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Judiciário como legislador: estudo de caso das portarias “toque de recolher”

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Agenda 08/01/2013 às 15:59

4 – Da possibilidade de restrição de direitos fundamentais na Constituição Federal.

 A Constituição Federal estatuiu no art. 136, o Estado de Defesa e no art. 137 o Estado de Sítio, para garantir a estabilidade constitucional do Estado Brasileiro em momentos de grave instabilidade institucional. É interessante notar que em ambos os casos o Congresso Nacional terá de se manifestar decidindo por maioria absoluta.

Temos aqui a participação do Parlamento Brasileiro como garante quanto às medidas extremas decretadas pelo presidente da República quanto a sua necessidade por importar em restrições a direitos fundamentais.

Logo, conclui-se que somente nestas hipóteses comporta-se medidas excepcionais fora da normalidade institucional, pois o que está em jogo é a sobrevivência da Federação Brasileira.

Não se afirma aqui que não há tensão ou colisão entre princípios da mesma significância para a dignidade da pessoa humana, tendo que não raro, haver a opção entre um e outro, através de um juízo de ponderação. O que não pode é um direito que diz respeito ao desenvolvimento da pessoa humana, ligado diretamente à dignidade da pessoa humana, como a liberdade ambulatorial, ser suprimida em ato genérico de cunho administrativo baixado por magistrados.


5 – As gerações de direitos e a liberdade

A liberdade permeia a historia da humanidade, confundindo-se com ela mesma.

Na Bíblia há diversas passagens da luta do povo hebreu em busca da sonhada liberdade desde que partiu do Egito sob o comando de Moisés. Na mitologia grega não é diferente. Temos o sonho de Ícaro, que tenta voar. A França legou a humanidade os três pilares básicos da Revolução de 1789 a liberdade, ao lado da igualdade e fraternidade. Com fundamento nesse trinômio, procura-se situar historicamente a evolução dos direitos fundamentais, dividindo-se em direitos de primeira geração (liberdade), segunda geração (igualdade) e de terceira geração (fraternidade), este último com titularidade difusa.

Necessário uma correção de rota. Os direitos não são isolados. Não há gerações de direitos como compartimentos estanques. Eles se confundem ao longo da história, entrelaçando-se uns aos outros, devendo-se entender este recorte metodológico que inclusive é aceito pelo pretório excelso como caráter didático[24].

Neste diapasão, assiste razão ao insigne Antônio Augusto Cançado Trindade, que na apresentação da obra Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, de autoria da professora Flávia Piovesan, defende[25]:

[...] à fantasia das chamadas “gerações de direitos, a qual corresponde a uma visão atomizada ou fragmentada destes últimos no tempo. A noção simplista das chamadas “gerações de direitos”, histórica e juridicamente infundada, tem prestado um desserviço ao pensamento mais lúcido a inspirar a evolução dos direitos internacional dos direitos humanos. Distintamente do que a infeliz invocação da imagem analógica da “sucessão generacional” parecia supor, os direitos humanos não se “sucedem” ou “substituem” uns aos outros, mas antes se expandem, se acumulam e se fortalecem, interagindo direitos individuais e sociais [...]

Outra não é a lição de Branco e Mendes:

Essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida apenas com o propósito de situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica. Deve-se ter presente, entretanto, que falar em sucessão de gerações não significa dizer que os direitos previstos num momento tenham sido suplantados por aqueles surgidos em instante seguinte[26].

A liberdade alcançou o status de dignidade constitucional, com suas limitações impostas apenas e tão somente pela Constituição. No Brasil não é diferente, consoante o art. 5º, caput da Carta Republicana:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Não obstante a isso, a Constituição vai mais além para expressar em seu inciso XV, art. 5º, que "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz”.

A Lei Fundamental Alemã em seu art. 1º, n.1, diz que “A dignidade da pessoa humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os Poderes estatais”. Do mesmo teor, e erigindo como fundamento da República Brasileira, o art. 1º, inciso III, elege a dignidade da pessoa humana, como um dos seus fundamentos. Ressalte-se, que esta eleição não é arbitrária, fruto do acaso ou mera retórica. Ela vale para os três poderes.

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Nesse diapasão todo ser humano, tem para si e contra o Estado um direito fundamental de defesa, que nada mais é que exigir que os poderes estatais não pratiquem atos coativos descabidos, ou seja, não viole a esfera jurídica de autodeterminação das pessoas baseados em premissas éticas e morais individual de quem emana o comando normativo. Por todos, o jurista português Canotilho ensina: “ [...] um direito fundamental de defesa é um direito cujo conteúdo se traduz fundamentalmente em exigir que o próprio Estado (poderes públicos) se abstenha de intervenções coactivas na esfera jurídica do particular”[27].

Desta forma há um limite no exercício da Jurisdição, e porque não dizer, também ao Legislativo e ao Executivo na restrição de direitos básicos do ser humano. Se a lei não proíbe, não pode o intérprete sobre uma falsa premissa de conteúdo moralizador criar regras que extirpam direitos e garantias fundamentais encartado no Texto Maior. Mesmo que haja um clamor social, não é papel da jurisdição exceder os limites compatíveis com a delegação dada pelo Constituinte Originário no desempenho de suas funções. Neste passo a interpretação extensiva restritiva de direitos e garantias fundamentais não pode encontrar guarida. Não há interpretação possível para isso.

A fundamentação para uma interpretação não pode ter como corolário, ao menos no âmbito do exercício da jurisdição, os anseios populares, o desejo da imprensa ou até mesmo suas vontades. Este não é o papel que lhe é reservado na Constituição. Sua discricionariedade encerra-se dentro do espaço normativo previsto na lei. 

Isso não transforma o juiz em um “boca da lei”. Ao contrário. O campo aberto para interpretar continua o mesmo, mas partindo da hermenêutica possível em face da Constituição Federal. Interpretação sem fundamentação não é aplicação do direito calcado na segurança jurídica. É arbítrio dispensável. É ato de tirania não condizente com nossa realidade histórica atual.

Gadamer observa que:

A tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, ou seja, é a tarefa da aplicação. A complementação produtiva do direito que se dá aí está obviamente reservada ao juiz, mas este encontra-se sujeito à lei como qualquer outro membro da comunidade jurídica. A ideia de uma ordem judicial implica que a sentença do juiz não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas de uma ponderação justa do conjunto [...]. Entre a hermenenêutica jurídica e a dogmática jurídica existe pois, uma relação essencial, na qual a hermenêutica detém a primazia[28].


6 – O STF e a hermenêutica da sua jurisdição em sede de direitos fundamentais

A Suprema Corte Brasileira tem como viés proteger e dar guarida aos direitos fundamentais expressos ou não no texto constitucional, não admitindo restrição a estes direitos quando os mesmos digam respeito à dignidade da pessoa humana, inclusive vedando diversas atuações indevidas dos poderes legislativo e executivo quando cometem excessos.

Entendo que o catálogo dos direitos fundamentais não obstante possuir aspecto procedimentalista, tem como característica mais marcante ser dotado de conteúdo substancialista, ou seja, que diz respeito ao próprio ser humano, considerado este como possuidor de um conjunto de atributos e possibilidades aptos para o seu desenvolvimento globalmente considerado, devendo o STF abster-se da interpretação originalista da constituição, expressão que advém do direito americano e que em síntese - busca na intenção do poder constituinte originário a interpretação do texto. Advogam no sentido aqui proposto, Laurence Tribe e Michael Dorf[29] e Hans-Georg Gadamer, que defende a distância temporal, como meio para resolver os falsos preconceitos que produzem equívocos hermenêuticos, como os praticados pelos juízos da infância e adolescência na edição das portarias “toque de recolher”:

A distância temporal que possibilita essa filtragem não tem uma dimensão fechada e concluída, mas está ela mesma em constante movimento e expansão. A o lado do aspecto negativo da filtragem operada pela distância temporal, aparece, simultaneamente, seu aspecto positivo para a compreensão. Essa distância, além de eliminar os preconceitos de natureza particular, permite o surgimento daqueles que levam a uma compreensão correta[30].

Tribe e Dorf, apontam ainda que uma Constituição não deve ser lida sob a forma de des-integração e hiper-integração. Ensinam os autores que a primeira seria ignorar o todo da Constituição, interpretando a por partes, e a última seria a sua leitura global, desprezando que a mesma é formada por diferentes partes.[31] Assim, a Constituição não é um texto único, ao contrário, é plural, diversificado, formada por diversas correntes abertas ao debate, ou como afirmam os autores há pouco citado “Essa Constituição única não pode ser confundida com a expressão singular de uma única ideia”[32].

Neste ponto, a jurisprudência do Pretório Excelso é firme em negar validade a tais atos, não importando a natureza jurídica que se queira dar a eles, no caso das portarias “toque de recolher” se ato judicial ou administrativo, pois o que está em jogo é o direito fundamental de ir e vir e permanecer, sem a observância do devido processo legal e com esteio simplesmente em fatores éticos.

 Neste sentido leciona Fábio Medina Osório, verbis:

Os tribunais superiores deixam claros seus posicionamentos: o princípio da legalidade tem validade formal e material e alcança o Estado, limitando-o, no tocante ao exercício de sua pretensão punitiva, seja na seara judicial, seja na esfera administrativa. Mas não se esgota aí o raio de abrangência da legalidade derivada do Estado de Direito. Mesmo nas hipóteses em que o Estado, sem munir-se do poder sancionador, venha a exercer poder de polícia ou impor medidas restritivas de liberdades individuais, é imperativa a obediência ao princípio da legalidade[33].

Para tanto, trago julgado exarado pelo plenário da Suprema Corte, que confirma o posicionamento acima afirmado.

A reserva de lei constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que  a sua incidência reforça o princípio, que fundado na autoridade da Constituição, impõe, à Administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Judiciário, em tema regido pelo postulado constitucional da reserva de lei, atuar na anômala condição de legislador positivo (RTJ 126/48 – RTJ 143/57 – RTJ 146/461-462 – RTJ 153/765, vg), para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Judiciário – que não dispõe de função legislativa – passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador positivo), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes[34].

É interessante frisar, que não obstante o STF não tenha se pronunciado sobre as portarias “toque de recolher”, em diversos julgados, manifestou-se pela plena liberdade para as crianças e adolescentes como meio para seu desenvolvimento, devendo ocorrer a integração com o espaço comunitário e familiar, não admitindo a restrição da liberdade como regra, e sim apenas como exceção e diante de particularidades do caso concreto, conforme podemos observar:

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - INTERPRETAÇÃO. O Estatuto da Criança e do Adolescente há de ser interpretado dando-se ênfase ao objetivo visado, ou seja, a proteção e a integração do menor no convívio familiar e comunitário, preservando-se-lhe, tanto quanto possível, a liberdade. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - SEGREGAÇÃO. O ato de segregação, projetando-se no tempo medida de internação do menor, surge excepcional, somente se fazendo alicerçado uma vez atendidos os requisitos do artigo 121 da Lei nº 8.069/90, não cabendo a indeterminação de prazo[35].

HABEAS CORPUS. ESTATUDO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA. ART. 120 DA LEI 8.069/1990. MENOR SOB REGIME DE SEMILIBERDADE. RESTRIÇÃO DE VISITAS À FAMÍLIA. O art. 120 do ECA possibilita a prática de atividades externas pelo menor sob o regime de semiliberdade, sem necessidade de autorização judicial. A restrição imposta pelo magistrado, no sentido de que as visitas aos familiares devam ser realizadas de maneira progressiva e condicionada, constitui constrangimento ilegal, especialmente quando desprovida de fundamentação. O regime de semiliberdade constitui típica medida de caráter sócio-educativo, devendo ser priorizado o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Inteligência dos arts. 19 da Lei 8.069/1990 e 227 da Constituição Federal. Ordem concedida[36].

EMENTA: HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE SEMILIBERDADE. LIMITE MÁXIMO DE DURAÇÃO. RESTRIÇÃO À REALIZAÇÃO DE ATIVIDADES EXTERNAS E IMPOSIÇÃO DE CONDIÇÕES RELATIVAS AO BOM COMPORTAMENTO DO PACIENTE PARA VISITAÇÃO À FAMÍLIA. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 227 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Ressalvadas as hipóteses arroladas nos artigos 121, § 3º e 122, § 1º, o Estatuto da Criança e do Adolescente não estipula limite máximo de duração da medida socioeducativa de semiliberdade. Resulta daí que, por remissão à aplicação do dispositivo concernente à internação, o limite temporal da semiliberdade coincide com a data em que o menor infrator completar vinte e um anos [art. 120, § 2º]. 2. O artigo 120 da Lei n. 8.069/90 garante a realização de atividades externas independentemente de autorização judicial. 3. O Estado tem o dever de assegurar à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar [artigo 227, caput, da Constituição do Brasil]. O objetivo maior da Lei n. 8.069/90 é a proteção integral à criança e ao adolescente, aí compreendida a participação na vida familiar e comunitária. 4. Restrições a essas garantias somente são possíveis em situações extremas, decretadas com cautela em decisões fundamentadas, o que no caso não se dá. Ordem parcialmente concedida para permitir ao paciente a realização de atividades externas e visitas à família sem a imposição de qualquer condição pelo Juízo da Vara da Infância e Juventude[37].

Desta forma, resta claro que não obstante a Corte Maior ainda ter enfrentado o tema, os julgados trazidos à colação e no rastro da melhor doutrina construtiva hermenêutica, as portarias “toque de recolher”, são inadmissíveis no ordenamento pátrio, por ferir a independência dos poderes, a dignidade da pessoa humana, em especial a da criança e do adolescente em formação, que acaba por ter tolhida a sua liberdade sem nenhum parâmetro plausível, ou como ensina Gadamer, a interpretação da lei não é um ato arbitrário[38].

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGLANTZAKIS, Vick. Judiciário como legislador: estudo de caso das portarias “toque de recolher”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3478, 8 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23396. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado ao professor Pós-Doutor Ney Bello Filho, como conclusão da disciplina "Jurisdição e Interpretação" do curso de Mestrado em Direito Constitucional.

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