2 O valor probatório da confissão extrajudicial retratada em juízo
Dando prosseguimento a este trabalho, iremos agora discorrer acerca do valor probatório da confissão extrajudicial retratada em juízo, tendo em vista ser esta uma questão prática recorrente para quem lida com o processo penal no cotidiano. Para isso se faz necessário, preliminarmente, tecer alguns comentários concernentes à prova, considerada em si mesma, e à verdade processual.
Como previamente alinhavado no primeiro capítulo deste trabalho, pode-se afirmar que nosso modelo processual penal sofreu a influência de alguns traços do modelo garantista de Ferrajoli. Dentro dessa realidade, o renomado autor destacou a importância do critério do favor rei como um verdadeiro ponto de equilíbrio de todo o sistema, garantindo-lhe a previsibilidade necessária para que sejam atingidos os ideais de racionalidade e certeza característicos do garantismo. Desse critério se irradiam princípios essenciais de nosso ordenamento jurídico e do Estado Democrático de Direito como um todo, tais como, a presunção de inocência, o in dubio pro reo, a interpretação das normas penais (restritiva, para as normas incriminadoras, e extensiva, para as normas permissivas ou atenuantes de pena), a analogia in bonam partem etc (FERRAJOLI, 2002, p. 84).
Entretanto, tanto os modelos de direito penal mínimo, quanto os de direito penal máximo, se fundam em um critério de certeza relativa, subjetiva, incerta, como não poderia deixar de ser, uma vez que a certeza ou verdade absoluta é mera utopia. Assim sendo, o que distingue um modelo do outro? Enquanto o direito penal mínimo se funda no princípio de que nenhum inocente deve ser condenado, nos sistemas de direito penal máximo a baliza é a de que nenhum culpado deixará de ser punido (FERRAJOLI, 2002, p. 84). Segundo Duclerc, nos dois casos a construção da certeza a partir da incerteza constitui a expressão de um poder. Poder interpretativo, no caso da verdade jurídica, e poder comprobatório, ou de verificação fática, no que concerne à verdade dos fatos. Esse poder se tornará maior ou menor, absoluto ou relativo, conforme se façam presentes as garantias penais e processuais decorrentes da estrita legalidade e da estrita jurisdicionalidade. Dessa forma, isto é, uma vez constatada a existência desses espaços de poder, faz-se necessário encontrar condições que garantam sua redução e legitimem as decisões judiciais. Não vem ao caso se aprofundar nessa questão, uma vez que não é esse o objetivo deste trabalho, no entanto, pode-se antecipar que no que se refere à verdade jurídica essas condições se confundem com as garantias penais, enquanto que no que concerne à verdade fática as condições se confundem com as garantias processuais do sistema garantista (DUCLERC, 2004, p. 126-127).
O que se pode concluir do que foi dito acima é que a verdade processual está alicerçada nas garantias penais e processuais do sistema. Assim, em um Estado Democrático de Direito não se pode buscar a certeza[11] a qualquer custo, devendo estar condicionada ao fim do processo penal, que é a contenção do poder punitivo. Em outras palavras, não se pode chegar à verdade processual senão por meio do efetivo respeito a tais garantias. Dentre elas podemos enumerar (DUCLERC, 2004, p. 145-146): o princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, inciso LIV); a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5º, inciso LVI); o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5º, inciso LVII); o sistema das provas legais negativas; o princípio do livre convencimento; o princípio da atribuição do ônus da prova para a acusação; a exigência de fundamentação das decisões (CF, art. 93, inciso IX); o princípio da publicidade (CF, art. 93, inciso IX); o princípio da oralidade; o princípio da identidade física do juiz com a causa; o princípio do juiz natural (CF, art. 5º, incisos XXXVII e LII); as garantias e vedações funcionais da magistratura (CF, art. 95, caput e Parágrafo único); o duplo grau de jurisdição (Convenção americana sobre Direitos Humanos, art. 8º, nº 2); a exigência de conformidade entre acusação e sentença; o princípio do contraditório (CF, art. 5º, inciso LV); o princípio da ampla defesa (CF, art. 5º, inciso LV).
Outro ponto importante, e que será fundamental para que se conclua acerca do valor probatório da confissão extrajudicial retratada em juízo, é a diferença entre prova e indício. Para isso, utilizaremos a distinção feita por Ferrajoli, segundo o qual prova é o fato probatório ocorrido no presente e do qual se infere o delito ou outro fato do passado e indício é um fato provado no passado do qual se infere a ocorrência do delito ou de outro fato do passado que, por sua vez, tem valor probatório de indício (FERRAJOLI, 2002, p. 106).
Pela clareza com que abordou o tema, tomaremos a liberdade de transcrever um exemplo citado por Ferrajoli em sua obra “Direito e Razão”, que deixa muito clara a diferença entre prova e indício, senão vejamos: “De que é prova, por exemplo, o fato de Ticio atestar que viu Caio sair brandindo um punhal ensanguentado da casa de Semprônio pouco antes de este ser encontrado morto com uma facada no coração? É prova, mais ou menos provável, dependendo da sinceridade que creditemos a Ticio, do fato de que este vira Caio sair com um punhal na mao da casa de Semprônio, pouco antes de este ser encontrado morto com um ferimento no coração. Este segundo fato, contudo, é apenas um indício mais ou menos provável, por sua vez, segundo a confiabilidade que possamos atribuir a visão de Ticio do fato de que Caio saíra realmente da casa de Semprônio nas suspeitosas circunstâncias referidas por Ticio. Este terceiro fato é de novo apenas um indício, por sua vez mais ou menos provável, segundo a plausibilidade dos nexos causais propostos por nós, do fato de que Caio assassinara culpavelmente Semprônio. Temos, assim, nesta breve história, não uma mas três inferências indutivas: aquela que do testemunho de Ticio induz como verossímil que ele vira realmente a cena por ele descrita; aquela que de tal indício induz como verossímil que Caio tivera efetivamente o comportamento suspeito referido por Ticio; aquela que deste indício mais direto induz como verossímil a conclusão de que Semprônio fora assassinado por Caio. Se, além disso, não escutamos o testemunho de Ticio de viva voz, mas dispomos apenas da ata na qual foi ele transcrito, igualmente o testemunho fica reduzido a indício ou, se se quiser, a prova indiciária, e às três inferências deveremos acrescentar uma quarta: aquela que vai da ata ao fato, do qual a ata é apenas prova de que no passado verossimilmente Ticio declarou tudo o que fora transcrito, sem que seu depoimento fosse mal entendido, distorcido ou coarctado.” (FERRAJOLI, 2002, p. 106).
Estabelecida essa diferença convém ressaltar que a prova, ou melhor, o sistema ou conjunto de regras por meio do qual se chega às provas, é uma garantia do acusado contra o arbítrio estatal. Diz-se isso porque: “A prova, ao conduzir à certeza da inocorrência de um fato definido como crime ou da existência de alguma causa que exclua o crime ou isente o acusado de pena, interrompe o exercício do poder punitivo pelo Estado. Por outro lado, ao conduzir à certeza da sua ocorrência, permite a contenção do exercício daquele poder nos limites tolerados pela Constituição Federal, impedindo-se, assim, o arbítrio estatal.” (PRADO, 2006, p. 142-143).
Ultrapassada essa pequena digressão acerca da prova e da verdade processual, faz-se necessário um estudo complementar de alguns aspectos da confissão extrajudicial. Com isso, acredita-se que será possível esboçar um entendimento sobre o valor probatório da confissão extrajudicial retratada em juízo.
É fato que entre os meios de prova admitidos em direito, o mais buscado pelos profissionais da área ainda é a confissão. No entanto, e até por esse anseio quase ancestral, infelizmente não são raras as ocasiões em que a mesma é obtida de maneira irregular, mediante violação das retrocitadas garantias penais e processuais, o que evidentemente deturpa a almejada verdade processual.
Segundo ótima definição de Guilherme de Souza Nucci (1997, p. 76): “Confessar, no âmbito do processo penal, é admitir contra si, por quem seja suspeito ou acusado de um crime, tendo pleno discernimento, voluntária, expressa e pessoalmente, diante da autoridade competente, em ato solene e público, reduzido a termo, a prática de algum fato criminoso.”.
Como é sabido, o aspecto mais problemático do conceito é a questão do discernimento do acusado ou suspeito e a admissao voluntária, expressa e pessoal de sua culpa. Inclusive, esse é o principal problema da confissão extrajudicial. Grande parte daqueles que confessam em sede policial alegam, quando à frente do magistrado, a existência de algum vício em sua vontade (ausente a vontade, inexistente a confissão). Isso porque na maioria das vezes não tem acesso a um advogado que o oriente a permanecer em silêncio (CF, art. 5º, inciso LXIII), nem há a presença de um órgão de controle externo nos recintos policiais para garantir a incolumidade das declarações prestadas pelo interrogando, o que abre margem a abusos por parte dos interrogadores e a falsas acusações por parte dos interrogados.
Outro aspecto fundamental nessa questão é o fato de que no inquérito, sede dos interrogatórios extrajudiciais, não há garantia de contraditório nem ampla defesa. Dessa forma, se torna mais fácil distorcer a verdade, tanto em uma direção quanto em outra. Tanto é mais fácil induzir o suspeito a confessar, quanto é mais cômodo ao acusado dizer ao juiz que foi coagido a prestar as declarações constantes do interrogatório.
No mais, a confissão deve se dar diante de autoridade competente. Assim, as declarações prestadas por um suspeito ao policial na viatura não podem configurar uma confissão, visto não ser ele a autoridade legalmente capacitada para ouví-la, nem ser aquele o recinto próprio para tal ato. Tanto é que o policial poderá prestar depoimento em juízo relatando o que viu e ouviu, mas jamais será considerada uma prova confessional, senão meramente testemunhal (NUCCI, 1997, p. 79).
Além disso, a confissão deve se dar em ato solene e público, isto é, no interrogatório ou em outro momento processual em que o acusado é chamado oficialmente a prestar declarações. Assim, não é confissão uma conversa informal mantida entre o suspeito e o delegado (NUCCI, 1997, p. 79-80).
Noutro giro, a confissão deve ser dar em ato público, ou seja, deve ser produzida a portas abertas, de modo a preservar a garantia da publicidade, sem a qual restará violado preceito constitucional que visa assegurar a higidez do ato. Há exceções em que se admite a confissão a portas fechadas, como nos inquéritos policiais com caráter sigiloso, mas, em todo caso, o advogado sempre poderá, e é bom que o faça, estar presente.
Por fim, outro ponto importante do conceito de confissão é a necessidade de sua redução a termo. Nucci (1997, p. 80) defende que se o delegado não colocar as declarações por escrito, terão qualidade de mera prova testemunhal.
Uma vez abordados esses aspectos introdutórios, poderemos finalmente emitir um juízo balizado acerca do valor probatório da confissão extrajudicial retratada em juízo.
Como vimos no capítulo anterior, o princípio da não auto-incriminação garante ao réu o direito de permanecer calado diante das autoridades policiais e judiciais, de modo a não produzir prova contra si mesmo.
Nesse ponto, merece destaque a questão da confissão obtida durante o inquérito policial e posteriormente retratada nos autos do processo judicial. Ela é válida como prova direta? Em muitos casos o réu confessa o crime com minúcias e riqueza de detalhes no momento em que é preso, entretanto, depois de se consultar com um advogado e por ocasião de seu depoimento em sede judicial ele resolve negar tudo que disse na seara policial, sob a alegação, na maioria das vezes, de que sua confissão se deu mediante coação. Dessa forma, é lícito fundamentar a sentença em uma prova produzida no inquérito policial e infirmada em juízo, sob o crivo do contraditório? É legítimo considerar que as alegações do réu no depoimento perante a Justiça não fazem sentido e condená-lo com base naquilo que restou apurado no inquérito?
A garantia do contraditório e da ampla defesa é prevista na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, inciso LV, in verbis: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
Ora, não é possível imaginar um Estado Democrático de Direito em que estejam distanciadas as normas processuais penais dos princípios e fundamentos da Constituição e das normas internacionais de proteção ao indivíduo. Assim, o acusado goza do direito de defesa e de contrariar as acusações que lhe forem feitas, pois não há processo justo, nem imparcialidade estatal, nem justa aplicação da lei caso não sejam observadas tais garantias. Em outras palavras, é direito do réu suscitar a dúvida na consciência do julgador (in dubio pro reo) e tentar influir em seu livre convencimento motivado.
Um dos corolários das garantias supramencionadas é o princípio da não auto-incriminação, anteriormente abordado neste trabalho. É direito do cidadão, reconhecido nas Constituições democráticas e nos tratados internacionais, o de não produzir prova contra si mesmo. Portanto, sob aquele mesmo fundamento deve-se preservar o investigado da auto-acusação, afinal, qualquer prova produzida sem observância ao referido princípio deve ser considerada ilícita e, portanto, não se prestará a produzir seus normais efeitos.
Entretanto, como é sabido, no inquérito policial não há contraditório ou ampla defesa, pois a investigação policial é inquisitória e seu resultado é meramente informativo. Sua finalidade é investigar o crime e desvendar sua autoria, com o fito de fornecer ao autor da ação penal elementos para instruí-la em juízo. Por esse motivo, não se pode admitir que a condenação seja fundada apenas em confissão colhida no inquérito policial e retratada em juízo, tendo em vista a necessidade de repetição das provas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. A confissão na fase policial é mero indício. Não se trata, portanto, de prova, e ninguém pode ser condenado sem provas, sob pena de ofensa ao devido processo legal.
Nesse ponto, pela propriedade com que abordou o tema, impende ressaltar o seguinte excerto da obra de Guilherme de Souza Nucci (1999, p. 190): “(...) não se pode aceitar que as provas produzidas no inquérito, e possíveis de serem renovadas em juízo (tais como os testemunhos, as acareações e o interrogatório) tenham alguma validade, a não ser como mero indício, vale dizer, sozinhas, são imprestáveis para uma condenação ou para um juízo de pronúncia.” – os negritos não constam do original.
Esse autor entende que a investigação preliminar deve servir de garantia ao cidadão e à sociedade. Tratando-se de procedimento preparatório e preventivo não tem contorno judicial, razão porque, isoladamente, é inválido para produzir provas.
Assim sendo, Nucci defende que a prova colhida oralmente no inquérito deve ser valorada como mero indício. Necessita, para ter valor de prova direta, da confirmação em juízo sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, garantias constitucionalmente asseguradas aos lindes do processo penal, mas que não são afetas ao inquérito policial, conforme mencionado em linhas anteriores.
Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci (1999, p. 203): “A confissão extrajudicial, pois, por se tratar de peça extraída de um procedimento inquisitivo, sem a incidência do contraditório, normalmente sem publicidade e avesso às oportunidades de produção de prova defensiva, deve ser examinada pelo juiz como um mero indício e jamais como prova direta do fato criminoso.
Tendo ocorrido na fase policial, a confissão significará ao juiz um dos indícios que poderão compor o seu convencimento, mas, sozinha ou desprovida de sustentação, é totalmente imprestável para produzir efeitos em juízo.”
Prossegue o autor salientando que muitas vezes a confissão se dá porque o réu é interrogado antes de se consultar devidamente com um advogado e ainda fora de suas condições emocionais ordinárias, sempre alteradas pela prática delituosa. Portanto, pode até não se dar mediante coação, mas é procedida sem qualquer garantia processual ao acusado, razão porque não se pode afirmar que essa seria a real intenção do réu ou que não tenha havido qualquer tipo de pressão ou sugestionabilidade no interrogatório policial. Daí verbera (NUCCI, 1999, p. 205-206): “Essa distorção, que é a aceitação da confissão extrajudicial como prova direta no processo penal, dá ensejo ao arraigado costume da investigação às avessas, vale dizer, a polícia, ao invés de investigar amplamente o fato criminoso e buscar todas as pistas e opções possíveis, elege um suspeito e parte dele em busca das provas para incriminá-lo. Por isso, às avessas. Deveria, mesmo com um aparente suspeito à frente, checar todas as hipóteses prováveis, mas não o faz. Uma vez tendo o suspeito, contenta-se em forçá-lo a confessar e, depois, a partir disso, conseguir mais algumas provas para concluir o inquérito, enviando-o ao Ministério Público como caso encerrado.”
Em suma, o Estado tem o dever de prevenir e reprimir a criminalidade, mas também tem a obrigação de garantir ao cidadão a justa aplicação da lei. Não é porque a criminalidade aumenta que devem ser flexibilizados os direitos assegurados no texto constitucional. Assim, cabe ao Poder Público assegurar a existência de um sistema processual penal justo e imparcial, como garantia de pacificação social. E esse estado ideal das coisas passa pelo estabelecimento de regras mais claras quanto ao interrogatório na fase policial, de modo a evitar futuras contradições em sede judicial, que tornam o processo mais moroso e confuso e, por vezes, diminuem a confiabilidade dos jurisdicionados no Poder Judiciário.