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A questão da apreensão do real pelos operadores jurídicos

Agenda 01/11/2001 às 01:00

Enveredar pelo caminho da busca do real nos remete necessariamente pelas inúmeras explicações de fundo filosófico, pois a partir de tal referencial disciplinar poderemos estar mais aptos ao deslinde das questões jurídicas de trato com o verdadeiro e com o falso. Aliás, não vemos outra forma de suporte disciplinar, senão o manuseio filosófico pelo operador jurídico como modalidade satisfatória de acesso ao real, i.e., da produção mental que resulta da relação entre sujeito que conhece ( sujeito cognoscente )e o objeto a ser conhecido ( objeto cognoscível ). Dessa forma, o processo de apropriação intelectual pelo operador jurídico da realidade cambiante – cambiante porque histórica – constitui-se numa parcela da totalidade do ato de conhecer. É nesta dimensão que o operador jurídico deverá se situar, a saber, percorrer o caminho de apreensão do real, consciente das dificuldades de dito intento. Mas para tal intento investigatório o operador do direito deverá estar de posse de certas premissas básicas, a dizer: em primeiro lugar, o operador do direito saberá de antemão que a apreensão do real faz parte de uma razão histórica, cuja tessitura é formada das condições materiais de existência humana; em segundo lugar, a capacidade do homem em determinar as propriedades do objeto corresponde a uma modalidade de racionalidade possível em dada circunstância temporal e em terceiro lugar, a apreensão do real não é um dado pronto e acabado, mas depende do atualizar dos discursos e dos processos lingüísticos sobre o conhecimento humano, sob pena da manutenção de um dogmatismo jurídico esclerosado. Essas premissas prévias são enfatizadas em razão de uma certa tendência do operador do direito na busca de uma nominada "certeza jurídica"[1], como sendo possível de ser apropriada pelo desenrolar probatório do processo civil. Convém que se diga essa busca por uma "certeza jurídica" do operador jurídico remonta ao século XVIII, período este conhecido como Iluminismo, Século das Luzes, Ilustração ou "Aufklärung".[2] Nessa época das luzes, temos a propagação do chamado poder da razão em ordenar o mundo. Descartes, um dos representantes desse racionalismo, defende o poder da razão de perceber o mundo através de idéias claras e distintas.[3]

É neste período do pensamento iluminista do século XVIII que temos a inclusão do direito dentro do mesmo molde das ditas ciências exatas, como a matemática e as ciências experimentais. A partir daí o direito será tratado segundo uma metodologia de uma lógica profundamente formal. Neste instante temporal – da época iluminista - a ciência jurídica passa a buscar o real através dos mesmos enunciados das ciências exatas[4], i.e., o magistrado poderá descobrir a verdade pelos mesmos meios lógicos das ciências matemáticas. A lógica formal passa, assim, a ser tratada como instrumento de apreensão do real pelos operadores jurídicos. Essa influência da lógica formal é tão arraigada ao pensamento jurídico-processual de nossos dias que podemos facilmente encontrar manuais de processo civil onde a sentença é caracterizada como uma verificação silogística do real, v.g., na obra do processualista brasileiro Moacyr Amaral Santos, quando afirma "(...) a sentença, na sua formação, se apresenta como um silogismo, do qual a premissa maior é a regra de direito e a menor a situação de fato, permitindo extrair, como conclusão, a aplicação da regra legal a situação de fato".[5]

Podemos, destarte, avaliar o quão representa em importância teórica, a apresentação dos atos processuais de acordo com um padrão chamado de lógico-formal. Os iniciantes do processo civil das faculdades de direito ficam, assim, – especialmente em razão das expressões utilizadas, v.g., lógica jurídica, processos lógicos, etc – impressionados pelo controle exercido na descoberta do real pelos processualista. Em tal sentido não faltou quem dissesse do direito ser uma disciplina bem próxima da matemática.[6] No entanto, a natureza silogística, mormente no exemplo da sentença judicial não a torna garantia absoluta de acesso ao real ou verdade material de uma certa realidade. Muito pelo contrário, um pensamento que prima pelo uso silogístico da instrumentação processual tolhe a própria "força criadora" do magistrado.[7]

Dada a importância do direito segundo um emblema formado das ciências exatas – pensamento advindo do iluminismo, conforme acentuado acima -, a construção de todo o instrumental teórico do processo civil de nossos dias se resolve na busca de uma ordenação segura do real. E a maneira historicamente possível de afirmação do sentido científico da ciência jurídica, é apresentá-la segundo os padrões de uma lógica de base formal. A obtenção de uma segurança jurídica e o sucesso da mesma junto aos demais ramos do pensamento universal, só poderia se implantar em existindo um rigoroso plano de implementação. E essa forma rigorosa de apresentar o pensamento humano necessitava de um discurso adequado aos seus objetivos de segurança da sociedade, o que apontava para aquele raciocínio que pudesse ser deduzido de acordo com uma fórmula aparentemente exata, a não ensejar pertubações e desequilíbrios sociais. Não poderia ser assim um raciocínio de fundo problematizante, em harmonia com o discurso dialético.

Devemos enfatizar que o pensamento ocidental – de origem aristotélica - no que tange à descoberta da verdade se distingue em duas maneiras de raciocinar: o nominado raciocínio apodítico, que busca a verdade absoluta e justifica-se através da demonstração analítica, com fundamento na dedução dedutiva ( silogística ) e o chamado raciocínio dialético-retórico. O primeiro deles é típico das ciências matemáticas e experimentais, já o segundo trabalha com projeções argumentativas, tendo como referencial as opiniões e pontos de vista aceitos por um dado auditório. Esse raciocínio retórico-dialético apresenta o discurso jurídico em uma atmosfera argumentativa, enfrentando o problema no caso concreto por uma certa lógica, mas não a lógica formal que trabalha com enunciados prévios e gerais, mas apelando pela chamada lógica do razoável. O professor Fábio Ulhoa Coelho em estudo sobre lógica enfatiza que "as premissas do raciocínio jurídico não são propriamente dadas, mas escolhidas".[8]

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É no sentido da impossibilidade de apreensão do real segundo um raciocínio puramente de fundo formal que devemos situar a discussão do universo processual. Haja vista que os operadores do direito não participam do cenário processual através de uma participação meramente passiva em relação aos fatos provocadores do convencimento judicial. A descoberta da verdade dos fatos no processo não se produz porque sua busca é pautada pela lógica-formal, mas porque há uma eterna construção argumentativa em torno do objeto litigioso.[9] Essa eterna construção argumentativa em torno do processo objeto litigioso não deve ser confundida com a reprodução do modelo jurídico tradicional, o que resultaria na própria reprodução do sistema lógico-formal justificante das decisões judiciais em geral. Afirmar uma prática argumentativa do direito – especialmente na sua influência no direito processual – traz como conseqüencia a verificação que o real admitido tradicionalmente pelos processualistas finca bases numa lógica profundamente artificializada, a dizer, transmitida à sociedade como sendo capaz de descobrir a verdade, ou seja, de implantar um conceito de real que atenda aos anseios de segurança ao elementos dominantes. Todavia, esse anseio de sistematização e controle científico da esfera jurídica causa um isolamento tal do operador jurídico em relação ao objeto de sua ação, a saber, o fenômeno social visto pela lente daquele operador jurídico se visualiza como sendo um objeto diverso do restante dos elementos humanos de um específico ordenamento jurídico. O dito fenômeno social passa a ser ordenado de modo altamente abstrato, podendo, assim, ser capaz de criar aquilo que o professor Michel Miaille chamou de "jogo da abstração", onde, nas palavras do jurista francês:

"A lógica jurídica, pelo jogo da abstração, vai construir um certo número de conceitos que eliminam o conceito concreto, real, para o qual, no entanto, remetem. As coisas surgem, então, unicamente a partir ou através dessas formas isoladas no seu contexto: o menor, o tutor, propriedade, o direito de voto, o contrato, etc. A lógica jurídica consistirá, então, em propor a maneira de reunir esses termos, de os clarificar, de os utilizar, portanto, no seio de um sistema coerente, de modo que nenhum desses termos venha perturbar o acordo do sistema consigo, quer dizer, não venha constituir um objeto de contradição".[10]

Tais palavras do professor Michel Miaille nos demonstram o quanto é produzido o real instrumentalizado pelos operadores jurídicos. Isto é, este real instrumentalizado pelos operadores jurídicos se transmuda num real jurídico. É fácil perceber da literatura jurídica como é possível para o jurista transformar o real popular, da realidade dada, em "real jurídico".[11]

Ora, tendo em vista o panorama acima apresentado podemos presenciar algumas constatações sobre a caracterização do pensamento jurídico na determinação das "verdades" dos operadores jurídicos, a saber, trata-se de uma raciocínio argumentativo, onde o convencimento do auditório se produz mediante ações de convencimento, de persuasão.[12] Mesmo quando apresentado segundo ditames aparentes de um raciocínio de natureza formal-lógica, sua verdadeira natureza não deixa ser retórica. Aliás, o raciocínio argumentativo pode ser também visualizado como silogístico, mas desde que se entenda a expressão silogismo no sentido dado pelo professor Luiz Alberto Warat, a dizer, o nominado "silogismo retórico" em contraposição ao "silogismo demonstrativo".[13] Assim, essa natureza argumentativa do raciocínio jurídico deve ser enfrentada principalmente pelo operador jurídico da esfera processual, onde podemos mais de perto observar as inúmeras decisões judiciais marcadas pela diversidade de soluções aos casos concretos propostos aos órgãos judiciários. É comum uma corte decidir de tal forma conforme uma linha de raciocínio e, mais adiante, outra corte decidir de outra forma – o tribunal do estado tem um entendimento diferente tribunal superior, apesar da utilização-interpretativa do mesmo texto legal -, mas todas acobertadas pelo manto da legalidade retirada de um dado arsenal jurídico. Como aceitar as ditas mutações decisórias num longo itinerário recursal, onde a presença da "certeza",[14] da consolidação de uma situação concreta depende da manutenção de uma persuasão efetiva entre os diversos interlocutores jurídicos, senão através da verificação da marca argumentativa do discurso processual ?

Dessa forma, a análise do discurso jurídico-processual depende da sua inserção num contexto argumentativo entre os diversos interlocutores jurídicos, conscientes da precariedade do real alcançado no debate retórico dos palcos forenses. Haja vista as naturais contradições desse raciocínio, apesar de serem apresentados com uma cobertura lógico-formal, como que justicá-lo incapaz de incongruências internas.


Notas

1.DINAMARCO, Candido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, 3ª ed., São Paulo, Editora Malheiros, 1994. P. 238: "Em todos os campos do exercício do poder, contudo, a exigência de certeza é somente uma ilusão, talvez uma generosa quimera. Aquilo que muitas vezes os juristas se acostumaram a interpretar como exigência de certeza para as decisões nunca passa de mera probabilidade, variando somente o grau da probabilidade exigida e, inversamente os limites toleráveis dos riscos".

2.Sobre o tema Iluminismo e Ilustração a obra Mal-Estar na Modernidade, de Sérgio Paulo Rouanet, é de fundamental leitura.

3.SILVA, Ovídio Baptista da. Teoria Geral do Processo Civil, 1ª ed., São Paulo, RT, 1997, p. 57: "As verdades absolutas em direito, particularmente a busca da verdade como o ideal supremo e objetivo principal do direito processual civil, são decorrência da herança racionalista e das concepções políticas dos séculos XVII e XVIII, fruto do iluminismo, sob cuja influência a doutrina e as instituições ainda vivem".

4.PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica, 1ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 14.

5.AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras Linhas de Processo Civil, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, p. 10.

6.PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 14-15.

7.BUENO DE CARVALHO, Amilton. Magistratura e Direito Alternativo. 4 ed., Niterói, Ed. Luam, 1997: "A aplicação silogística da lei, como é ensinado nas faculdades, nada mais é do que uma forma de aprisionar o Juiz, tirar-lhe a força criadora. Serve às classes que elaboram as leis, pois fazem dele um mero e frio aplicador do direito positivo

8." ULHOA COELHO, Fábio. Roteiro de lógica jurídica. 3ª ed., São Paulo, Ed. Max Limonad, 1997, p. 100-101.

9.ULHOA COELHO, Fábio. Idem, ibidem.

10.MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2ª ed., Lisboa, Ed. Editorial Estampa, 1994, p. 179.

11.MIALLE, Michel. Idem. p. 180: "Desde logo, para um jurista, qualquer situação real, por mais complexa que seja, pode ser objeto de uma análise jurídica".

12.É importante notar que o conceito de auditório por nós utilizado encontra-se na obra Tratado da Argumentação de Chaïm Perelman. No entanto, gostaríamos de enfatizar que o auditório exemplificado nosso texto não se restringe tão-somente à comunidade jurídica, mas também de toda sociedade destinatária das decisões judiciais.

13.WARAT, Luiz Alberto. Introdução do Direito. Porto Alegre, Ed. Sérgio Antônio Fabris, 1994, p. 61.

14.A expressão "certeza" no nosso texto deve ser conpreendida num sentido de precariedade, haja vista sua relatividade nos vários contextos históricos.

Sobre o autor
Francisco da Cunha e Silva Neto

advogado nas cidades de Curitiba e do Rio de Janeiro, mestre em Direito Público pela UGF-RJ, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-PR, professor universitário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA NETO, Francisco Cunha. A questão da apreensão do real pelos operadores jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2341. Acesso em: 15 nov. 2024.

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