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Judiciário como legislador: estudo de caso das portarias “toque de recolher”

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08/01/2013 às 15:59
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O STF não se pronunciou sobre as portarias “toque de recolher”, mas manifestou-se, em diversos julgados, pela plena liberdade para as crianças e adolescentes como meio para seu desenvolvimento, devendo ocorrer a integração com o espaço comunitário e familiar, não admitindo a restrição da liberdade como regra, e sim apenas como exceção e diante de particularidades do caso concreto.

Resumo: O presente estudo trata da possibilidade de juízes de 1º grau, ocupantes das varas da infância e da juventude ou de quem faz às vezes nas comarcas de varas únicas, editar as denominadas portarias “toque de recolher”, limitadores do direito ambulatorial de crianças e adolescentes, fixando horário para que as mesmas se recolham aos seus lares. A expedição das denominadas portarias, que conquanto sejam atos administrativos, na verdade acabam por transmudar-se em leis consideradas em sentido amplo, por serem dotadas de generalidade, abstração e impessoalidade próprias das leis em sentido estrito. Estes atos serão cotejados com decisões tomadas pelos Tribunais estaduais que enfrentaram a matéria e do Superior Tribunal de Justiça. Assim com base na doutrina de Hans-Georg Gadamer e de Laurence Tribe e Michael Dorf ancorado na jurisprudência de casos análogos emitidos pela Suprema Corte, será defendido que as mesmas não são cabíveis no ordenamento brasileiro, pois viola a dignidade da pessoa humana ao estabelecer arbitrariamente limites a liberdade de ir, vir e ficar, para ao final propormos que seja ajuizada uma ADI para que o STF se manifeste sobre o tema dando interpretação conforme.

Palavras-chave:  toque de recolher; liberdade; legislador positivo; legislador negativo; criança; adolescente.


1 - INTRODUÇÃO

O objeto do presente estudo é verificar se a edição das portarias denominadas “toque de recolher” – que são atos administrativos, dotados de conteúdo normativo limitadores de horário para crianças e adolescentes estarem em espaços públicos ou pertencentes à comunidade – é possível no ordenamento brasileiro, uma vez que estas são elaboradas por juízes que ocupam a vara da infância e da juventude ou de quem estabelecer o Código de Organização Judiciária onde não estiverem instaladas tais varas.

Estas portarias são editadas com características de impessoalidade, generalidade e abstração próprias das leis consideradas em sentido estrito.

A portaria “toque de recolher” começou a ser implantada em Fernandópolis, Ilha Solteira e Itapura, (SP), a partir de 2005, e determinou que pessoas com até 13 anos de idade, só poderiam permanecer nas ruas e locais públicos até as 20h30; entre 14 e 15 anos, até as 22:00; entre 16 e 17 o horário máximo para se recolher é até as 23:00h, tendo a mesma sancionado que o descumprimento poderá levar a condenação à prestação de serviços públicos ou até o recolhimento a Fundação Casa daquele município[1].

Ressalte-se que hoje essa restrição está sendo feita por meio de leis municipais, como a editada no município de Tubarão, no Estado de Santa Catarina e que foi fulminada pelo Tribunal de Justiça catarinense, por padecer de vício de inconstitucionalidade, conforme ementa:

 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DO COORDENADOR DO CECCON. REJEIÇÃO. RECONHECIDO O VÍCIO FORMAL E MATERIAL DA LEI 3.379/2009, DO MUNICÍPIO DE TUBARÃO QUE INSTITUIU O DENOMINADO TOQUE DE RECOLHER. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE LOCOMOÇÃO PREVISTO NO ART. 4º E INVASÃO DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO GOVERNADOR DO ESTADO ESTABELECIDA NO ART. 50, § 2, INCISO I E 108, TODOS DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. PRECEDENTE JURISPRUDENCIAL (ADIN N. 2010.060882-1).  (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2010.014498-7, de Tubarão, rel. Des. Lédio Rosa de Andrade) [2].

Nosso estudo se restringirá às portarias emitidas pelos órgãos jurisdicionais.

Quanto às portarias emitidas por juízos da infância e da juventude é interessante frisar que o Tribunal de Justiça de São Paulo[3] confirmou a validade da portaria “toque de recolher”, ao passo que o Tribunal de Justiça do Tocantins[4] refutou a validade da mesma. Igual entendimento pela invalidade da portaria “toque de recolher” foi afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça[5].

Não há uma posição do tema pelo Supremo Tribunal Federal, contudo a partir da jurisprudência aplicada a casos análogos, e com base em acordos e tratados internacionais firmados pelo Brasil, e pelos princípios adotados pela Constituição Federal tentaremos construir uma hermenêutica possível, em confronto com o §2º do art. 149 da lei nº 8069/90, também denominado de Estatuto da Criança e do Adolescente, que diz “as medidas adotadas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral”.

Os que advogam favoravelmente a edição da medida constritiva utilizam como fundamento os arts.  16, 18, 70, e 149 §2º[6] do ECA. Os que defendem a impossibilidade da edição da portaria “toque de recolher”, argumentam a seu favor o art. 2º e 5º, XV da CF e art. 15 do ECA[7], conforme lição de Fernanda Andrade Almeida[8].

No plano doutrinário utilizar-se-á em especial das obras de Hans-Georg Gadamer[9], intitulada Verdade e Método, e da obra conjunta dos autores Laurence Tribe e Michael Dorf [10]denominada Hermenêutica Constitucional.

É sabido que a Constituição Federal estatui diversas espécies de liberdade, como por exemplo, a liberdade de expressão, religiosa, de ir, vir e ficar, de associação, de reunião entre outras.

Aqui será abordada a liberdade como elemento indispensável do conteúdo da dignidade da pessoa humana, partindo-se da “perspectiva da pessoa humana como ser em busca da autorrealização, responsável pela escolha dos meios aptos para realizar suas potencialidades”.[11] Em especial será enfatizado o direito de ir, vir e ficar.

Diante do exposto, é constitucional a edição das portarias “toque de recolher”, pelos órgãos jurisdicionais, atuando como legislador positivo? Há ou não violação a dignidade da pessoa humana, quando se restringe o horário de permanência em logradouros públicos e ou comunitários de crianças e adolescentes com bases em critérios éticos?  


2 – Dos tratados internacionais sobre direitos humanos e o tratamento dado pelo STF em face da Constituição Federal.

Depois da II Guerra Mundial, período em que a humanidade atônita assistiu e teve conhecimento em toda a órbita terrestre dos horrores praticados durante o período belicoso, diversos tratados internacionais tendo por objetivo a proteção dos direitos humanos, foram editados. Nesse desiderato, foram levantados os principais instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil, consoante lista trazida á baila pela profª. Flávia Piovesan: Carta das Nações Unidas, Declaração Universal do Humanos (Artigo XIII – 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 12 - 1. Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado terá o direito de nele livremente circular e escolher sua residência), Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Art. 15 -1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural; b) Desfrutar o progresso científico e suas aplicações. Convenção para a prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e Convenção sobre os Direitos da Criança (Artigo 15 – 1. Os Estados-partes reconhecem os direitos da criança à liberdade de associação e à liberdade de reunião pacífica), (Artigo 31 – 1. Os Estados-partes reconhecem o direito da criança ao descanso e ao lazer, ao divertimento e às atividades recreativas próprias da idade, bem como à livre participação na vida cultural e artística.). No plano Interamericano, a mais importante é a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecido como Pacto de San José da Costa Rica (Artigo 22 – Direito de circulação e de residência 1 – Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado tem o direito de nele livremente circular e de nele residir, em conformidade com as disposições legais.)[12].

Não obstante o texto maior dispor no art. 5º, §2 que: “Os direitos e garantias previstos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, a verdade é que o STF deu ao tema uma interpretação não condizente com a sua vocação de proteger os direitos humanos e em especial a dignidade da pessoa humana, mantendo interpretação que vinha desde 1977[13], que equiparava os mesmos a legislação federal ordinária.

Para que este entendimento sofresse modificação, foram necessárias três décadas, e a mesmo só ocorreu após o advento da EC nº 45/2004, que atribui o status de emenda constitucional as convenções e tratados internacionais sobre direitos humanos desde que observado o mesmo rito para a aprovação das emendas constitucionais. A controvérsia após esta norma surge: E no caso das normas não submetidas a esse procedimento, qual seria a natureza jurídica que deveria ser dada as mesmas? Manter a concepção de equipará-las às leis ordinárias, ou estar-se-ia diante de uma nova espécie normativa?

Em voto louvável, dando-se primazia a interpretação mais abrangente possível em sede de direitos humanos, o Pretório Excelso, em trecho do voto do Min. Gilmar Mendes, assentou que:

Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (Art. 7º, 7), ambos no ano de 1992 não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela posterior ou anterior ao ato de adesão.[14]

Com isso, ficou estabelecido que ao lado das Emendas Constitucionais e das espécies normativas elencadas no art. 59 da Carta Magna, a Excelsa Corte atribuiu aos tratados e convenções sobre direitos humanos um status diferenciado, face ao tratamento de matérias que acabam por importar no próprio cerne da dignidade da pessoa humana, aventura primeira e última do direito, uma vez que o mesmo tutela relações humanas, ainda que espraiada difusamente. Essa primazia da norma supra legal sobre a legislação infraconstitucional significa que os textos normativos existentes no Brasil não podem com eles conflitar, e cabe ressalvar que não se trata de uma construção interpretativa arbitrária. Ao contrário vem de encontro com o preconizado no Art. 1º, III, da CF, no qual o Brasil adota como fundamento a dignidade da pessoa humana[15]. Essa mudança de postura é perfeitamente explicada pela teoria Gadameriana, que propõe “um constante interpretar até que os conceitos prévios, ao longo da comunicação sejam substituídos por outros conceitos mais novos, mais adequados” [16].

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Assim, cabe ao intérprete cotejar a legislação infraconstitucional com os tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte e tenha aderido, não podendo os mesmos serem olvidados.


3 – Das portarias “toque de recolher” e o posicionamento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e de Tribunais Estaduais.

Como já salientado na introdução, estas portarias, que receberam o nome de toque de recolher, são atos de cunho normativo, editados pelo judiciário – juízos da infância e da juventude ou de quem fizer as vezes nas comarcas onde não possuem vara especializada – e que fixam horário para crianças e adolescentes permanecerem em espaços públicos ou comunitários -, fixados com critérios arbitrários, pois as diversas portarias emitidas não são coincidentes, ao contrário, em sua maioria divergem uma das outras de acordo com a localidade e a região em que são expedidas.

Os juízes que a editam, usam ao seu favor o disposto no art. 149, §2º, do ECA, dando-lhe interpretação elástica, para permitir a edição com caráter de amplitude e generalidade própria das leis, quando o comando normativo permite apenas edição de ato com caráter particular caso a caso.

O fundamento constante para a edição da portaria, a míngua de qualquer disposição constitucional, baseou-se em premissas, como afastar as crianças e adolescentes de gravíssimas situações que comprometeriam sua vida e educação, que a sua restrição contribuiria para a sua formação e as afastariam das drogas, entre outras.

Não cabe ao magistrado, enquanto hermeneuta e aplicador da lei ditar regra de conduta com aporia em premissas éticas, pois na ética o que é bom para um, pode ser péssimo para o outro.

Assim ditar condutas, valores morais, modo de ser, não cabe a ninguém, a não ser ao próprio indivíduo, enquanto espelho de uma dada realidade cultural, razão pela qual adverte John Hart Ely,[17]:

Portanto, não nos surpreendemos nem um pouco ao constatar que a história refuta a tese de que o Judiciário “isento” tem sido capaz de falar em nome de nossos melhores princípios morais.

Com razão o ilustre professor americano. O magistrado não deve ditar regras de comportamento formulado em juízo arbitrário e tolher a esfera de liberdade de quem quer que seja, a não ser nas hipóteses legalmente previstas. Não é o magistrado no exercício da jurisdição, o senhor da moral coletiva a ditar a hora de recolhimento de pessoas livres, nem pode instituir sanção sob pena de malferir o texto constitucional.

Fazendo coro ao que se afirma aqui, em obra conjunta Mendes, Coelho e Branco[18], reiteram que por estarem os direitos fundamentais na Constituição Federal, isso faz com que os mesmos sejam obrigações, deveres, e sujeição dos poderes constituídos aos direitos fundamentais, não podendo os mesmos serem tolhidos arbitrariamente.

A vinculação do legislador aos direitos fundamentais significa também, que mesmo quando a Constituição entrega ao legislador a tarefa de restringir certos direitos (por exemplo, o de livre exercício de profissão), o legislador haverá de respeitar o núcleo essencial do direito, não estando legitimado a criar condições desarrazoadas ou que tornem impraticável o direito previsto pelo constituinte.

Estas portarias, ainda que portadoras de boa-fé, são próprias de estado de exceção onde grassa a anormalidade institucional ou então em países totalitários, que não respeitam o mais básico princípio humanitário, que é o direito de ir, vir e ficar como busca de seu desenvolvimento enquanto pessoa.

Nesse diapasão, o prof. Luis Roberto Barroso[19] averbera:

A importância da Constituição – e do Judiciário como seu intérprete maior – não pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria nem o papel do Legislativo. A Constituição não pode ser ubíqua. [...] Juízes e tribunais não podem presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na Constituição.

Chamado a se manifestar quanto ao poder normativo dos magistrados, algumas decisões de Tribunais de Justiça e do Superior Tribunal de Justiça, manifestaram pela sua invalidade, conforme os seguintes julgados:

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. HABEAS CORPUS. TOQUE DE RECOLHER. SUPERVENIÊNCIA DO JULGAMENTO DO MÉRITO. SUPERAÇÃO DA SÚMULA 691/STF. NORMA DE CARÁTER GENÉRICO E ABSTRATO. ILEGALIDADE.

ORDEM CONCEDIDA.

1. Trata-se de Habeas Corpus Coletivo "em favor das crianças e adolescentes domiciliados ou que se encontrem em caráter transitório dentro dos limites da Comarca de Cajuru-SP" contra decisão liminar em idêntico remédio proferida pela Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2. Narra-se que a Juíza da Vara de Infância e Juventude de Cajuru editou a Portaria 01/2011, que criaria um "toque de recolher", correspondente à determinação de recolhimento, nas ruas, de crianças e adolescentes desacompanhados dos pais ou responsáveis: a) após as 23 horas, b) em locais próximos a prostíbulos e pontos de vendas de drogas e c) na companhia de adultos que estejam consumindo bebidas alcoólicas. A mencionada portaria também determina o recolhimento dos menores que, mesmo acompanhados de seus pais ou responsáveis, sejam flagrados consumindo álcool ou estejam na presença de adultos que estejam usando entorpecentes.

3. O primeiro HC, impetrado no Tribunal de Justiça do Estado de São    Paulo, teve sua liminar indeferida e, posteriormente, foi rejeitado pelo mérito.

4. Preliminarmente, "o óbice da Súmula 691 do STF resta superado se comprovada a superveniência de julgamento do mérito do habeas corpus originário e o acórdão proferido contiver fundamentação que, em contraposição ao exposto na impetração, faz suficientemente as vezes de ato coator (...)" (HC 144.104/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 2.8.2010; cfr. Ainda HC 68.706/MS, Sexta Turma, Rel. Ministra  Maria Thereza de Assis Moura, DJe 17.8.2009 e HC 103.742/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 7.12.2009).

5. No mérito, o exame dos consideranda da Portaria 01/2011 revela preocupação genérica, expressa a partir do "número de denúncias formais e informais sobre situações de risco de crianças e adolescentes pela cidade, especificamente daqueles que permanecem nas ruas durante a noite e madrugada, expostos, entre outros, ao oferecimento de drogas ilícitas, prostituição, vandalismos e à própria influência deletéria de pessoas voltadas à prática de crimes".

6. A despeito das legítimas preocupações da autoridade coatora com as contribuições necessárias do Poder Judiciário para a garantia de dignidade, de proteção integral e de direitos fundamentais da criança e do adolescente, é preciso delimitar o poder normativo da autoridade judiciária estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em cotejo com a competência do Poder Legislativo sobre a matéria.

7. A portaria em questão ultrapassou os limites dos poderes normativos previstos no art. 149 do ECA. "Ela contém normas de caráter geral e abstrato, a vigorar por prazo indeterminado, a respeito de condutas a serem observadas por pais, pelos menores, acompanhados ou não, e por terceiros, sob cominação de penalidades nela estabelecidas" (REsp 1046350/RJ, Primeira Turma, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 24.9.2009).

8. Habeas Corpus concedido para declarar a ilegalidade da Portaria 01/2011 da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Cajuru[20].

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PODER NORMATIVO DA AUTORIDADE JUDICIÁRIA. LIMITES. LEI 8.069⁄90, ART. 149.

1. Ao contrário do regime estabelecido pelo revogado Código de Menores (Lei 6.697⁄79), que atribuía à autoridade judiciária competência para, mediante portaria ou provimento, editar normas "de ordem geral, que, ao seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor" (art. 8º), atualmente é bem mais restrito esse domínio normativo. Nos termos do art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069⁄90), a autoridade judiciária pode disciplinar, por portaria, "a entrada epermanência de criança ou adolescente, desacompanhada dos pais ou responsável" nos locais e eventos discriminados no inciso I, devendo essas medidas "ser fundamentadas, caso a caso, vedadas asdeterminações de caráter geral" (§ 2º). É evidente, portanto, o propósito do legislador de, por um lado, enfatizar a responsabilidade dos pais de, no exercício do seu poder familiar, zelar pela guarda e proteção dos menores em suas atividades do dia a dia, e, por outro, preservar a competência do Poder Legislativo na edição de normas de conduta de caráter geral e abstrato. 

2. Recurso Especial provido[21].

Outro também não foi o entendimento firmado pelo Tribunal de Justiça do Tocantins, conforme podemos averiguar:

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA – ESTAUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE – APLICAÇÃO DO ARTIGO 149 – LIMITES – PODER NORMATIVO DA AUTORIDADE JUDICIÁRIA – NORMA DE CARÁTER GENÉRICO – PORTARIA ANULADA – PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - ORDEM CONDEDIDA.

A jurisprudência moderna considera abusiva a edição de Portarias que contenham normas de caráter geral e abstrato e ultrapassem os limites normativos previstos no artigo 149 do Estatuto da Criança e Adolescente.

O propósito do legislador é enfatizar a responsabilidade dos pais de, no exercício do seu poder familiar, zelar pela guarda e proteção dos menores em suas atividades do dia a dia, e preservar a competência do Poder Legislativo na edição de normas de conduta de caráter geral e abstrato.

A despeito das legítimas preocupações da autoridade coatora com as contribuições necessárias do Poder Judiciário para a garantia de dignidade, de proteção integral e de direitos fundamentais da criança e do adolescente, é preciso delimitar o poder normativo da autoridade judiciária estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em cotejo com a competência do Poder Legislativo sobre a matéria.  A portaria em questão ultrapassou os limites dos poderes normativos previstos no art. 149 do ECA, por  conter normas de caráter geral e abstrato, a vigorar por prazo indeterminado, a respeito de condutas a serem observadas por pais, pelos menores, acompanhados ou não, e por terceiros, sob cominação de penalidades nela estabelecidas [22].            

Nas decisões trazidas ao presente artigo, verificamos que a análise passou apenas no âmbito infraconstitucional, sem atacar o cerne do problema que são os limites e a legitimidade de atuação dos juízes em editar portarias com conteúdo normativo genérico, ou seja, não adentrou-se na hermenêutica constitucional possível, ante tais restrições.

Não desconhecemos a posição do Tribunal de Justiça de São Paulo, que em julgamento proferido pela Corte Especial, sequer conheceu do Habeas Corpus impetrado contra a portaria “toque de recolher” do município de Fernandópolis, ao argumento simplista de que a medida manejada não era cabível[23].

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Sobre o autor
Vick Aglantzakis

Servidor Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGLANTZAKIS, Vick. Judiciário como legislador: estudo de caso das portarias “toque de recolher”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3478, 8 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23396. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado ao professor Pós-Doutor Ney Bello Filho, como conclusão da disciplina "Jurisdição e Interpretação" do curso de Mestrado em Direito Constitucional.

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