pelos iluministas. Se a democracia, para ser efetiva, exige o respeito aos direitos humanos, estes só estão integralmente garantidos em uma sociedade democrática.
Nesta senda, a divisão de poderes – ou como pretendem alguns, a repartição de competências de seu exercício – se evidencia como o mais eficaz mecanismo de tutela dos direitos humanos e da democracia.
Tome-se a liberdade material como corolário inarredável dos direitos humanos. Entende-se, ainda, que a divisão de poderes carrega consigo a finalidade precípua de limitação da autoridade. Nesse quadro, conclui-se que uma adequada compartimentalização de competências propicia uma eficaz tutela dos direitos humanos.
Conforme mencionou-se anteriormente, a tutela dos direitos fundamentais também incide, reflexamente, sobre a democracia. Sinteticamente, entende-se que é necessário o respeito aos direitos humanos para que a democracia seja efetiva. Assim, o instrumento que serve à garantia daqueles também se presta, com igual pujança, a esta.
Pelo exposto, visualiza-se uma ligação indissolúvel entre direitos humanos, democracia e divisão de poderes na arquitetura teórica iluminista. Tão fundamental é este núcleo conceitual que os iluministas chama de falsas democracias os regimes que prescindem dos direitos fundamentais (principalmente da liberdade). A unidade conceitual rechaça o argumento de que primeiro deveriam ser criadas condições materiais necessárias à liberdade e, só depois, dar-se espaço à participação democrática.
Entretanto, é importante notar que a divisão de poderes não foi sempre um mote dos iluministas. Tanto o é, que, historicamente, suas lutas (século XVI) contra a “anarquia” feudal justificaram o império da autoridade pública. Esta, desprovida daquele mecanismo de limitação do poder, deu espaço às arbitrariedades monárquicas. Em segundo momento é que a divisão de poderes animou os movimentos constitucionalistas contra o absolutismo da autoridade pública.
2 Liberdade e neutralização do Estado.
Analisando o paradigma dominante dos estados constitucionais modernos verifica-se que existe, por assim dizer, uma neutralidade em relação a religiões, a filosofias, a concepções de mundo e a atitudes morais. Com isso, pretende-se dizer que a sua legitimidade não se assenta em quaisquer destes pilares. Diferentemente, há um consenso de que o Estado é uma necessidade prática para que se mantenha a paz e o respeito às diferenças.
Poder-se-ia afirmar que tal neutralização deita suas raízes na Reforma Protestante. No entanto, a detida análise das condições históricas que a informaram conduzem a conclusão diversa.
Em verdade, o mote da Reforma era, inicialmente, essencialmente teológico. Defendia-se que os ditames da religião deveriam advir da compreensão das escrituras propriamente ditas, e não da interpretação cristalizada nas tradições ritualísticas.
No entanto, o paradigma estatal de então era vascularmente ligado à religião. Desta sorte, a Reforma se tornou um movimento mais político do que religioso. Aliás este parece Ter sido um dos motivos do seu relativo sucesso: se, por um lado, foi necessário abandonar o mote religioso para coadunar sob a mesma bandeira facções tão díspares, por outro, foi esta grande mobilização que tornou insustentável o regime anterior. A teologia se perdeu, para manter a unidade das forças que apoiavam a Reforma.
Como desdobramento, surgiram três modelos (principais) sintéticos de neutralização da confissão religiosa como condição de paz.
O modelo alemão pugnava que a cada região deveria corresponder uma religião. Assim, o monarca poderia definir a religião de um determinado povo, desde que se resguardasse o direito de emigração.
A seu turno, o modelo francês identificava uma mera tolerância à escolha religiosa. Assim, não havia um direito subjetivo a professar determinada fé.
Por derradeiro, o sistema inglês apresentava aspectos bem mais elaborados. Já vigia, então, o princípio do devido processo legal. Por sua influência, entendia-se que o rei poderia proibir uma religião, ou mesmo definir uma outra como obrigatória, mas para tanto, era imprescindível a aprovação do parlamento.
À questão da neutralização do Estado o iluminismo responde com a noção de direitos do homem enquanto homem. Assim, a legitimidade do poder do Estado não reside em qualquer fonte teológica, mas no próprio homem. A função do Estado é garantir o respeito à dignidade humana e suas intervenções são legítimas porque, e tão-somente quando, se dirigem a este fim.
3 O conteúdo da dignidade humana: liberdade e igualdade.
Conforme se tratou acima, o iluminismo político fundamenta a imponibilidade do poder do Estado na garantia da dignidade humana. Desta sorte, o conteúdo conceitual da dignidade se apresenta com importância fulcral. Nesse sentido, podem ser oferecidos dois critérios interpretativos.
Primeiramente, poder-se-ia empregar uma noção naturalista de dignidade humana, o conceito restringir-se-ia a cercar o homem das condições para sua preservação biológica.
De outra parte, e de se mencionar o critério expansionista. Aqui se parte da concepção do homem como sujeito de transformação da natureza e não como seu objeto passivo. Nesse passo, a dignidade do homem só é garantida pelo Estado quando lhe são oferecidas todas as condições para a sua completa autorealização.
Para edificar seu monumento teórico, o iluminismo se vale de ambas as concepções. É necessário que se garanta ao homem condições biológicas de desenvolvimento. Entretanto, isto não é suficiente: o conceito deve abranger as atividades artísticas, religiosas, intelectuais, morais, enfim, todos os aspectos da plena vida e atividade em sociedade.
Do exposto, conclui-se que a plenitude da dignidade só pode ser alcançada sobre o pano de fundo das relações sociais: livres são os homens que podem desenvolver todas as suas faculdades. Desta sorte, a fórmula encerra, em si mesma, a exigência da igualdade entre os homens.
A partir desta recíproca implicação entende-se que há dois desdobramentos.
A uma, para que a liberdade seja igual para todos, é necessário que os homens tenham condições concretas para tanto. A duas, se um particular padece da violação de tais condições, cabe ao outro lutar pelo seu restabelecimento, para que a liberdade seja igual para todos.
Assim, a liberdade iluminista é atenta à solidariedade, equilibrando-se entre o materialismo puro e o moralismo irreal.
O raciocínio iluminista não vê antítese entre liberdade e igualdade. Partindo-se da idéia de “liberdade igual”, prestigiar uma delas em detrimento da outra equivaleria a aniquilar ambas. Se se garante a liberdade, prescindindo da igualdade, materializa-se a desregulamentação da sociedade. Nessa hipótese, surgem contingentes de pessoas que, sem recursos para a sua própria subsistência, não são livres. Assim, a liberdade sem igualdade produz a escravidão (no sentido de antítese de liberdade). De outra parte, a igualdade obtida ao custo da ausência de liberdade é igualdade imposta. Desta sorte, há dominadores e dominados, que, por óbvio, não são iguais.
4 Os limites da liberdade – Direito e democracia.
Por todo o exposto, restou evidenciado que a liberdade é conceito essencial na teoria iluminista. Também se demonstrou que a definição de liberdade já carrega consigo a idéia de limitação. Assim, o iluminismo tem por inconcebível a liberdade absoluta.
Um primeiro limite à liberdade do homem é a vinculação de sua conduta às suas escolhas anteriores. Assim, pode-se escolher entre filiar-se ou não a uma determinada agremiação. No entanto, exercida a opção de se filiar, é impossível filiar-se novamente.
O segundo limite foi mencionado anteriormente: a liberdade deve ser igual para todos os homens. O paradigma do Estado contra o qual se insurgiu o iluminismo se dedicava à justificação das liberdades concretas como privilégios advindos, por exemplo, de antigas tradições. Diferentemente, o iluminismo volta suas atenções à justificação das restrições à liberdade em geral. Nota-se, então, uma mudança de foco.
Nesse sentido, o postulado fundamental é que só se pode restringir a liberdade de um homem na exata medida em que seja necessário para sua existência conjunta com a de outro. Assim, as restrições são necessárias para fixar a liberdade igual para cada um.
Nesse passo, surge outra questão nodal para a edificação conceitual iluminista: qual é o conteúdo da limitação a se impor à liberdade? Tal questão se reveste, ainda, de indisfarçável importância prática.
A resposta iluminista não é um rol exaustivo de hipóteses, mas um mecanismo capaz de atender àquelas necessidades práticas. Tal instrumento é obtido a partir de raciocínio abstrato, fundado nas mesmas premissas tratadas até aqui, pelo que também atende às exigências conceituais.
Tem-se que as restrições à liberdade de um só são legítimas se determinarem a sua coexistência com a do próximo. Desta forma, faz-se necessária a enunciação de um preceito geral, cuja obediência é obrigatória, que defina quais as limitações são necessárias. Este preceito geral é identificado pelos iluministas como uma lei – e, assim, universal e abstrata. Assim, tem-se o instrumento formal de limitação da liberdade, tão legítimo quanto imponível a todos, em atenção ao ideário de igualdade.
Resta, ainda, verificar qual conteúdo pode ser veiculado pela lei geral. A situação ideal seria obtida se todos os homens sujeitos àquela lei concordassem com a redução da sua liberdade em defesa da liberdade de todos. Nessa hipótese, liberdade e igualdade se apresentariam em perfeita identidade.
No entanto, como regra geral, é impossível obter tal unanimidade. Assim, imprescindível se faz a utilização do princípio democrático, expresso na aplicação da regra da maioria.
Portanto, os iluministas entendem que a liberdade é garantida pelo Direito, cujo conteúdo é legítimo se for determinado a partir do procedimento democrático.
5 Da fraternidade.
Por derradeiro, calha uma reflexão a respeito da função conceitual da fraternidade na doutrina iluminista.
Entenda-se a fraternidade como sentimento que leva os homens a colaborarem espontânea e mutuamente no sentido da melhoria das condições de vida (religiosa, familiar, jurídica, social, etc.).
Observa-se que tal conceito é muito próximo das idéias de liberdade (de iniciativa) e de igualdade (preservação biológica e autorealização de todos os homens).
Em face disso, há autores que entendem que pouco espaço há para a fraternidade no ideário iluminista.
É de se mencionar que várias tiranias se valeram de paternalismo para se sustentarem. Desta forma, a fraternidade serviu de engodo para mascarar o despojamento da liberdade e da igualdade.
De maneira análoga, pondera-se que é necessária uma revolução democrática para que se supere a pobreza. Não seria indispensável que se substituísse um sistema de produção. Sem uma participação efetiva na determinação dos objetivos e motivos da luta revolucionário o povo passaria rapidamente de libertado a oprimido.
De fato, o conceito de “liberdade igual” encerra, em si, boa parte das noções tradicionalmente reservadas à fraternidade. Nesse passo, lembre-se do ideal de superação da fome (pois o faminto não é livre), da necessidade de educação (autorealização) e do direito de sufrágio (democracia). Se a liberdade é obtida quando os homens têm condições de plena realização de todas as suas capacidades e expectativas, limitada apenas pelas exigências de igualdade, pouco há a adjudicar especificamente à fraternidade.
É importantíssima tal advertência, sob pena de se incidir no engodo de que a mera solidariedade social justifica a imponibilidade de um sistema de governo totalitarista.
CONCLUSÃO
De todo o exposto, restou documentada no presente trabalho uma breve pesquisa bilbiográfica acerca do iluminismo político. A pesquisa se deteve, essencialmente, sobre os conceitos iluministas de liberdade e de igualdade, bem como na comprovação da sua íntima interligação.
Ademais, confirmou-se que o conceito de democracia está inexpugnavelmente atado à doutrina iluminista, que não é por ele apenas episodicamente freqüentado.
Com fulcro em todas estas premissas, cientificamente comprovadas, conclui-se que, o iluminismo tem o Direito como instrumento de libertação do homem.
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