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Filosofia, giro linguístico e Direito Constitucional: reflexos em um processo jurisdicional democrático

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Agenda 03/02/2013 às 14:44

3 Influência do Giro Lingüístico no Direito Constitucional

O giro lingüístico abordado no tópico anterior, que teve lugar no âmbito da Filosofia, em tudo se relaciona com o Direito como um todo, mas especialmente com o Direito Constitucional.

Com efeito, diferentemente do Direito Natural, que era inerte por ser tão somente a retratação de princípios morais universais inatos ao homem, o Direito Moderno é ativo, cria e recria, altera, por meio de regras escritas, com intuito de regular as relações sociais e organizar as instituições da sociedade. Como afirma Habermas

[...] as normas jurídicas são hoje o que resta de um cimento social que se acha esfarelado; se todos os demais mecanismos de integração social estão exauridos, o direito ainda provê alguns meios para manter agregadas sociedades complexas e centrífugas que de outra forma teriam caído aos pedaços. [...] É fácil ver porque esta forma legal atende às exigências das sociedades modernas:

[...]

O direito moderno é editado por um legislador político e confere com sua forma uma autoridade vinculante a políticas flexíveis e sua implementação. Assim, ele atende ao modo particular de operação do moderno estado administrativo.

O direito moderno é imposto pela ameaça de sanções estatais e gera a “legalidade” do comportamento, no sentido de que a média das pessoas irá cumpri-lo. Ele se amolda, portanto, à situação das sociedades plurais, nas quais as normas jurídicas não estão mais embebidas de um ethos que seja compartilhado por uma população como um todo.

O direito moderno gera, todavia, estabilidade de comportamento apenas sob a condição de que as pessoas possam aceitar normas promulgadas e impositivas ao mesmo tempo como normas legítimas que mereçam reconhecimento intersubjetivo. O direito então se amolda à consciência moral pós-tradicional de cidadãos que não mais estão dispostos a seguir comando, salvo por boas razões.[34]

Portanto, o Direito é uma criação do próprio homem, que visou romper com o passado para “dissolver” a hierarquia, por meio das concepções abstratas de igualdade e liberdade.

Ora, se o Direito é produto do homem, e o homem é produto da linguagem, infere-se que Direito também é produto da linguagem. Desse modo, a reviravolta lingüística que trouxe a linguagem como base do “filosofar” – como novo paradigma para a análise do conhecimento humano e da fundamentação do pensar e do agir do homem no mundo – também transformou a forma de ver e pensar o Direito. Menelick e Scotti pontuam que

No nosso campo científico, o do conhecimento acerca do Direito, um grande complexo de inferioridade marcava a reflexão teórica jurídico-científica [...], pois a visível base convencional do direito moderno, positivado e contingente, parecia impedir aqui uma ciência que pudesse se apresentar como conhecimento irrefutável, eterno e imutável. Hoje, não mais precisamos ter qualquer complexo de inferioridade, porque a base convencional de qualquer ciência tornou-se clara. [...] O saber que se sabe limitado funda-se no permanente debate público acerca de seus próprios fundamentos e, assim, é precário, contingente e sempre aprimorável. Seus fundamentos são históricos e datados. A nossa racionalidade é, ela própria, um produto humano e como tal porta todas as nossas características.[35]

Outrossim, não se pode desvencilhar o Direito da Filosofia, pois, como apontam esses autores, o exercício do pensar filosófico aplicado ao campo do Direito, “volta-se tanto para o questionamento acerca das condições da produção do conhecimento neste campo” – Filosofia da Ciência aplicada ao Direito –, assim “como para as indagações acerca da justiça, de uma sociedade justa e de instituições justas” – Filosofia Moral aplicada ao Direito –, em especial no que tange ao exercício da democracia e da prática do constitucionalismo[36].

Nesse sentido, a teoria habermasiana é fundamental para esse novo cenário que se apresenta para a Filosofia e o Direito. Habermas, a partir da construção de uma razão comunicativa, demonstra que o desenvolvimento do conhecimento deve ser feito de forma intersubjetiva em um ambiente de interação social, em que, para além da situação presente, existe um pano de fundo de herança cultural e de vivências pretéritas que geram experiências para um futuro que é sempre inconstante e de difícil previsão.

Desta forma, essa racionalidade comunicativa de Habermas, antes de mais nada, é humana, e, portanto, “histórica, limitada, datada, ela própria uma construção social vinculada a determinadas tradições, práticas, vivências, interesses e necessidades, no mais das vezes naturalizados e apenas pressupostos”[37].

Conforme ponderações dos professores acima citados, a partir do surgimento desse novo paradigma, que possibilitou um “novo pano de fundo para a comunicação social”, desenvolveu-se

um reencantamento do Direito, seja como ordenamento ou esfera própria da ação comunicativa, do reconhecimento e do entendimento mútuo dos cidadãos para o estabelecimento e a implementação da normativa que deve reger sua vida em comum, seja como simples âmbito específico de conhecimento e exercício profissionais. É esse o novo paradigma que tem sido denominado pela Doutrina do Estado Democrático de Direito e que, no Brasil, foi inclusive constitucionalmente consagrado.[38]

Diante disso, essa retomada da reflexão filosófica na Filosofia do Direito, ocasionada especialmente pelo giro lingüístico, conduz a uma nova visão e interpretação do Direito.

De fato, o Direito não mais pode ser compreendido de modo puramente formal, como se fosse limitado a um sistema de regras escritas, que abarcaria todas as situações possivelmente conflituosas que poderiam ocorrer na sociedade, e que teria em seu ápice a norma hipotética fundamental, como pretendia Hans Kelsen. Com a consolidação do giro lingüístico não é mais possível reduzir a legitimidade do direito à textualidade legal.

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Essa constatação deriva do simples fato de não se poder e nem se conseguir o congelamento e o controle da linguagem, como foi explorado no item anterior desse trabalho. Como afirmam Menelick e Scotti

[...] é óbvio que não há dicionário ou gramática, por mais bem feita que seja, capaz de congelar a linguagem. Dicionários e gramáticas ficam defasados em pouquíssimo tempo diante da força atribuidora de sentido da gramática das práticas sociais em permanente transformação. A linguagem é algo vivo e vivenciado que não se deixa aprisionar.[39]

Nesse enfoque, como centro refletor de todo normativo regulador da sociedade e do próprio Estado, onde se insculpe e resguarda os direitos fundamentais individuais e coletivos, o Direito Constitucional ganha especial destaque nessa nova ótica.

Em sendo assim, o primeiro questionamento que se coloca em dúvida é: Considerando a Constituição como um conjunto sistematizado de normas gerais e abstratas, o que tem nela? O que ela constitui? A resposta a esta indagação é “nada”, ou melhor, a Constituição não constitui nada de concreto, pois é texto, que como tal não pode ser fechado na literalidade, pois é aberto no sentido.

Ora, tudo o que se encontra na Constituição é texto e como texto, isto é, como uma comunicação diferida no tempo, requer contexto. Quer-se dizer com isso que para se ler um texto é preciso recuperar o contexto em que ele foi escrito e perquirir sobre o significado naquela época e no momento de sua interpretação. Com efeito, há interação entre texto e contexto o tempo inteiro, ainda que isso vá contra a literalidade do texto. Demais disso, nenhum texto é capaz de tratar de todas as questões, pois estas surgem ao longo do tempo e da vivência dos sujeitos que interagem em uma sociedade cada vez mais complexa e plural. Tal é a proposta do giro lingüístico.

O texto em si é uma unidade semântica e, como forma de linguagem, um objeto sócio-cultural autêntico. Não se questiona que o texto escrito tenha uma permanência, mas esta só se dá na temporariedade, uma vez que a leitura do texto é regulada pela experiência do sujeito que o lê. De certa forma, o texto tem capacidade de ser atemporal e transcender o tempo, mas somente para ser sempre temporal, uma vez que o leitor de cada tempo é que dá o sentido ao texto em sua época.

De qualquer modo, persiste-se na ideia de que, para efetiva regulação da sociedade, é essencial a existência de uma ordem jurídica concretizada por normas gerais e abstratas em forma de texto, porque este é sempre atual, considerando que esse texto não controla a própria interlocução e, por isso, depende do intérprete que é quem dá sentido a ele.

E é por isso que a estrutura aberta da Constituição é um problema que, na realidade, é uma solução. Em um ordenamento de perfil principiológico existe uma indeterminação em abstrato e uma determinação em concreto, aberto “hermeneuticamente à construção intersubjetiva dos sentidos das normas universalistas positivadas enquanto direito fundamentais”[40]. Isso possibilita uma permanente abertura para o futuro.

Como expõe com sobriedade Michel Rosenfeld

Um texto constitucional escrito é inexoravelmente incompleto e sujeito a múltiplas interpretações plausíveis. Ele é incompleto não somente porque não recobre todas as matérias que ele deveria idealmente contemplar, mas porque, além do mais, ele não é capaz de abordar exaustivamente todas as questões concebíveis que podem ser levantadas a partir das matérias que ele acolhe. Mais ainda, precisamente em razão da incompletude do texto constitucional, as constituições devem permanecer abertas à interpretação; e isso, no mais das vezes, significa estarem abertas às interpretações conflitantes que pareçam igualmente defensáveis.[41]

Outrossim, ao tratarem da teoria de Dworkin, Menelick e Scotti esclarecem que, na visão desse autor, para que todas as normas – regras ou princípios – sejam aplicadas de modo racional, no sentido de que, por si sós, nada regulam,

requerem a intermediação da sensibilidade do intérprete capaz de reconstruir não o sentido de um texto normativo tido a priori aplicável, mas aquela específica situação individual e concreta de aplicação, em sua unicidade e irrepetibilidade, do ponto de vista de todos os envolvidos, levando a sério as pretensões a direitos, as pretensões normativas, levantadas por cada um deles, para garantir a integridade do direito, ou seja, que se assegure na decisão, a um só tempo, a aplicação de uma norma previamente aprovada [...] e a justiça no caso concreto, cada caso é único e irrepetível. É nesse contexto que Dworkin levanta a tese da única resposta correta.

A integridade do direito significa a um só tempo, a densificação vivencial do ideal da comunidade de princípio, ou seja, uma comunidade em que seus membros se reconhecem reciprocamente como livres e iguais e como coautores das leis que fizeram para reger efetivamente a sua vida cotidiana em comum, bem como, em uma dimensão diacrônica, a leitura à melhor luz da sua história institucional como um processo de aprendizado em que cada geração busca, da melhor forma que pode, vivenciar esse ideal.[42]

Com base nessas considerações, inclusive da ideia central do giro lingüístico, a primeira conclusão a que se chega é que a linguagem tem papel constitutivo e, por isso, é fundamental que haja uma estrutura aberta na constituição para que o sujeito que a interprete – o qual também é produto da linguagem –, o faça a partir da consideração de todos os envolvidos na relação intersubjetiva presente e do pano de fundo da própria linguagem, ou seja, do silêncio composto por todas as experiências e vivências do passado.

A segunda conclusão possível é que, diante da mudança de paradigma derivada da linguagem, a edição de novas normas gerais e abstratas, seja para alterar antigas diante de suposta defasagem, seja para regular uma situação que não tenha uma previsão legal específica, não simplificam a aplicação do Direito por suprir lacunas. Ao contrário, não diminuem o problema do Direito e aumentam a complexidade social, pois a mera edição em texto do direito, na forma de norma geral e abstrata, incentiva “pretensões abusivas de aplicação em situações concretas que, na verdade, nunca se deixaram reger por elas”[43].

Portanto, como afirmam os doutrinadores acima mencionados, a grande questão é “aplicar adequadamente normas gerais e abstratas a situações de vida sempre individualizadas e concretas”[44]. Assim, não se pode mais pretender transferir os problemas aos textos, pois “muitas alterações constitucionais profundas verificaram-se na história do constitucionalismo mediante alterações na gramática das práticas sociais”, a ponto de se passar ler tais textos a partir da lógica da razão comunicativa, que considera a herança da vivência do passado e o desafio do presente, com uma “ressignificação dos próprios direitos fundamentais”[45].

A terceira conclusão é que somente a partir de uma reflexão filosófica do giro lingüístico é possível compreender o verdadeiro papel da Constituição e a natureza principiológica e tensional dos direitos fundamentais. Conforme ensinamentos dos sempre citados Menelick e Scotti

[...] se, por um lado, os direitos fundamentais promovem a inclusão social, por outro lado e a um só tempo, produzem exclusões fundamentais. A qualquer afirmação de direitos corresponde uma delimitação, ou seja, corresponde ao fechamento do corpo daquele titulados a esses direitos, à demarcação do campo inicialmente invisível dos excluídos de tais direitos. [...] Este é um desafio à compreensão dos direitos fundamentais; tomá-los como algo permanentemente aberto, ver a própria Constituição formal como um processo permanente, e portanto mutável, de afirmação da cidadania.[46]

Essa natureza paradoxal dos direitos fundamentais, porém, é apenas aparente, com a finalidade de instaurar uma permanente e produtiva tensão entre inclusão e exclusão, pois “ao dar visibilidade à exclusão, permite a organização e a luta pela conquista de concepções cada vez mais complexas e articuladas da afirmação constitucional da igualdade e da liberdade”.

A reflexão filosófica que se faz, pois, é que o ser humano como ser lingüístico, por ser histórico e limitado em seus conhecimentos, está em constante mudança, e, por isso, os direitos fundamentais que, a princípio, calçam em proteção e inclusão, ao mesmo tempo, descalçam em exclusão por revelar, a todo momento, os antigos e atuais preconceitos a cada novo fundamento que se apresenta na relação intersubjetiva social. Desta forma, essa constante relação de oposição e complementaridade, faz com que um sujeito aprenda com o olhar do outro, o que somente é possível em um debate público e por meio de uma racionalidade comunicativa, que possibilita sistemicamente a modernidade.

Nesses termos, a compreensão dos direitos fundamentais como princípios opostos e complementares, aptos a gerar tensões produtivas, leva à instauração social de uma “eticidade reflexiva capaz de se voltar criticamente sobre si própria, colocando em xeque tanto preconceitos e tradições naturalizados quanto à própria crença no papel não principiológico e meramente convencional das normas jurídicas”[47]. Assim sendo, como sempre reitera o professor Menelick de Carvalho: se os direitos fundamentais nos calçam é porque eles nos descalçam de nossas certezas a cada novo fundamento.

Em suma, a presença dessa tensão dos direitos fundamentais no próprio conteúdo da Constituição segue a lógica da razão comunicativa de Habermas, no sentido de apresentar como solução ao debate entre lados aparentemente opostos, não mais a opção por um deles, mas sim um pensar junto dos dois. Isso se exemplifica na impossibilidade de se pensar um espaço público sem a consideração do espaço privado, e vice-versa, o que significa que não se considera um ou outro, mas analisa-se o conjunto.

Essa constatação demanda uma melhor análise da categorização do Direito na teoria discursiva habermasiana. Ora, considerando a evolução do Estado, para efetivação da garantia dos direitos fundamentais foi necessário materializá-los formalmente em um “texto escrito”, que contasse com a participação e o controle por parte de todos os beneficiados/afetados pelas medidas adotadas, em nome de uma exigência idealizante de democracia. Habermas, porém, não acredita nesse modelo de democracia e aposta em uma teoria discursiva que funda “a legitimidade do direito moderno numa compreensão discursiva da Democracia”. Na explicação de Menelick e Scotti:

Como demonstrado pela própria história institucional da modernidade, o direito positivo, coercitivo, que se faz conhecer e impor pelo aspecto da legalidade precisa, para ser legítimo, ter sua gênese vinculada a procedimentos democráticos de formação de opinião e da vontade que recebam influxos comunicativos gerados numa esfera pública política e onde um sistema representativo não exclua a potencial participação de cada cidadão [...]. A essa relação entre positividade e legitimidade Habermas denomina tensão interna entre facticidade e validade, pois presente no interior do próprio sistema do Direito.[48]

Diante disso, põe-se a questão de como agir diante de “conflitos de valores que resultam das inevitáveis interações entre (integrantes de) formas de vida coexistentes”, quer dizer, como neutralizar normativamente pela positividade a garantia da coexistência em igualdade de direitos com o asseguramento da legitimação mediante procedimentos, ou seja, como lidar com a tensão entre facticidade e validade em um ambiente de interação social.

Habermas aponta que é preciso buscar uma regulamentação neutra,

[...] uma regulamentação capaz de encontrar, no plano mais abstrato da coexistência de diversas comunidades eticamente integradas, o reconhecimento racionalmente motivado de todas as partes envolvidas no conflito e que convivem em igualdade de direitos. Para essa mudança do plano de abstração é necessária uma mudança de perspectiva. Os envolvidos precisam deixar de lado a pergunta sobre que regulamentação é “melhor para nós” a partir da respectiva visão que consideram “nossa”; em vez disso, precisam checar, sob o ponto de vista moral, que regulamentação “é igualmente boa para todos” em vista da reivindicação prioritária da coexistência sob igualdade de direitos.[49]

Todavia, considerando que não é possível uma solução moral passível de consenso para essa circunstância, pois os participantes desse debate possuem liberdade de expressão da vontade, o que, em coisas práticas, pode levar a um dissenso permanente, é preciso ponderar que, apesar disso, é preciso que se decida.

Assim, considerando que as decisões devem ser legítimas, inclusive em razão da “qualidade específica do direito poder coagir”, é preciso que haja um “proceder” do “processo democrático”, que inaugura a concepção de uma racionalidade procedimental do Direito, como força legitimadora das decisões. Nesse aspecto, o autor ressalta a regra da maioria da esfera de decisão política nos seguintes termos:

Decisões democráticas de maioria tratam de criar cesuras em um processo argumentativo (temporariamente) interrompido sob o risco de se tomar uma decisão e cujos resultados podem ser aceitos como base para uma práxis obrigatória, também pela minoria derrotada nas votações. Pois a aceitação factual não significa que a minoria tivesse de aceitar o conteúdo dos resultados como sendo racional, ou seja, como que ela tivesse de modificar suas convicções. O que ela pode fazer, no entanto, é aceitar por tempo determinado a opinião da maioria como orientação obrigatória para sua ação, desde que o processo democrático lhe reserve a possibilidade de dar continuidade à discussão interrompida, ou então retorná-la, bem como a possibilidade de mudar a situação da maioria em virtude argumentos (supostamente) melhores. A regra da maioria deve sua força legitimadora a uma racionalidade procedimental “incompleta” mas “pura”, no sentido de Rawls.[50]

Portanto, a racionalidade procedimental deve ser “incompleta”, pois dá o direito a supor resultados racionais, mas sem a garantia da correção dos resultados, e “pura” no sentido de que “no processo democrático não se pode dispor de quaisquer critérios de correção independentes do procedimento e porque a correção das decisões depende tão-somente do cumprimento factual do procedimento”.

Com isso, constata-se, mais uma vez, a existência de uma tensão interna e contínua no discurso quanto aos argumentos de apelo majoritário e minoritário, que demonstra o “aspecto contramajoritário dos direitos fundamentais, por terem estes pretensão universalizante – naquilo que deve ser garantido a cada cidadão independentemente dos valores compartilhados pela eventual maioria”, e garante que “as posturas comunitárias ético-políticas não percam sua reflexividade e, portanto, seus potenciais inclusivos e emancipatórios”, a partir da releitura e reapropriação da cadeia histórica do direito tendo como crivo os direitos fundamentais [51].

Demais disso, para Habermas, a democracia tem uma função epistêmica por manter a expectativa de que a legitimidade do direito emerge do procedimento democrático que pressupõe a aceitabilidade racional dos resultados produzidos diante do princípio do discurso de que “apenas são válidas as normas nas quais todas as pessoas possivelmente afetadas possam concordar como participantes de um discurso racional”. O autor elucida que

O discurso racional é supostamente público e inclusivo, para garantir iguais direitos comunicativos aos participantes, para exigir sinceridade e para desmantelar todo tipo de força salvo a débil força do melhor argumento. Esta estrutura comunicativa supostamente deve criar um espaço deliberativo para a mobilização das melhores contribuições disponíveis para os tópicos mais relevantes.[52]

Por conseguinte, a teoria discursiva de Habermas, que funda a legitimidade do direito moderno numa compreensão discursiva da Democracia, retoma o tema central do presente trabalho. De fato, há na seara do Direito uma influência direta do giro lingüístico, que ao criar um novo paradigma de racionalidade influencia exige que a legitimidade do Direito esteja vinculada à existência de um espaço onde as pessoas, por meio da linguagem, se comunicam e se consideram reciprocamente em um discurso racional que fundamente a aceitação do resultado do processo (no caso, uma norma).

Sobre a autora
Renata Espíndola Virgílio

Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001), especialização em Direito Processual Civil pela Unicsul (2007) e em Defesa da Concorrência pela Fundação Getúlio Vargas (2010). É Procuradora Federal (Advocacia Geral da União) e mestre em Direito, na linha de processo, pela UnB (2013).<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIRGÍLIO, Renata Espíndola. Filosofia, giro linguístico e Direito Constitucional: reflexos em um processo jurisdicional democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3504, 3 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23612. Acesso em: 5 nov. 2024.

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