Resumo: A confissão na fase extrajudicial se dá, na maioria das vezes, por coação ou em decorrência da falta de oportunidade de se consultar com um advogado antes do interrogatório diante da autoridade policial. Este artigo tem como objetivo primordial fazer uma análise da questão acima aventada frente ao princípio da não auto-incriminação, por meio de reflexão acerca do valor probatório de tal confissão e da busca de maneiras para garantir a aplicação efetiva do art. 5º, inciso LXIII, da Constituição de 1988, que assegura ao preso o direito ao silêncio e à assistência de advogado.
Palavras- Chave: Confissão extrajudicial. Princípio da não auto-incriminação.
Sumário: Introdução. 1. O princípio da não auto-incriminação. 2. O valor probatório da confissão extrajudicial retratada em juízo. 3. A efetiva aplicação do inciso LXIII do artigo 5º da Constituição Federal. Conclusão.
Introdução
O presente trabalho abordará o debate referente à confissão extrajudicial. Essa abordagem se dará essencialmente sob dois aspectos, quais sejam, o valor probatório da confissão na fase policial retratada em juízo à luz do princípio da não auto-incriminação e a efetiva aplicação do art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, que garante ao preso o direito ao silêncio e à assistência de advogado.
A escolha da temática que será abordada neste trabalho se deu em virtude da impossibilidade de se alcançar prova indiscutível acerca da autoria dos delitos. Essa impossibilidade causa inquietação aos aplicadores do direito penal. Na maioria das vezes a materialidade do delito é patente, mas não é possível afirmar com certeza matemática a sua autoria. Assim, sempre se condena com um juízo de probabilidade e não com um juízo de certeza.
Isso leva a refletir sobre a aplicabilidade do princípio penal conhecido como nemo tenetur se detegere ou princípio da não auto-incriminação. Pela importância do bem jurídico diretamente afetado pelo direito penal, qual seja, a liberdade, condenar alguém com base apenas em sua confissão extrajudicial posteriormente retratada em juízo é altamente temerário.
Dessa forma, pesa sobre as cabeças dos profissionais do direito, especialmente do direito penal, o conflito entre a vontade de fazer prevalecer a justiça, sob um aspecto amplo, e o respeito às garantias constitucionalmente asseguradas, especificamente o direito do acusado ou suspeito de não produzir prova contra si mesmo.
Merece destaque nesse ponto a questão da confissão obtida durante o inquérito policial e posteriormente retratada nos autos do processo judicial. Ela é válida como prova direta[1]? É lícito fundamentar a sentença em uma prova produzida no inquérito policial e infirmada em juízo, sob o crivo do contraditório? É legítimo considerar que as alegações do réu no depoimento perante a Justiça não fazem sentido e condená-lo com base naquilo que restou apurado no inquérito? Qual o real valor probatório da confissão extrajudicial e sua influência na fase judicial? Quais alterações no sistema atual poderiam ampliar o alcance do princípio da não auto-incriminação no processo penal?
Para responder essas perguntas inicialmente teceremos alguns comentários acerca do princípio da não auto-incriminação, seu conceito, origem e outros aspectos históricos, bem como as principais discussões que envolvem o tema.
Na segunda parte do presente estudo trataremos do valor probatório da confissão extrajudicial retratada em juízo. Para isso teceremos alguns comentários acerca da prova, considerada em si mesma, e da verdade processual, bem assim traçaremos a distinção entre prova e indício, pontos que consideramos fundamentais para que se chegue à conclusão pretendida.
Por último, apontaremos as medidas que entendemos necessárias para tornar efetiva a aplicação do art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, de modo a conferir maior legitimidade à confissão extrajudicial. Pensamos que isso será suficiente para, ao menos, diminuir consideravelmente o número de sentenças reformadas por conta de vícios na vontade, que acabam por tornar imprestável a confissão obtida no inquérito policial, sem observância das garantias constitucionalmente asseguradas, especialmente a de não se auto-incriminar, que abarca o direito ao silêncio e à assistência de defesa técnica.
1 O Princípio da Não Auto-Incriminação
Esse princípio designa, em processo penal, o direito que tem o acusado, pessoa física ou juridica, de não produzir provas contra si próprio. Dá vazão ao impulso natural do ser humano de buscar preservar sua liberdade e afastar as acusações que lhe sejam feitas, bem como serve de garantia contra abusos por parte do Estado e contribui para a distribuição do ônus da prova, isto é, cabe à acusação demonstrar o dolo ou culpa do acusado. Tal princípio está intimamente relacionado ao direito de defesa e a doutrina estrangeira costuma destacá-lo como expressão da dignidade humana.
Deita suas origens no sistema acusatório. Por essa razão, a Inglaterra foi o lugar mais propício para sua criação, uma vez que adotou o Júri em substituição ao sistema inquisitório. Surgiu do common law por meio do desenvolvimento jurisprudencial, antes mesmo do aparecimento nas legislações de outros Estados, e tem suas raízes na luta entre Igreja e Estado Inglês, servindo como uma proteção contra as perseguições religiosas que ocorriam na época. Vale dizer, era um meio de defender o cidadão dos interrogatórios estatais opressivos.
A criação e o desenvolvimento do direito ao silêncio teve seu berço na Inglaterra e tem íntima ligação com a oposição entre os sistemas acusatório e inquisitório, materializados nos tribunais do common law, de um lado, e nos tribunais eclesiásticos, de outro. Enquanto nos primeiros havia confiança nas provas independentes, aqueles últimos se firmavam principalmente na confissão, o que acabou por gerar as barbaridades que todos conhecemos acerca da Santa Inquisição.
Acredita-se que o princípio da não auto-incriminacao firmou-se na Inglaterra a partir de 1640. No final do século XVII o privilege against self-incrimination foi reconhecido no common law e, aproximadamente um século e meio mais tarde, foi elevado a status constitucional nos Estados Unidos por meio do Bill of Rights de 1791.
No Brasil, figurou pela primeira vez de forma expressa no texto constitucional por meio da Carta de 1988, que no seu art. 5º, inciso LXIII, dispôs da seguinte maneira: “o preso será informado dos seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da familia e do advogado.”
Em textos constitucionais anteriores podia-se fazer a inferência de que o principio da não auto-incriminação estava contido na garantia genérica do direito de defesa. Sobre a presença do aludido princípio nas Constituições pretéritas merece destaque, pela percuciência com que abordou o tema, o seguinte excerto da obra de Carlos Henrique Borlido Haddad (2005, p. 114-115): “A Emenda Constitucional de 1969, sem alterar a redação da Charta Magna de 1967, não previu no Titulo II – Da Declaração de Direitos – Capitulo IV – Dos Direitos e Garantias Individuais – o direito ao silêncio, não obstante tenham sido arrolados nos parágrafos dos arts. 150 e 153, respectivamente, inúmeros direitos e garantias relacionados ao processo penal. De igual forma, a Constituição de 1946, mesmo prevendo no Titulo IV, Capitulo II, arts. 141 a 144, os direitos e garantias individuais, omitiu-se quanto ao direito ao silêncio ou quanto a alguma outra manifestação do princípio nemo tenetur se detegere, sendo secundada pela Constituição de 1937, cujo rol de direitos e garantias individuais foi estatuído nos arts. 122 e 123. Idêntica opção política se revela na Constituição de 1934, porquanto o Capítulo II, que cuida dos direitos e garantias individuais, em nenhum momento fez alusão ao direito de permanecer calado. O mesmo se diz em relação à Constituição de 1891 (Titulo IV, Seção II – Declaração de Direitos). Por derradeiro, a Constituição do Império, em título único, abrangente das disposições gerais e das garantias dos direitos civis e políticos, não trouxe nova disposição sobre a matéria, efetivamente introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, em âmbito constitucional, pela Constituição Federal de 1988.”
No entanto, a legislação infraconstitucional já conhecia o mencionado princípio em normas anteriores à atual Carta Federal. Há sinais de sua positivação no Código de Processo Criminal de 1832, em seu art. 94[2], que faz alusão à liberdade de declaração do acusado; no Regulamento 737, de 1850, art. 208, § 1º[3], em que, pela primeira vez, foi facultado à parte silenciar para evitar prestar depoimento de conteúdo incriminatório; no Código de Processo Civil de 1939, art. 242[4]; bem como em diversos artigos do Código de Processo Penal vigente.
Com o advento da Constuição Federal de 1988 o legislador constituinte preferiu tornar explícita a presença do aludido princípio em nosso ordenamento, principalmente em virtude do momento histórico em que foi elaborada a referida Carta Politica, tendo sido ela: “o ponto culminante do processo de restauração do Estado Democrático de Direito e da superação de uma perspectiva autoritária, onisciente e não pluralista de exercício do poder timbrada na intolerância e na violência.” (HADDAD, 2005, p. 53).
O fato é que o uso de técnicas e métodos de investigação coercitivos e, por vezes, extremamente violentos, não era tão raro quanto se desejaria (e ainda não o é), de modo que o legislador teve que deixar bem clara a importância conferida à proteção dos cidadãos contra os abusos estatais. Tal característica de nossa Constituição permite transparecer a influência de traços do modelo garantista, caracterizado por Ferrajoli como um modelo de direito penal mínimo[5] (DUCLERC, 2004, p. 125-126).
Apesar de o texto constitucional aludir apenas ao direito de permanecer calado, o princípio em questão é mais abrangente, estando encobertos pelo mesmo todas as ações, físicas ou verbais, que possam trazer potencial lesão ao direito de defesa do acusado, contribuindo para sua própria condenação. Dessa forma, tal princípio colabora sobremaneira no combate à acomodação investigativa, na qual é inevitável que se recaia caso se busque incessantemente a confissão do acusado ou se infira de seu silêncio elementos probatórios que lhe são prejudiciais.
Alicerçado nos ensinamentos de Ferrajoli, Carlos Henrique Borlido Haddad, em sua obra “Conteúdo e Contornos do Princípio contra a Auto-incriminação”, agrupa, sob duas perspectivas, os casos concretos em que é possível invocar o princípio em questão: 1) liberdade de declaração do acusado; 2) não se pode exigir do acusado colaboração na produção de prova de caráter incriminatório.
A liberdade de declaração é dividida pelo autor em três classes de situações: inexigibilidade de confissão, supressão do juramento e direito ao silêncio. Essa primeira perspectiva diz respeito ao plano da oralidade processual. Quanto à segunda perspectiva apresentada por Haddad, há um número indeterminado de manifestações não-verbais que poderiam incriminar o acusado, não se afigurando possível identificar pontos comuns entre elas, a não ser a inexistência do dever de colaborar para a própria condenação.
A inexigibilidade de confissão busca afastar uma série de males, dentre os quais a propensão de se eleger um culpado para comprovar o sucesso das investigações, medida essa comum em regimes em que não se garante o direito de defesa e/ou o devido processo legal. Assim, a confissão não é um fim em si mesma, razão pela qual pouco ou nada vale se isolada de outros elementos de juízo, conforme resta bem claro da leitura do art. 197 do Código de Processo Penal: “O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.”
Impende destacar ainda que, de maneira alguma, se pode cogitar de confissão ficta. Há de ser sempre extraída do acusado, respeitada sua liberdade de declaração. Ademais, após a confissão o magistrado ainda indagará o réu acerca dos motivos e circunstâncias do fato, bem como se houve a participação de mais pessoas, nos termos do art. 190[6] do Código de Processo Penal. Isso se dá para que o juiz verifique se a confissão aconteceu de forma livre e consciente ou se foi motivada por elementos estranhos ao processo. Note-se que a precariedade desse elemento probatório é tão exacerbada que, no processo penal, a confissão é retratável.
Do exposto, cabe ao juiz, ao proceder à verificação da idoneidade da confissão, observar se a mesma se deu ou não pela influência de métodos coercitivos, de forma a assegurar o respeito ao princípio da não auto-incriminação, que se realiza por meio da liberdade de declaração do acusado, o qual está absolutamente dispensado de confessar contra a sua vontade.
Outro pilar da liberdade de declaração é a proscrição do juramento. No direito processual brasileiro, de tradição romano-germânica, apenas as testemunhas são obrigadas a dizer a verdade, mediante compromisso, sob pena de cometerem o crime de falso testemunho (Código Penal, Art. 342)[7]. Em um sistema como o nosso constitui ofensa ao princípio da não auto-incriminação obrigar o acusado a depor contra si mesmo, de forma que não há de sua parte o dever de falar a verdade, embora nem sempre suas declarações mentirosas lhe saiam impunes.
Nos países do common law a regulamentação se dá de maneira bem diferente, como explica Borlido Haddad (2005, p. 67): “Durante o julgamento, tanto no direito inglês quanto no norte-americano, se o acusado opta por depor, não lhe socorre o direito ao silêncio. Este somente existe até antes de se decidir a prestar o depoimento sob juramento. Depois de iniciada a inquirição, direta e cruzada (direct examination e cross-examination), o acusado somente pode valer-se do privilege against self-incrimination em relação a perguntas de que possam originar respostas demonstrativas da culpabilidade por outro delito. E a renúncia ao privilégio não pode ser parcial. Se o réu preferir depor a seu favor, será tratado como qualquer outra testemunha, sujeito ao juramento e às penas aplicadas ao crime de falso testemunho (perjury). Por essa razão, o silêncio ganha mais relevância no direito anglo-americano, pois ou nada fala ou diz a verdade. Não há o meio termo de prestar declarações mendazes.”
Chegamos finalmente à ultima das manifestações orais do princípio da não auto-incriminação a ser reconhecida pelo direito brasileiro. Trata-se do direito de permanecer calado, que só foi plenamente assegurado em nosso país com o advento da Constituição de 1988.
Esse direito, no âmbito do processo penal, veda a possibilidade de se reconhecer a culpa como motivação psicológica pelo fato de alguém permanecer em silêncio. No entanto, quando tal silêncio se dá de maneira intercalada, isto é, o acusado responde a algumas perguntas e em outras se cala, de maneira a apresentar contradições e inconsistências entre as declarações, é dado ao magistrado considerar tais circunstâncias na formação de seu convencimento.
Explicando melhor, é comum que, no interrogatório judicial, o acusado responda a um questionamento de maneira segura, dado que está falando a verdade, ou já preparou mentalmente alguma versão alternativa à realidade. No entanto, para outras perguntas elaboradas pelo juiz, complemetares àquele primeiro questionamento, ele não estava preparado, de maneira que deixa de responder, quedando-se silente, ou responde de maneira confusa ou contraditória, uma vez que não teve tempo de maquinar previamente o que diria em tal situação. Nesses casos, o juiz deve levar em consideração essa inconsistência no interrogatório para a formação de seu livre convencimento motivado.
Excluída essa exceção, o fato de o acusado permanecer calado não pode ser considerado em seu desfavor, sob pena de afronta à sua liberdade de declaração, sobre a qual se assenta o princípio da não auto-incriminação.
No processo civil, por sua vez, o mutismo acarreta a confissão ficta dos fatos alegados na petição inicial, razão pela qual se pode concluir que o princípio nemo tenetur se detegere não se aplica nessa esfera processual.
Com relação às manifestações não-verbais do princípio da não auto-incriminação, nota-se que há divergências interpretativas entre os vários países. Na Alemanha, por exemplo, onde esse princípio não está constitucionalmente expresso, mas é deduzido doutrinariamente a partir de outros três princípios constitucionais, quais sejam, a supremacia da dignidade humana, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e a proibição de afetação de um núcleo essencial do direito (PRADO e MALAN, 2008, p. 567-598), entende-se que o acusado não está obrigado a submeter-se ao exame do bafômetro[8]. A Corte Constitucional Espanhola (país em que o princípio em estudo tem status constitucional[9]), por sua vez, tem entendimento diametralmente oposto, ao afirmar que não há violação ao principio do nemo tenetur se detegere no dever de se submeter a testes periciais de dosagem alcoólica. Nos Estados Unidos, onde o princípio estudado também tem status constitucional[10], o entendimento é muito próximo ao espanhol, porquanto prevalece a garantia da não auto-incriminação apenas nas situações que envolvem a produção de declarações orais.
No Brasil o entendimento parece se balizar na máxima de que toda a colaboração ativa para o equacionamento dos casos deve passar pela liberdade esclarecida do réu, no sentido de que o princípio da não auto-incriminação pressupõe a existência de vontade em decidir o que fazer ou não. É o que se vê dos seguintes acórdãos do STF: “- HABEAS CORPUS - JÚRI - RECONSTITUIÇÃO DO CRIME - CERCEAMENTO DE DEFESA - NÃO-INTIMAÇÃO DO DEFENSOR PARA A RECONSTITUIÇÃO DO DELITO - PACIENTE QUE SE RECUSA A PARTICIPAR DA REPRODUÇÃO SIMULADA DOS FATOS - VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO CONTRADITORIO - INOCORRENCIA - PRISÃO CAUTELAR - INSTITUTO COMPATIVEL COM O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO-CULPABILIDADE (CF, ART. 5., LVII) - CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISORIA - MERA FACULDADE JUDICIAL - ORDEM DENEGADA. - A RECONSTITUIÇÃO DO CRIME CONFIGURA ATO DE CARÁTER ESSENCIALMENTE PROBATÓRIO, POIS DESTINA-SE - PELA REPRODUÇÃO SIMULADA DOS FATOS - A DEMONSTRAR O MODUS FACIENDI DE PRATICA DELITUOSA (CPP, ART. 7.). O SUPOSTO AUTOR DO ILICITO PENAL NÃO PODE SER COMPELIDO, SOB PENA DE CARACTERIZAÇÃO DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO, A PARTICIPAR DA REPRODUÇÃO SIMULADA DO FATO DELITUOSO. O MAGISTERIO DOUTRINARIO, ATENTO AO PRINCÍPIO QUE CONCEDE A QUALQUER INDICIADO OU RÉU O PRIVILEGIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO, RESSALTA A CIRCUNSTANCIA DE QUE E ESSENCIALMENTE VOLUNTARIA A PARTICIPAÇÃO DO IMPUTADO NO ATO - PROVIDO DE INDISCUTIVEL EFICACIA PROBATORIA - CONCRETIZADOR DA REPRODUÇÃO SIMULADA DO FATO DELITUOSO. - A RECONSTITUIÇÃO DO CRIME, ESPECIALMENTE QUANDO REALIZADA NA FASE JUDICIAL DA PERSECUÇÃO PENAL, DEVE FIDELIDADE AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO CONTRADITORIO, ENSEJANDO AO RÉU, DESSE MODO, A POSSIBILIDADE DE A ELA ESTAR PRESENTE E DE, ASSIM, IMPEDIR EVENTUAIS ABUSOS, DESCARACTERIZADORES DA VERDADE REAL, PRATICADOS PELA AUTORIDADE PÚBLICA OU POR SEUS AGENTES. - NÃO GERA NULIDADE PROCESSUAL A REALIZAÇÃO DA RECONSTITUIÇÃO DA CENA DELITUOSA QUANDO, EMBORA AUSENTE O DEFENSOR TECNICO POR FALTA DE INTIMAÇÃO, DELA NÃO PARTICIPOU O PRÓPRIO ACUSADO QUE, AGINDO CONSCIENTEMENTE E COM PLENA LIBERDADE, RECUSOU-SE, NÃO OBSTANTE COMPARECENDO AO ATO, A COLABORAR COM AS AUTORIDADES PUBLICAS NA PRODUÇÃO DESSA PROVA. - A LEGITIMIDADE JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DAS NORMAS LEGAIS QUE DISCIPLINAM A PRISÃO PROVISORIA EM NOSSO SISTEMA NORMATIVO DERIVA DE REGRA INSCRITA NA PROPRIA CARTA FEDERAL, QUE ADMITE - NÃO OBSTANTE A EXCEPCIONALIDADE DE QUE SE REVESTE - O INSTITUTO DA TUTELA CAUTELAR PENAL (ART. 5., LXI). O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DE NÃO-CULPABILIDADE, QUE DECORRE DE NORMA CONSUBSTANCIADA NO ART. 5., LVII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA, NÃO IMPEDE A UTILIZAÇÃO, PELO PODER JUDICIARIO, DAS DIVERSAS MODALIDADES QUE A PRISÃO CAUTELAR ASSUME EM NOSSO SISTEMA DE DIREITO POSITIVO. - O RÉU PRONUNCIADO - AINDA QUE PRIMARIO E DE BONS ANTECEDENTES - NENHUM DIREITO TEM A OBTENÇÃO DA LIBERDADE PROVISORIA. A PRESERVAÇÃO DO STATUS LIBERTATIS DO ACUSADO TRADUZ, NESSE CONTEXTO, MERA FACULDADE.” (HC 69.026/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Primeira Turma, julgado em 10/12/1991, DJ de 04/09/1992, p. 14091).
“HABEAS CORPUS. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. RECUSA A FORNECER PADRÕES GRÁFICOS DO PRÓPRIO PUNHO, PARA EXAMES PERICIAIS, VISANDO A INSTRUIR PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO DO CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO. NEMO TENETUR SE DETEGERE. Diante do princípio nemo tenetur se detegere, que informa o nosso direito de punir, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV do art. 174 do Código de Processo Penal há de ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio. É que a comparação gráfica configura ato de caráter essencialmente probatório, não se podendo, em face do privilégio de que desfruta o indiciado contra a auto-incriminação, obrigar o suposto autor do delito a fornecer prova capaz de levar à caracterização de sua culpa. Assim, pode a autoridade não só fazer requisição a arquivos ou estabelecimentos públicos, onde se encontrem documentos da pessoa a qual é atribuída a letra, ou proceder a exame no próprio lugar onde se encontrar o documento em questão, ou ainda, é certo, proceder à colheita de material, para o que intimará a pessoa, a quem se atribui ou pode ser atribuído o escrito, a escrever o que lhe for ditado, não lhe cabendo, entretanto, ordenar que o faça, sob pena de desobediência, como deixa transparecer, a um apressado exame, o CPP, no inciso IV do art. 174. Habeas corpus concedido. (HC 77.135, Rel. Min. Ilmar Galvao, Primeira Turma, julgado em 08/09/1998, DJ de 06/11/1998, p. 03).
“RECONSTITUIÇÃO DE CRIME (REPRODUÇÃO SIMULADA DE DELITO DE HOMICIDIO) (ART. 7. DO C.P.PENAL). DILIGENCIA REQUERIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DEFERIDA PELO JUIZ, NA FASE DO INQUERITO POLICIAL, E A CUJA REALIZAÇÃO OS INDICIADOS SE TERIAM NEGADO A COMPARECER. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COM BASE APENAS NESSA RECUSA DOS INDICIADOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 'HABEAS CORPUS' DEFERIDO PARA REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA, COMO DECRETADA, SEM PREJUIZO DE EVENTUAL DECRETAÇÃO DE OUTRA, SE CARACTERIZADA QUALQUER DAS SITUAÇÕES DO ART. 312 DO C.P.P. E COM ADEQUADA FUNDAMENTAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DOS ARTIGOS 7., 260 E 312 DO C.P.P.. SE A PRISÃO PREVENTIVA DOS PACIENTES FOI DECRETADA APENAS E TÃO-SOMENTE PORQUE NÃO SE TERIAM DISPOSTO A PARTICIPAR DA DILIGENCIA DE REPRODUÇÃO SIMULADA DO DELITO DE HOMICIDIO (RECONSTITUIÇÃO DO CRIME), FICOU CARACTERIZADO CONSTRANGIMENTO ILEGAL REPARAVEL COM 'HABEAS CORPUS'.” (HC 64.354, Rel. Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 01/07/1987, DJ de 14/08/1987, p. 16.086).
Dessa forma, pode-se concluir que, em nosso ordenamento jurídico, o acusado não é obrigado a produzir provas não-verbais em seu desfavor, dependendo tal comportamento de sua participação ativa voluntária e esclarecida.
Por fim, não cabe o encerramento deste capítulo sem a abordagem de outra importante discussão que se trava com relação ao princípio da não auto-incriminação, qual seja, o abarcamento ou não do direito de mentir. Alguns autores, como Giuseppe Floridia, Helio Tornaghi e Nikolaus Bosch, defendem que pelo fato de o réu não ter o compromisso de falar a verdade no interrogatório ele tem o direito de falsear a mesma, uma vez que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Assim, o que não é proibido é permitido, de forma que o direito de mentir seria inerente à própria autodefesa. Em outras palavras, a mentira seria uma conseqüência da liberdade de declaração.
No entanto, não é esse o entendimento de nosso Pretório Excelso, ao qual se perfilha o autor deste trabalho. O princípio da não auto-incriminação assegura ao acusado o direito de permanecer em silêncio ou até de prestar declarações mendazes, desde que estas não configurem ilícitos penais. Tome-se como exemplo um caso em que o acusado é abordado pela Polícia e se identifica com o nome de um terceiro. Nesse caso não há como se reconhecer o direito à mentira, tendo em vista que, além de a conduta ser tipificada como ilícito penal, causa prejuízo a um inocente, que certamente enfrentará imbróglios com a Justiça até que se esclareça toda a situação. Nesse sentido é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme se vê dos seguintes arestos, assim ementados:
“PENAL. PROCESSUAL PENAL. "HABEAS CORPUS". CRIME DE ROUBO: CONSUMAÇÃO. FALSA IDENTIDADE. SEQUESTRO. I. - Crime de roubo: consuma-se quando o agente, mediante violência ou grave ameaça, consegue retirar a coisa da esfera de vigilancia da vítima. II. - Tipifica o crime de falsa identidade o fato de o agente, ao ser preso, identificar-se com nome falso, com o objetivo de esconder seus maus antecedentes. III. - Crime de sequestro não caracterizado. IV. - Extensão ao co-réu dos efeitos do julgamento, no que toca ao crime de sequestro. V. - H.C. deferido em parte.” (HC 72.377, Rel. Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, julgado em 23/05/1995, DJ de 30/06/1995, p. 20.409).
“HABEAS CORPUS. PENAL. USO DE DOCUMENTO FALSO. ATIPICIDADE. INOCORRÊNCIA. O fato de o paciente ter apresentado à polícia identidade com sua foto e assinatura, porém com impressão digital de outrem, configura o crime do art. 304 do Código Penal. Havendo adequação entre a conduta e a figura típica concernente ao uso de documento falso, não cabe cogitar de que a atribuição de identidade falsa para esconder antecedentes criminais consubstancia autodefesa. Ordem denegada.” (HC 92.763, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 12/02/2008, DJ de 25/04/2008, p. 1.186).
Entretanto, nos casos em que a mentira do réu não configura uma conduta penalmente tipificada o Supremo Tribunal Federal tem o entendimento de que o acusado tem o direito de falsear a verdade, como um corolário do princípio da não auto-incriminação. É o que se vê do seguinte acórdão:
“‘Habeas corpus’. Falsidade ideológica. - No caso, a hipótese não diz respeito, propriamente, à falsidade quanto à identidade do réu, mas, sim, ao fato de o então indiciado ter faltado com a verdade quando negou, em inquérito policial em que figurava como indiciado, que tivesse assinado termo de declarações anteriores que, assim, não seriam suas. Ora, tendo o indiciado o direito de permanecer calado e até mesmo o de mentir para não auto-incriminar-se com as declarações prestadas, não tinha ele o dever de dizer a verdade, não se enquadrando, pois, sua conduta no tipo previsto no artigo 299 do Código Penal. ‘Habeas corpus’ deferido, para anular a ação penal por falta de justa causa.” (HC 75.257, Rel. Min. Moreira Alves, Primeira Turma, julgado em 17/06/1997, DJ de 29/08/1997, p. 40.219).
Pelo exposto, pode-se concluir que o principio nemo tenetur se detegere não confere ao acusado o direito irrestrito à mentira. Não são aceitáveis comportamentos ativos típicos do acusado com o fim de obstar o esclarecimento da verdade. Ora, o direito de não se auto-incriminar, assim como todos os outros, não é absoluto, razão pela qual não é possível crer que um sujeito possa se valer de meios ardilosos, induzindo os órgãos policiais e judiciais a erro, inclusive incriminando terceiros inocentes para garantir sua liberdade, mesmo admitindo que seja esse um instinto humano. O fato é que as regras impostas pelo convívio em sociedade limitam o direito de permanecer calado, de forma que não é lícito ao acusado mentir caso sua conduta seja tipificada como crime.
Portanto, até onde vai o direito à mentira como corolário do princípio da não auto-incriminação? Qual o seu limite? Pensamos que vai até onde não configure uma conduta penalmente tipificada. Ou seja, a mentira é um direito do acusado desde que não resulte em crimes.
O desfecho acima proposto permite uma nova conclusão. É dado ao acusado decidir se colabora ou não na produção da prova. Em outras palavras, comportamentos omissivos, mesmo que típicos, são uma conseqüência do princípio da não auto-incriminação. Trata-se de direito constitucionalmente assegurado. Por outro lado, comportamentos ativos, se penalmente tipificados, fogem à esfera do mencionado princípio.
No próximo capítulo abordaremos com maior profundidade a questão da confissão como decisão voluntária do acusado no sentido de colaborar na produção da prova, bem como firmaremos posição acerca de seu valor probatório quando emitida na fase extrajudicial e posteriormente retratada em juízo.