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Para uma teoria do Estado pós-moderno: a razão política no entendimento do Direito

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Agenda 23/02/2013 às 14:05

1. O direito é um fenômeno social

A questão jurídica mais relevante é indagar como isto se reflete na vida comum e na esfera pública, se entendermos o papel distintivo que o Estado e as demais instituições públicas exercem sobre cada um. Porém, as explicações não são tão simples ou não devem ser simplificadas em excesso, sob pena de perdermos a compreensão de fundo, substancial, sobre a realidade que governa todos os fenômenos humanos. O que nos leva a desafio colocado neste texto, retroagir a história, a fim de verificar em que bases nós, ocidentais, construímos a ciência, o Estado e o direito moderno. A fim de alcançar um efeito didático, organizamos o texto em subitens que procuram guardar certa lógica e coerência entre si. Como se sabe, uma ciência se compreende por seu objeto e, sendo assim, vejamos o objeto que nos interessa na abordagem do direito como fenômeno social.


2. Objeto

2.1. Interação Social: mínimo de sociabilidade, dependência e ajuda mútua.

A análise sociológica ressalta os níveis de interação – inter-ação – da capacidade de convivência (convivialidade) e de internalização, aceitação acrítica e ajustamento às regras sociais. Como sociabilidade, a interação é marcada pelos conflitos de interesses não-antagônicos, ainda que sejam relações contraditórias e de oposição na base dos interesses individuais, de grupos ou classes. Por isso, a sociabilidade produz uma tolerância à diversidade cultural, social, política, religiosa e este fenômeno social impulsiona a alteridade, como aceitação do Outro, e impõe uma racionalidade em que as regras sociais estão ajustadas às normas jurídico-institucionais. Neste sentido, a interação indica a pulsão de um determinado ethos, como objetivação do ideal social. Todavia, a análise social, a partir dos níveis de interação, também se pauta pelos processos sociais de inconformismo (anomia) e desejo de mudanças (esperadas ou antecipadas), movidos por meio de ações e relações sociais pacíficas ou revolucionárias, do status quo e das instituições e estruturas sociais, especialmente diante da necessidade de superação das contradições sociais, econômicas, políticas e culturais. Neste determinado momento histórico, os níveis de conformismo social se rompem e a interação se recompõe por força das transformações estruturais inadiáveis que são necessárias, determinadas e independentes das vontades individuais ou de grupos sociais.

Temas correlatos, portanto, são a regulação e a emancipação social. Normalmente, regulação vem associada a controle e as formas de controle podem ser variadas. Há controle social pela ideologia ("a propriedade é sagrada, não mexam"), política ("as regras do jogo só podem ser alteradas pelos meios políticos adequados: parlamento"), economia ("trabalho e disciplina é o caminho do sucesso"), religião (“Deus ajuda a quem madruga”), direito (“direito sem coerção não é nada”), educação (“aprimore seu know How”), comunicação (“divulgue apenas o que o povo possa entender”). Emancipação, tal qual dos indivíduos se vistos isoladamente, requer meios que suprimam a tutela estatal sobre grupos, camadas e classes sociais. Há emancipação social em fórmulas mais liberais, como “permitir” que haja mediação a fim de que se resolvam alguns itens da vida social. E há vias mais ousadas ou radicais que exigem a desconstrução da hierarquia social e a sublevação das estruturas e do status quo. Neste caso, podemos pensar no momento atual porque passa boa parte do mundo árabe e no norte da África, com revoltas, revoluções culturais e guerras civis. Hoje, diante do acúmulo de crises, institucional (Estado) e sistêmica (sociedade), os aportes repressivos perdem cada vez mais legitimidade, ainda que o uso da força (física) possa ter efeito imediato. A junção das consequências globais das duas crises é sentida como uma espécie de crise de civilização, de significados, de referências, de vida e de morte.

2.2. Sociologia Jurídica: interação, normas sociais e regras jurídicas.

Como empatia ou entropia, a análise sociológica ainda pode destacar temas mais específicos como o poder, a política, a própria cultura e o direito seu próprio Estado. Para a sociologia, o Direito e a lei surgem como um conjunto de práticas sociais historicamente situadas. As práticas jurídicas como um conjunto abrangente e heterogêneo de práticas institucionais normativas, articuladas também de modo complexo com as demais instituições sociais. Discrepâncias quanto aos “usos” do Direito e das “funções públicas”, sob a imposição do assim chamado Estado Penal. Um caso evidente de desvio do Estado de Direito, da legitimidade democrática e da Justiça Social. O direito social é imanente, pré ou para-estatal, a exemplo da experiência do Balcão de direitos no Rio de Janeiro. De outro modo, a politização do Direito desvela-se como demonstração da intencionalidade humana – a política como fonte do Direito. Da representação social parcial à positivação (universalização) da intervenção legislativa. Direito e poder ou o direito que é poder?

Como parte do fenômeno jurídico, a Sociologia permite pensar a formação da nação – como superação das contradições sociais – e o povo, agora como categoria, elemento e sujeito histórico, e que pode ser entendido como a entidade jurídica originária de um contrato social. Como Sociologia do Direito, observam-se os aspectos sociais e político-jurídicos, a exemplo da necessária solidariedade que dá origem a qualquer sociedade e que surge organizada a partir de um conjunto de pessoas. Através do expresso ou implícito consentimento jurídico (pacto jurídico ou momento jurídico prevalecente à unificação e constituição do Estado e certamente anterior ao sentido de ordenamento jurídico), estabelece-se e se pactua uma espécie de união jurídica inicial (poder de constituir o Estado e suas diretrizes – o próprio Poder Constituinte), tendo por finalidade a coesão social (coação e coerção social). Ideologicamente, o poder e o direito são justificados pela chamada busca do bem comum e que deve ser assegurado pelo Estado. Definido de forma objetiva, vale dizer jurídica, povo equivale ao conjunto dos sujeitos históricos (nem sempre cidadãos: juridicamente, cidadão = eleitor), tendo-se em conta que cada sujeito é uma pessoa humana participante da autoridade soberana do poder popular.

Assim, a sociologia do direito pode destacar a autoridade baseada no reconhecimento social que destaca legitimidade porque o saber é constituído de forma compartilhada, dialogada, intervindo o contraditório. Com o conhecimento social produzido com a aproximação entre as pessoas e as comunidades, os aparelhos repressores de Estado se veem modificados em instrumentos institucionais de negociação: a presença ostensiva se converte em presença constante. A meritocracia (hierarquia do conhecimento), ao contrário, não resolve por si a questão uma vez que sem as mediações dos sujeitos, formas constitutivas de mecanismos de comunicação aberta, a hierarquia destacada pelo “saber acumulado” denota elitismo e estratificação. Deste modo, compartilhar o conhecimento é estabelecer o princípio democrático, erigido pela isonomia dos discursos. A lógica presente na mera imposição hierárquica na ordem de comando (Segurança Pública e demais aparelhos repressivos do Estado) não condiz com a expansão horizontal do conhecimento, porque também acumula “segredos de Estado”. A lógica própria à Razão de Estado não admite a comunicação e divulgação, de tal modo que os discursos são aprisionados na estrutura mecanicista do comando, via de regra ofuscado por suposto mérito. Desse modo, vê-se que o leque analítico tanto permite investigar e entender o Direito como resultante de um processo político e social – sociedades sem o Estado (primeiras ou primitivas) ou sociedades contra o Estado (Estado e poder paralelo) –, quanto visualizar o surgimento e as potencialidades de novos direitos e de novos sujeitos de direitos: pluralismo jurídico.

O mutualismo (para alguns cooperativismo) equilibra-se entre a interação e a entropia social. Porém, pode-se valer da entropia econômica do capitalismo para produzir Solidariedade e humanismo. A entropia econômica, apesar de ser hegemônica – enraizar-se por entre todas as frestas da sociedade e de sua cultura, nas relações sociais, na psique humana, na formação intelectiva e lógica do ser humano – não aniquila por completo os sentimentos e valores humanos. As primeiras explicações sociológicas dão conta que primeiro pacto (Hobbes) ou contrato (Rousseau), se ocorreram, eram de natureza constitutiva da sociedade, como se fossem realmente um contrato social, nos moldes do clássico contratualismo jusnaturalista. Desse modo, as articulações, associações derivadas (como vemos hoje em dia os convênios ou acordos e parcerias presente-futuras) não podem, é óbvio, escusar-se de seguir o mote original baseado na Liberdade de escolha e na legitimidade e responsabilidade social advinda da capacidade de contratuar com o Outro.

Também é curioso de se perceber que o contrato original, se balisado pela Liberdade de escolha de cada um, deveria justamente limitar daí por diante a Liberdade de todos. O contrato impôs, por meio de ação livre, a limitação da própria liberdade. De acordo com o mutualismo, ao se referir expressamente a quando, onde, como, quanto e quem, o princípio atrelado à interação social acentua a necessária formação de uma espécie de Lide Social – não como contraditório, mas sim na forma de uma súmula ou síntese das articulações entre a teoria e a prática associadas à produção e ao trabalho de edificação social. É evidente que não há que se falar em autonomia sem Liberdade, porém, não se justifica a autonomia sem crescimento do coletivo, sem amadurecimento social. Então, combinando-se e vivenciando-se na prática diária da produção colegiada, os princípios do cooperativismo asseguram-se do mutualismo, de um crescimento entre seus pares, da mesma forma que os indivíduos e cidadãos são cônscios das mudanças e alterações ocorridas e perpetradas no entorno social. Isto é, tudo o que nos modifica e nos consolida internamente, por força da dinâmica social, interage e subverte o status quo. Por força do mutualismo, a entropia cultural e econômica se modificam, solidificam-se, ou melhor, convertem-se em Solidariedade (solidus).

Desenvolver práticas (reais e virtuais) interativas que favoreçam e estimulem a concepção de que o “direito de acesso aos bens culturais, tecnológicos e científicos” constitui um direito humano fundamental, posto que corrobora com a elaboração das “inteligências coletivas ou das razões interativas” e assim possam incentivar o desenvolvimento e a produção de mensagens políticas dos variados grupos, camadas, estratos e classes sociais;


3. Marco Histórico

3.1. Renascimento: Mecanismo: Galileu – Descartes - Hobbes – Bacon

O “movimento do mecanismo” promoveu a razão necessária ao Estado Moderno, como mecanismo de superação do “estado de necessidade da natureza”. O mecanismo ofereceu o aporte do argumento lógico ao “poder instrumental” do Leviatã. O mecanismo ainda empregou um sentido científico à dominação política e projetou a “dominação técnico-racional”, em compasso com o discurso do Estado de Direito (como queria Weber):

O mecanismo é uma filosofia da natureza segundo a qual o universo e qualquer fenômeno que nele se produza podem e devem explicar-se de acordo com as leis dos movimentos materiais. [A minha filosofia], escrevia Descartes a Plempius, [só considera grandezas, figuras e movimentos, à semelhança do que faz a mecânica]. A fórmula será constantemente retomada no seu século: tudo na natureza se faz por [figuras e movimentos]

(Alquié, 1987, p. 59).

Como veremos, no mecanismo, há uma mescla entre racionalidade e empirismo. Sob essa influência, mas em período subsequente, também surge Blaise Pascal (1623-1662): filósofo, místico, físico e matemático. A frase mística “o coração tem razões que a própria razão desconhece” é uma síntese de sua doutrina filosófica: entre raciocínio lógico e emoção. Pascal foi um gênio matemático e também criou a primeira calculadora mecânica. Além de sua intensa atividade científica, ainda se dedicou a trabalhos de natureza filosófico-religiosa e, como teórico, destacou-se como um dos mestres do racionalismo e do irracionalismo. Porém, antes disso, no século XVII, o mecanismo tinha uma fórmula simples: Tudo na natureza ocorre por meio de figuras e dos seus movimentos. É deste fluxo que advém a ciência clássica. Também é neste sentido que se pode dizer que o mecanismo promoveu uma revolução na ciência sem ter sido uma teoria científica — distinguiu-se como uma nova racionalidade e por trazer outra forma de apreensão dos fenômenos. O próprio surgimento do mecanismo se deu com uma descontinuidade, mas o sentido laico e comum é a necessidade de explicar os fenômenos da natureza exclusivamente pelas leis dos movimentos da matéria — e esta não tem alma. Esse típico pensamento mecanicista (tendo o cartesianismo por referência) logo ganhou a consciência do homem comum. Os “mecanicistas” ainda rejeitaram as físicas animista, qualitativa, finalista. Mas o Mecanismo não foi só uma ilustração filosófica, foi uma obra de concretude técnica ou, mais precisamente, de obras mecânicas (além da própria mecânica, enquanto parte da física):

MECÂNICA – tradicionalmente a teoria das máquinas, em particular as cinco “máquinas simples”: a alavanca, a cunha, a roldana, o parafuso e o molinete. Transformada durante a revolução científica para incluir teorias de colisão e outros problemas associados com corpos em movimento (Henry, 1998, p. 139).

Foram aí indicadas cinco peças, além da lançadeira voltante, que propiciou a alavancagem da Revolução Industrial. O que também se percebe hoje com mais clareza é que o próprio Renascimento não foi uma era homogênea, recheada de grandes gênios e em meio a cursos revolucionários contínuos. Houve sim, como longo processo de amadurecimento e de profundas transformações, certos momentos ou fases em que dialogavam plenamente o moderno e o arcaico, o novo e as tradições, as mudanças e o sectarismo, a alquimia e a química, a RETA RAZÃO e o pensamento mágico:

“MIRABILIA” — literalmente, “coisas maravilhosas”. Usado para denotar máquinas ou autômatos que costumavam ser mostrados na corte em exibições, cerimônias, espetáculos teatrais e ocasiões similares e que pretendiam produzir, por meios ocultos, efeitos impressionantes ou surpreendentes, mas apenas divertidos (Henry, 1998, p. 22).

Esta mescla ou era de transição entre épocas tão díspares, até que se conhecesse todo o potencial do Renascimento(?), também teve obscuridades ou incertezas (aliás, muito apropriadas quando se trata de ciência):

Entretanto, o autor daquele livro seiscentista de ‘química’ empregava largamente uma simbologia de derivação alquimista, defendia a existência de uma real analogia entre as propriedades do arsênico e do antimônio e o comportamento dos animais (a serpente e o lobo) cujos nomes as substâncias eram simbolizadas: ou seja, identificava (como tipicamente ocorre dentro do ‘mundo mágico’) as propriedades e as características dos objetos usados como símbolos com as propriedades e as características dos objetos ou das coisas reais simbolizadas (Rossi, 1992, pp. 331-332 – grifos nossos).

Esta análise — do livro Schema materialum pro laboratorio portabili sive Tripus Hermeticus fatidicus pandens oracula chymica, de Johann Joachim Becher (1689) — revela que há magia no Renascimento, que o próprio desencantamento do mundo (como racionalidade progressiva) não é um processo uno, homogêneo, onipresente. Na verdade, ainda que talvez seja o período mais fulgurante da história humana (maior ainda do que as civilizações grega e romana), o Renascimento foi um processo tortuoso, contraditório e extremamente beligerante. Para Galileu, de modo semelhante, só a razão (consciência dos fatos) leva à verdade, no debate entre ciência (moderna) e fé deve prevalecer o argumento lógico (principalmente porque se deve aplicar essa lógica às próprias Escrituras):

Eu acrescentaria somente que, se bem que as Escrituras não possam errar, os seus intérpretes e expositores poderiam, entretanto, incorrer por vezes em erros, e de várias maneiras [...] Pois nem toda afirmação da Escritura amarra-se a uma obrigação tão severa como cada efeito da natureza [...] E quem quererá colocar um limite à capacidade do espírito humano? Quem ousará afirmar já ser conhecido tudo o que existe de cognoscível no mundo? (Galileu, 1988, pp. 18-19-20 – grifos nossos).

Entretanto, lhe permaneceu vivo esse espírito de desconfiança, ou melhor, de não apostasia diante do conhecido e do conhecimento. Afinal, como ensinou Galileu: Quem afirmará que já se conhece tudo o que possa ser conhecido no mundo?

De certo modo, pode-se reportar ao atomismo da Grécia clássica (Demócrito, Epicuro) para buscar suas raízes. Galileu se declarou epicurista[i] e isto o desvinculou da filosofia natural do Renascimento, abrindo as portas da natureza: “Este materialismo desmistificava os prestígios da natureza e podia ajudar fortemente os homens a tornarem-se <senhores e possuidores> dela” (Alquié, 1987, p. 61). Ou seja, o mecanismo procurou livrar o homem da ação dos poderes que não fossem científicos ou provindos da razão: “A doutrina que então explicava a matéria por meio de um arranjo mecânico de átomos destinava-se a desprender o homem de todos os poderes exteriores a si; nem as coisas cá de baixo nem os astros lá do alto podiam exercer influência sobre ele” (Alquié, 1987, p. 61). No entanto, havia uma diferença acentuada entre atomistas e mecanicistas: “Os mecanicistas do século XVII reclamam a liberdade que se obtém dominando a natureza; os atomistas antigos haviam buscado a que se alcança preservando-se da natureza” (Alquié, 1987, p. 61). Os mecanicistas eram intervencionistas, mas, além disso, o século XVII queria desvendar o mundo. De certo modo, diferentemente de muitos outros “colaboradores menores” (Torricelli, Cavendish, Mersenne), Descartes foi mais dogmático: “A dúvida permitiu encontrar as verdades primeiras a partir das quais se funda uma ciência certa” (Alquié, 1987, p. 63). Sua dúvida metódica trouxe-lhe rápidas certezas.

Por isso, também viram sucumbir a ideia do cosmos como “hierarquia ontológica fechada” — em benefício de um mundo aberto e em movimento, e segundo leis gerais e comuns. Por exemplo, para Descartes, a natureza é matéria: “A natureza nada inventa: há tão só fenômenos que aí aparecem, explicáveis por algumas leis simples e imutáveis” (Alquié, 1987, p. 66). Também o homem é matéria, e máquina em movimento — para Descartes, o homem é simples: “O corpo do animal e do homem, excetuada uma maior complexidade, não funciona de modo diferente de qualquer maquinaria fabricada pelos homens” (Alquié, 1987, p. 66). Relógios e órgãos são bem semelhantes, assim como nervos e tubos. A água que brota das fontes pode mover máquinas ou pronunciar palavras. As molas se armam como tendões. Contudo, é pelo pensamento que o homem compreende a máquina, e tanto o seu corpo quanto a mecânica do mundo. Mais especificamente, Descartes e Pascal fizeram assim uma distinção do espírito e da matéria[ii]. Talvez ainda deva-se dizer que havia uma tendência à mecanização radical: “Pensando que o seu corpo é uma máquina integrada na grande máquina do universo, o homem assegura a sua dignidade” (Alquié, 1987, p. 67). Neste sentido, se ainda quisermos, os gregos também conheciam a arte dos “mecanismos autômatos” (Losano, 1992).

Observando-se retrospectivamente, no entanto, há uma forte ironia quanto aos princípios e resultados do mecanismo: “Foi como filosofia da natureza, como teoria geral do mundo, que ele se mostrou fecundo, dando ao homem um outro olhar sobre o universo, e não na sua aplicação ao pormenor dos fenômenos” (Alquié, 1987, p. 70). Sua superação também se deu de modo lento, em concomitância com o surgimento das ciências especializadas: o funcionalismo seria um caso típico. Enfim, a partir de então, o “conhece-te a ti mesmo” iria depender do conhecimento da física e da mecânica mais especificamente.

De que serviu a mecânica?

O Homo faber potencializou a si mesmo com o uso de instrumentos achados ou fabricados; desde muito cedo, a técnica exerceu o papel de longa manus no trabalho de fabricação do próprio homem. Por isso, tal qual hoje em dia, no começo era a técnica, especialmente a mecânica. Desde o início, a mecânica apareceu para o homem associada à satisfação das necessidades e à tentativa de sobrevivência: “Deslocar pesados fardos e assegurar o equilíbrio de massas importantes foram manifestamente, desde a mais alta antiguidade, as duas preocupações principais da humanidade desejosa de desafiar a ação destruidora do tempo e de se superar a si mesma nas produções estáveis de civilização” (Alquié, 1987, p. 83). O complemento subsequente dessa intervenção, como sabemos, foi a “fabricação da cultura” e também aí a mecânica se associou ao mito do poder e da opulência e tão presente no deslocamento das toneladas que acionariam a força da “civilização do movimento[iii]”: “O mito da torre de Babel corresponde a esta realidade. A abundância dos monumentos de todas as espécies, desde os enormes menires até aos zigurates e às pirâmides do Egito, é testemunho do acesso dos grupos humanos, em todos os pontos do globo e em tempos muito remotos, a técnicas de grandes construções” (Alquié, 1987, p. 83). Parte do método científico moderno, por sua vez, tem dívidas teóricas com os gregos clássicos e com instrumentos de uso prático: “No movimento derivado do Renascimento, o século XVI ocidental redescobre a obra teórica mais elaborada da ciência helênica, a de Arquimedes, e esta obra, centrada na estática, apresenta a regra de equilíbrio da alavanca reta a partir de considerações lógicas independentes da natureza da gravidade” (Alquié, 1987, p. 84). De modo complementar, a balística sempre esteve associada à agressividade natural do poder e à conquista, tornando-se imprescindíveis a direção e a precisão. Porém, a eficácia militar só se tornou possível com a chegada de outro profissional aos paióis e arsenais: o “matemático-engenheiro”. Ali se misturaram completamente o movimento, a razão e a violência (que serviriam ajustadamente ao poder nascente do Estado Moderno). A par disso, dois novos instrumentos aperfeiçoados nos séculos XV e XVI colaboraram com esta equação do poder: a biela-manivela e o volante. Teoricamente, a obra de Galileu, Discursos e Demonstrações Matemáticas em torno de Duas Novas Ciências, é um marco dessa alteração da visão de mundo, sobretudo porque trocou a estática pela mecânica (ou mecanismo).

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Galileu e a verdade empírica

Galileu Galilei (1564-1642) tornou-se um mártir na defesa dos “direitos da razão”, mas acabou seus dias preso e sofrendo humilhações físicas e morais, após ser condenado pelo Santo Ofício em 1633. Curiosamente, a prova formal apresentada por ele sobre o movimento da Terra (o fluxo e o refluxo do mar) de nada valia. Entretanto, suas contribuições foram muito além, por exemplo, quando aperfeiçoou consideravelmente a luneta e “a apontou para o céu”. Também não viu o florescer da álgebra, mas o que havia feito pela matemática, há muito se antecipara a seu tempo: a língua da matemática permitiria ler o livro da natureza. Desde cedo, no entanto, teve facilidade para a música e o desenho, e notável habilidade para a construção de instrumentos. Sua formação posterior (o pai foi seu primeiro professor) lhe garantiu uma erudição humanista. Já adulto, estudara Dante e aí se inspirou na recusa à empáfia e à soberba: “A poesia burlesca que ele escreveu contra o uso da toga revela, já nesta época, o caráter militante da sua aversão às estruturas conservadoras que lesam a independência do espírito” (Alquié, 1987, p. 07). De outro modo, cientificamente, Galileu identificou melhor o heliocentrismo na madrugada do dia 07/01/1610. Assim, na carta que escreveu ao príncipe de Florença dizia do seu entusiasmo pela ciência inteiramente nova que lhe antevia: o movimento do mecanismo. Depois, como réplica a muitos ataques que sofrera, Galileu escreveu uma outra carta à grã-duquesa Cristina, afirmando que: “... a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como se deve ir para o Céu, e não como vai o Céu” (Alquié, 1987, p. 12). Perto do fim, já condenado, Galileu manteve a dignidade de sua postura — em sua defesa, sempre se valeu de argumentos da pesquisa racional. Por fim, na França, sob a proteção do parlamento e de um laicizismo maior, suas obras puderam circular mais livremente. Mesmo cego, Galileu continuou pesquisando, dando provas do que é ser um clássico: “o verdadeiro sábio é aquele que, até o fim, volta a empreender tudo de novo” (Alquié, 1987, p. 15).

É interessante perceber como o embate pela razão estava presente em Galileu e ainda que, em outras palavras, fosse clara a preocupação de que primeiro era preciso relativizar a metafísica para só depois propor-se um método arrojado, metódico, racional, definível para qualquer um que o quisesse empregar. Em Galileu é expressa esta percepção de que a ignorância é o que aterroriza e não o conhecimento adquirido na verdadeira investigação empírica da realidade. Diante do inevitável conflito, Galileu faz uma aparente concessão à metafísica daqueles que se mantinham aferrados à interpretação dogmática das escrituras, mas isto não passava de outro simples exercício de sua inteligência e sagacidade superiores. Usava de um estratagema da razão contra a sedição que se poderia provocar, enfrentando-se a dogmática e a metafísica diretamente. Portanto, era mero artifício (e que levava o adversário a crer que fosse uma real concessão), para então chegar ao destino proposto:

Tendo eu, portanto, descoberto e logicamente demonstrado que o globo do Sol se movimenta em torno de si mesmo, fazendo uma inteira evolução em um mês lunar, aproximadamente na exata direção em que se processam todas as outras evoluções celestes; e sendo, ainda mais, muito provável e razoável que o Sol como instrumento e regente máximo da natureza, quase coração do mundo, dê não somente, como claramente dá a luz, mas também o movimento dos planetas que giram em torno dele; e se, conforme a tese de Copérnico atribuiu principalmente à Terra a evolução diurna; quem não vê que para deter todo o sistema bastou deter o Sol, como exatamente indicam as palavras do texto sagrado, sem alterar o restante das recíprocas relações dos planetas, alterando somente o espaço e o tempo da iluminação diurna? (Galileu, 1988, p. 24).

Vê-se aí qual era a real dimensão e a força da religião naquela época (e que Galileu quisera contornar, mesmo sem sucesso): era mais fácil deter o Sol do que reinterpretar as Escrituras ou não interpretá-las literalmente. Portanto, colocar o Sol em seu devido lugar foi a maior incumbência que se propôs esse movimento do racionalismo e do heliocentrismo. De qualquer forma, eram já os passos fundamentais de um presunçoso racionalismo que não faria nenhuma concessão.

Descartes e o racionalismo ou cartesianismo

O que é cartesianismo? É a típica maneira de “pensar racionalmente” (livre da metafísica, do a priori religioso) e teve início com René Descartes (1596-1650) — contemporâneo de Galileu Galilei (1564-1642), de Francis Bacon (1588-1679) e de Hobbes (1588-1679). A ideia mais simples que constitui o raciocínio lógico (aplicado à ciência) talvez se expresse pela chamada “dúvida metódica”:

Seu propósito central consistia em nada reconhecer como verdadeiro sem que, antes, tivesse passado previamente pela sua razão, pelo crivo de um procedimento metódico, baseado na dúvida [...] Nenhuma ideia merece o qualificativo de verdadeira, se não for objeto de um questionamento radical que permita chegar a princípios, proposições primeiras, que sejam, de fato, indubitáveis (Rosenfield, 2005, p. 07).

Obviamente que se tratava de uma tentativa de fugir dos preconceitos e dos apostolados não científicos, das ideologias até então dominantes. Por isso, Descartes foi o precursor do racionalismo[iv]:

E como se tratava de um “discurso do método”, a sua preocupação central residia no como conhecemos no como podemos ter acesso a ideias verdadeiras, que fossem imunes ao erro, quando perseguidas segundo um procedimento metódico, sistemático [...] Descartes propugnava por um pensamento jovem, aberto à crítica e aos questionamentos, capaz de exercer uma dívida cética e de resistir à mesma dúvida graças a uma razão aberta ao questionamento de seus próprios princípios [...] Moderno, ele defendia a ideia de que a razão deveria permear todos os domínios da vida humana, numa atividade libertadora, pois voltada contra as mais diversas formas de dogmatismo (Rosenfield, 2005, pp. 11-12 – grifos nossos).

Era um “método virtuoso” que deveria dirigir as paixões, como “conceitos atuantes que pudéssemos estimar como morais”: “Estando a alma indissociavelmente unida ao corpo, não sendo ela como um ‘piloto alojado, em seu navio’, coloca-se a questão de como deve agir o homem virtuoso respondendo às paixões de seu corpo” (Rosenfield, 2005, p. 15). Como um racionalista, diferenciado de um Aristóteles e de um Cícero, Descartes apostava na razão e no bom senso — nossa “igualdade natural está pautada nesta racionalidade inata a todo ser humano”. Pensava o bom senso a partir de um “agir racional” [v], guiado pela razão e não refém das paixões:

Descartes considerava o bom senso ou a razão a coisa do mundo a ser melhor compartilhada, de tal maneira que a capacidade de discriminar o verdadeiro do falso torna todos os homens, independentemente de sexo, cor ou religião, iguais. A razão é formalmente igual em todos, o que os distingue é a sua aplicação, pois essa deriva dos costumes, da religião, dos conhecimentos adquiridos, daquilo que ganhou o estatuto de verdade, embora não o seja. A razão iguala, as opiniões diferenciam os homens[vi] [...] Eis porque Descartes procura estabelecer um método que possa ser seguido por todo e qualquer homem, independentemente de época, opinião, crença, costumes ou sexo [...] Um método voltado, então, para a busca da verdade e não da verossimilhança (Rosenfield, 2005, pp. 17-18).

O racionalismo, basicamente, estava organizado em três bases:

  1. Psicológica – a razão é equiparada ao pensar e, portanto, é uma atividade cognoscível superior à emoção e à mera vontade; contraposto ao emocionalismo e ao voluntarismo, identifica-se com o intelectualismo.

  2. Epistemológica ou Gnosiológica – o único órgão completamente desenvolvido ao pensar e, portanto, que efetue a atividade cognoscível, é o que dá provimento à razão; contrapõem-se ao empirismo e intuicionismo.

  3. Metafísica – a realidade é de caráter racional (racionalismo metafísico); contrapõem-se ao realismo empírico e, com muita freqüência, ao irracionalismo.

Essas três correntes básicas do racionalismo subsistiram praticamente durante toda a Idade Média, mesmo que modificadas pelas diferentes abordagens dos problemas. Por exemplo, ser racionalista não significou forçosamente toda a realidade e, mais particularmente, se fosse transparente à razão humana(?). Neste caso, podia-se admitir o racionalismo como suscetível ou não de integrar-se ao sistema das verdades da fé. Ao mesmo tempo, o racionalismo integrou-se à Teoria do Conhecimento, principalmente quando se contrapunha ao empirismo. E sob esta marca ou visão de mundo predominante, é que Descartes construiu as premissas de seu método, sob quatro regras demarcadas e fixas:

  1. A primeira regra estipula não aceitar nada como verdadeiro sem antes ter passado pelo crivo da razão

  2. Segundo, tudo o que aparece como complexo deve ser dividido em tantas partes simples quanto possíveis, pois a razão, ao focar um problema perfeitamente delimitado, tem mais condições de resolvê-lo do que se encarar algo composto de várias maneiras

  3. Terceiro, uma vez feito esse processo de simplificação, ele deve seguir um ordenamento, de modo que a remontagem para o composto ou complexo possa ser feita sem desvios, que prejudicariam a verdade almejada

  4. Quarto, como esse procedimento pode ser retomado e repetido por qualquer um, ele deve dar lugar a tantas revisões quanto necessárias, de modo que as contribuições e objeções de todos possam ser levadas em consideração, pois ela é a condição mesma de estabelecimento da verdade (Rosenfield, 2005, pp. 21-22).

Aquele que não pensa profundamente, com dúvidas constantes e amparadas, metodicamente, não vive a experiência da totalidade humana. Em síntese: a dúvida estimula o raciocínio e assim se elabora a razão, para se revelar como bom senso: um agir pensado, metodicamente calculado[vii] (“bom senso não é um agir com fé”, mas sim com a razão) é o que conduz à liberdade. Portanto, o desenvolvimento da razão deveria tornar a vida social melhor, e a ciência ajudaria nesse processo de hominização.

Empirismo

A expressão empirismo deriva do grego e traduz a experiência proporcionada pelos órgãos dos sentidos ou a vivência decorrente dos sentimentos, afeições, emoções acumuladas em sua memória. Por isso, também é considerado como uma teoria de caráter epistemológico, pois é relativo à natureza do conhecimento. Há uma tendência a proporcionar explicações genéticas do conhecimento, além do uso recorrente de termos como sensação, impressão, ideia. Há inúmeras linhas de interpretação, mas o precursor teria sido Bacon, com a ideia de que o experimentalismo científico deveria trazer benefícios à vida prática. Neste afã, estudou metalurgia, química, geologia e, acima de tudo, desenvolveu grande entusiasmo pela técnica (veja-se Novum Organum). Formou-se em direito e também foi literato (veja-se Nova Atlântida). Buscava o saber como um todo coerente, mas o filósofo natural deveria ser como uma abelha: um ser ativo, fecundo e à procura de resultados práticos. Afirmava em todas as obras que saber é poder. O real interesse do saber está em conquistar a natureza: o saber não tem valor em si mesmo (ensimesmado, estocado como memorização, retórica). Seu utilitarismo reconhecia o saber em sua totalidade e não apenas em aplicações imediatas, desejando que servisse à humanidade:

XXIX. Nas ciências que se fundam nas opiniões e nas convenções é bom o uso das antecipações e da dialética, já que se trata de submeter o sentimento e não as coisas [...]

XXXVI. Resta-nos um único e simples método para alcançar os nossos intentos: levar os homens aos próprios fatos particulares e às suas séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das coisas [...] A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos [...]

XLI. Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. É falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas [...]

XLII. Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos [...]

XCV. Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere [...] Por isso muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a racional [...]

XCIX. De fato, o artesão, despreocupado totalmente da busca da verdade, só está atento e apenas estende as mãos para o que diretamente serve a obra particular [...]

CIV. Muito se poderá esperar das ciências quando, seguindo a verdadeira escala, por graus contínuos, sem interrupção, ou falhas, se souber caminhar dos fatos particulares aos axiomas menores, destes aos médios, os quais se elevam acima dos outros, e finalmente aos mais gerais [...]

CV. Mas a indução que será útil para a descoberta e demonstração das ciências e das artes deve analisar a natureza, procedendo às devidas rejeições e exclusões, e depois, então, de posse dos casos negativos necessários, concluir a respeito dos casos positivos [...] Ainda nos pode ser indagado, mais como dúvida que como objeção, se intentamos, com nosso método, aperfeiçoar apenas a filosofia natural ou também as demais ciências: a lógica, a ética e a política. Ora, o que dissemos deve ser tomado como se estendendo a todas as ciências [...]

CXXIX. Vale também recordar a força, a virtude e as consequências das coisas descobertas [...] Referimo-nos à arte da imprensa, à pólvora e à agulha de marear. Efetivamente essas três descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em todo o mundo: a primeira nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na navegação

(Bacon, 2005, pp. 38-97).

Bacon não poderia ter concluído seu pensamento de um modo mais claro, quando pensamos que foi um dos mais dignitários homens do Renascimento – aliando arte, política, técnica e ciência. Kant reagiu a esta posição, porque embora todo conhecimento comece com a experiência, nem todo conhecimento resultante procede dessa mesma experiência.

Realismo

Em seguida, o realismo também se avolumaria como método e rigor científico, à medida que a razão e a verdade não poderiam estar, é claro, a não ser na própria realidade. Agora, a questão estava em saber como escarafunchar esta realidade a fim de que as aparências se discrepassem em virtude das ranhuras elucidativas. Contudo, em resumo, por realismo, temos que:

1) “Realismo” é o nome da atitude que se atém aos fatos “tal como são” sem pretender sobrepor-lhes interpretações que os falseiam ou sem aspirar a violentá-los por meio dos próprios desejos. No primeiro caso o realismo equivale a uma forma de positivismo [...] já que os fatos de que se fala aqui são concebidos como “fatos positivos” [...] No segundo caso temos uma atitude prática [...] O chamado “realismo político” (Realpolitik) pertence a esse realismo prático.

2) “Realismo” designa uma das posições adotadas na questão dos universais [...] a que sustenta que os universais existem realiter ou que universalia sunt realia.

3) “Realismo” é o nome que se dá a uma posição adotada na teoria do conhecimento ou na metafísica. Em ambos os casos, o realismo não se opõe ao nominalismo, mas ao idealismo [...] O realismo ingênuo supõe que o conhecimento é uma reprodução exata (uma “cópia fotográfica”) da realidade. O realismo científico, empírico ou crítico adverte que não se pode simplesmente equiparar o percebido com o verdadeiramente conhecido, e que é preciso submeter o dado a exame e ver (para depois levá-lo em conta quando forem formulados juízos definitivos) o que há no conhecer que não é mera reprodução

(Mora, 2001, pp. 2471-2473).

Como diria Giambattista Vico (1989), o restaurador do racionalismo na modernidade clássica (1668-1744), da rudeza nasce da ignorância, pois quem não sabe sempre duvida, citando em latim a lei das XII Tábuas: Si quis nexum faciet mancipiumque, uti lingua nuncupassit, ita ius esto.

O Iluminismo trouxe a liberdade?

A invenção da imprensa é o maior acontecimento da história.

É a revolução mãe...

É o pensamento humano que larga uma forma e veste outra...

É a completa e definitiva mudança de pele dessa serpente diabólica,

Que, desde Adão, representa a inteligência.

Victor Hugo, Nossa Senhora de Paris, 1831.

O Iluminismo foi um movimento filosófico e social nascido na segunda metade do século XVIII; esteve marcado pela crença profunda na capacidade da ciência apontar soluções para os problemas da sociedade e da natureza; para Kant, o Iluminismo é a saída do estado de não emancipação (Supre aude – “ouse saber”). Mas, também se acreditava na edificação de uma sociedade mais livre, com igualdade de oportunidades. Os iluministas eram contumazes escritores de cartas e sua Enciclopédia foi, certamente, a primeira Internet, o primeiro Google e a primeira Wikipédia. A razão do Século das Luzes teve em Voltaire seu grande representante e inspirador, e alimentava a esperança de que o conhecimento traria esclarecimento para a libertação: autonomia. Os humanistas do Renascimento tinham como bordão que “aquele que aprendeu a ler, jamais estará sozinho”. Portanto, alimentavam uma proposta de ética e de solidariedade. O Século das Luzes foi uma época em que se sabia perfeitamente que o “saber é poder”, mas também se queria que fosse um saber a serviço do “poder social” e não unicamente como alimento do Estado. Trata-se de uma época em que se queria a razão a serviço do homem (como pressuposto da autonomia) e não do Estado (meramente instrumental).

No Setecentos europeu, época conhecida como a das Luzes, a razão esclarecida vinculou-se à elaboração da Enciclopédia, ao cultivo do pensamento autônomo através do livro. Livro e biblioteca dizem respeito à criação de um espaço comum para a apreensão e preservação da memória escrita, das aventuras do pensamento e de suas experiências. Seu arquétipo: a Biblioteca de Alexandria (séc. III a.C.) cuja finalidade era menos a difusão filantrópica e educativa do saber na sociedade e mais reunir, como um tesouro, todos os escritos do mundo conhecido, no coração mesmo do palácio do rei, palácio (e biblioteca) ocupando um bairro inteiro. Rolos de papirus ocupavam as “estantes”, acessíveis a uma elite de doutos e letrados que leem, conversam, trabalham e, eventualmente, ensinam nas galerias e salas adjacentes (Matos, 2006, p.07).

Esta é a razão que perdemos ou que, talvez, sequer tenha vingado. Por ironia, o Iluminismo viria a descobrir que a guerra é obra direta da Razão de Estado. A perspectiva do “cálculo de poder” (do mundo desencantado) e que tão bem serve à Razão de Estado, portanto, estava bem ali adiante. Todavia, ainda era possível pensar maneiras de “dominar o conhecimento”, porque esta pressuposição desembocaria na autonomia (para a liberdade, é preciso estar predisposto). De todo modo, para os iluministas do século XVIII, “o que pode ser explicado é maleável e pode ser dominado”. De lá para cá, a Paideia nos traria um sentido moderno de “educação para a República” e, portanto, algo bem distinto de uma “educação moral e cívica” patrocinada pelo Estado (ao estilo de “tradição, família, propriedade”). A educação é necessária à formação do conceito de República e à intersubjetividade que isto possa congregar. A Paideia adquiria assim um fator agregador, de produção de laços sociais e de formação de uma solidariedade realmente mais intensa. Isto se passava em Alexandria, mas poderia ser ajustado, atualizado, para os dias atuais — inclusive ou especialmente com o aporte fornecido pela rede telemática de comunicações. A Paideia era esta busca de sentidos na vida cultural:

A ausência de uma memória local encontrava na Biblioteca uma reparação simbólica, atraiu todos os eruditos e pensadores do mundo antigo, dando a conhecer melhor sua função principal: a Paideia, a cultura como elemento federativo e constituidor da identidade helênica, substituindo antigas figuras da solidariedade, antes ligadas ao civismo, à família e ao território. O século das Luzes compartilhou essa utopia — a do livro, da leitura e da escrita, Paideia capaz de tornar os homens melhores (Matos, 2006, p. 24).

Daí o sentido de que os clássicos da humanidade são os gênios que tornaram a vida social melhor:

Neste sentido, Burckhardt escreveu sobre os “grandes homens” e os bens culturais: grandes são Platão, Píndaro, Sófocles, Sólon, Galileu, Michelangelo, Rafael, mas não os grandes navegadores, porque a América teria sido descoberta mesmo se Colombo tivesse morrido recém-nascido. Mas a pintura “A Transfiguração”, de Rafael10, não teria sido realizada se ele não a tivesse feito. Grandes são aqueles sem os quais o mundo seria incompleto. Humanismo, pois: na sociedade e as boas leituras que conduzem à afabilidade, à amizade, à socialidade (Matos, 2006, p. 28).

O Iluminismo pode ser discutido como uma espécie de fase sucessiva do Estado Moderno, como parte do seu aprimoramento tecnológico e político, isto é, como um dos muitos elementos que conformam a modernidade, a grande indústria. Portanto, é uma retomada de Maquiavel, mas sob a perspectiva de que há uma tecnologia política, aplicada estritamente à manutenção e fortificação do poder que melhor serve ao capitalismo. Uma retomada da virtus econômica que se concluiu com a virtus iluminista. Também poderia ser visto como: da Razão de Estado ao Iluminismo. Mas, além desse caminho, deve nos permitir outra proposta: a de que o sitiado possa recorrer às suas ideias básicas de liberdade, autonomia e a elas se agarrarem para sair do fosso do “isolamento”. Também poder-se-ia dizer que o sitiado é capaz de retomar a ideia, as práticas humanistas da virtus (anterior a Maquiavel) ou até mesmo a Paideia dos gregos.

Ao tempo de Maquiavel, por exemplo, ele próprio tinha a sua disposição a herança desse humanismo que pregava a imitação dos melhores e o ensino da retórica (o caminho da verdade) combinado com a filosofia clássica, a pura verdade, a virtus. Então, é claro que o sujeito dotado de algum talento tinha tudo ou o mundo a sua frente. No momento atual, no entanto, a sociedade de consumo e de controle nos incita a ter e não a ser, ou seja, nos distanciam o quanto podem desse ideal clássico do ser belo, justo e bom. Por isso, tem razão quem escolhe a história como companheira. O Iluminismo determinou ou teria determinado tanto a baixa modernidade quanto a alta modernidade (ou pós-modernidade11):

O pensamento iluminista, e a cultura ocidental em geral, emergiram de um contexto religioso que enfatizava a teologia e a obtenção da graça de Deus. A divina providência foi por muito tempo uma ideia diretiva do pensamento cristão. Sem estas orientações precedentes, o Iluminismo, em primeiro lugar, dificilmente teria sido possível. Não é de forma alguma surpreendente que a defesa da razão desagrilhoada apenas remodele as ideias do provincial, ao invés de removê-las. Um tipo de certeza (lei divina) foi substituído por outro (a certeza de nossos sentidos, da observação empírica), e a providência divina foi substituída pelo progresso providencial [...] O crescimento do poder europeu forneceu o suporte material para a suposição de que a nova perspectiva sobre o mundo era fundamentada sobre uma base sólida que tanto proporcionava segurança como oferecia emancipação do dogma da tradição [...] Se a esfera da razão está inteiramente desagrilhoada, nenhum conhecimento pode se basear sobre um fundamento inquestionado, porque mesmo as noções mais firmemente apoiadas só podem ser vistas como válidas “em princípio” ou “até ulterior consideração” (Giddens, 1991, p. 54). Historicamente, como pano de fundo, há a inicial Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lastro da Revolução Francesa (26/08/1789). Ao que se seguiu, imediatamente, a declaração dos direitos da mulher cidadã, de Olympe de Gouges, em setembro de 1791, e que já advertia as francesas no preâmbulo:

As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, reivindicam constituir-se em Assembleia Nacional. Considerando que a ignorância, o esquecimento, ou o desprezo da mulher são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governantes, resolverem expor em uma Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis, e sagrados da mulher, a fim de que esta Declaração, constantemente, apresente todos os membros do corpo social seu chamamento, sem cessar, sobre seus direitos e seus deveres, a fim de que os atos do poder das mulheres e aqueles do poder dos homens, podendo ser a cada instante comparados com a finalidade de toda instituição política, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações das cidadãs, fundadas doravante sobre princípios simples e incontestáveis, estejam voltados à manutenção da Constituição, dos bons costumes e à felicidade de todos (grifos nossos).

E confirmando-se na conclusão:

Mulher, desperta-te; a força da razão se faz escutar em todo o universo; reconhece teus direitos. O poderoso império da natureza não está mais envolto de preconceitos, de fanatismo, de superstição e de mentiras. A bandeira da verdade dissipou todas as nuvens da tolice e da usurpação. O homem escravo multiplicou suas forças e teve necessidade de recorrer às tuas, para romper os seus ferros. Tornando-se livre, tornou-se injusto em relação a sua companheira. Oh mulheres! (grifos nossos).

Assim, podemos dizer que o Iluminismo é uma filosofia complexa (libertária, “ilustrada”, revolucionária) e contraditória, marcada pelos séculos XVII e XVIII. Exemplos desse caráter contraditório seriam: Fourier: socialista; Locke: liberal; Condorcet: positivista; Rousseau: radical; Paine: polemista; Tocqueville: conservador; Moliére: dedicou-se à contradição.

Observações Sobre a Tortura é um livro representativo do iluminismo do século XVIII, e relata a aplicação da tortura quando se buscavam os responsáveis para a peste que assolou a Milão de 1630. É uma narração intensa, perturbadora, angustiante, lutando contra a barbárie praticada pela tortura, pelo uso da força bruta, pelo obscurantismo, pela mediocridade, pela ignomínia, pela estupidez e pela crendice. De outro modo, é uma aposta na razão, no conhecimento, na inteligência, na arte do desvelamento. Verri cita Cícero (no discurso Pro Silla): “A tortura é dominada pela dor, governada pelo temperamento de cada um, tanto de espírito quanto de membros, ordenada pelo juiz, dobrada pela dor, corrompida pela esperança, debilitada pelo temor, de modo que entre tantas angústias não resta nenhum lugar para a verdade” (p. 113). O maior problema, no entanto, é que o obscurantista não é capaz de entender o que diz Cícero (em sua síntese da razão), quanto mais à assertiva de que a dignidade é fruto dessa mesma razão12. Seu lema pessoal era: “Onde não há liberdade, aí está meu país”. Ainda dizia: “A Lei é o Rei13”.

Para efeito de maior aprofundamento, tomemos outros nomes importantes do período, como Locke e Rousseau. Um dos mais vibrantes é Voltaire (1694-1778): tinha um estilo crítico e irônico, escreveu profusamente, além de ser filósofo, poeta, dramaturgo e político. Mais pela escrita do que pela militância política, esteve preso várias vezes — um de seus clássicos é o livro Tratado sobre a tolerância. Em resumo, Voltaire:

  1. Considerava que seus livros eram armas e as palavras os projéteis usados contra as falsas ideias e as tolices humanas;

  2. A escrita14 era uma forma privilegiada de ação;

  3. Em suas cartas, assinava “esmagai infame!”.

Sem dúvida, é a descrição de uma modernidade altamente desenvolvida ou simplesmente modernidade tardia, como a designamos aqui. Na alta modernidade, também vemos de que forma a razão sempre foi instrumental e, no fundo, como sempre houve essa transição pós-moderna. Neste sentido de que a razão sempre foi instrumental, ainda podemos concluir que “a virtus é carpe diem”: pois que a razão recomenda que se aproveite o momento, as circunstâncias, a oportunidade, os dias. Com o surgimento da ciência moderna (passagem séc. XVI-XVII) foi possível à explicação racional e não mais mítica e teológica dos fenômenos do cotidiano. Ao invés das convenções dos dogmas, a dúvida metódica; ao invés da convicção teológica, o convencimento teleológico. Com Newton (1642-1727), o racionalismo científico passou a engendrar a base racional do iluminismo. A partir do cientista, não bastava mais apenas descrever os fenômenos, pois se exigia a explicação matemática de um fenômeno físico e depois a sua demonstração prática, experimental, a fim de se comprovar ou não o modelo matemático. Porém, antes mesmo dessa gigantesca contribuição do físico inglês Isaac Newton, precisamos enredar o pensamento racional que se formava: Galileu, Descartes e o Mecanismo.

A descoberta da prensa e depois a invenção da imprensa por Gutemberg (por volta de 1450) fortaleceu a afirmação do Estado-Laico, do mesmo modo como seria o marco precursor da base material do iluminismo e isto, é claro, proporcionou novos níveis de racionalidade. O suporte técnico (a prensa15) permitiria uma difusão de ideias, conhecimentos, teses, ideologias num nível realmente revolucionário. Sem os copistas, o conhecimento não poderia ser levado ao mundo e nem a revolução das ideias poderia ser deflagrada, daí o impacto sensacional que o suporte técnico (prensa) teria na designação futura da divulgação do saber e dos ideais modernos. Séculos depois, a Revolução Francesa investiria intensamente neste processo/fluxo, pois, ao criar a escola pública, divulgaria amplamente seu referencial ideológico e amalgamaria popularmente o saber que era portador desta modernidade que se iniciara em 1450.

No sentido apontado, portanto, uma das grandes chaves da modernidade — quanto à sua produção e interpretação — será o aporte/suporte tecnológico. Com isto, veio à necessidade de se fixar, para melhor compreender, esta noção de modernidade tecnológica. Assim, divulgar a racionalidade era como iluminar o mundo de um novo sentido, equivalia a revelar novos conteúdos. E este foi o papel desempenhado por esta tecnologia, naquele momento, pois, do mesmo modo, divulgar a racionalidade foi fundamental porque sem a precisão do cálculo (previsibilidade que gera estabilidade) não haveria controle rigoroso sobre o possível valor atribuído às coisas (criações, invenções) e nem às relações sociais e ideologias. As novas ideias a serem “trocadas” nesta fase eram os ideais propriamente modernos, clássicos — o que também aprofundou as próprias bases racionais deste processo de formação/expansão do “moderno”.

[A transfiguração de Jesus, por Rafael]

Em suma, este é o poder dos clássicos, do humanismo, da educação para a República, da Paideia (como educação desinteressada – pelo amor ao conhecimento -, não instrumentalizada pela economia ou pelo poder). Neste sentido, no Brasil, o Estado de Direito é revolucionário, uma vez que a ideia de igualdade de direitos fundamentais é algo a ser inventada, bem como o poder popular, inerente ao Estado de Direito Republicano, é ainda um fato político inócuo16. Fatos republicanos que, notoriamente, estão em baixa no mercado e na política e bem distantes do interesse popular, no mundo real/virtual. Fatos e valores que foram subjugados pelo chamado desencantamento do mundo. De modo claro, a intolerância realçada à condição instrumental (como recurso de força e de poder), distanciava-se em razão e espírito do tempo em que o certo estava no “espetáculo de se ver a verdade”, a si mesmo, à intersubjetividade. Mas, por extrema ironia, a outra face do Iluminismo foi à intolerância: com a constitucionalização do Estado de Sítio, aprisionamento da política, com o próprio fim da modernidade política. Então, pode-se dizer que o Iluminismo trouxe a intolerância e deu impulso ao próprio “direito de exclusão”, como se vê na exceção iniciada pela revolução da liberdade. Mas, como nos diz Agamben, este projeto de poder iniciado com o Iluminismo da Revolução Francesa, acabou por se revelar por inteiro na primeira Constituição considerada social (socialista), democrática, popular — em uma palavra “iluminista”: a Constituição de Weimar. Junto com a Constituição Mexicana, de 1917 e a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, na Rússia revolucionária (socialista), de 1918, passou a constituir o eixo jurídico alternativo. Porém, também estava em Weimar o germe da decomposição democrática alemã (claríssimo em seu art. 48):

Se, no Reich alemão, a segurança e a ordem pública estiverem seriamente [erheblich] conturbadas ou ameaçadas, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, eventualmente com a ajuda das forças armadas. Para esse fim, ele pode suspender total ou parcialmente os direitos fundamentais [Grundrechte], estabelecidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, 153 (Agamben, 2004, p. 28).

Se não há dúvida da origem absolutista da Razão de Estado, igualmente não haverá dúvida de sua metamorfose iluminista e democrática na figura do Estado de Exceção Permanente. Bobbio também acentua que a retomada das ideologias da Razão de Estado, a partir do século XIX, está associada ao fim das concepções idealizadoras do Estado, bem como da associação entre Razão de Estado e arcana imperii.

De qualquer forma, os temas arrolados sob este item poderiam estar dispostos de outra forma, até mesmo sob o codinome de teoria social clássica — nada seria estranho à discussão. Porém, quando se pensa a própria teoria social como fruto da necessidade do industrialismo, especialmente a partir do século XIX, aí, então, o melhor caminho explicativo é este mesmo. A análise do Estado Cientificista ainda nos permite entender o papel do poder público como articulador da relação saber/poder — e este é, certamente, um dos temas centrais da modernidade, bem como salienta claramente o jugo da razão pelo poder. O tema será retomado com maior profundidade no capítulo em que discutiremos Durkheim.

Sobre o homem mau em Hobbes

Já em Hobbes, destaca-se a preocupação e a busca pela RETA RAZÃO: O contrato civil dá origem ao Estado de direito como uma moral civilizadora, reguladora das necessidades de sobrevivência; sublimando-as, subsumindo-as em um tipo de Estado (Angoulvent, 1996, p. 49). Para Hobbes, somos levados por um princípio passional: o medo.

A matematização da política seguia, sob o Renascimento, o mesmo influxo da geometrização das ciências: a ciência matemática da mecânica (terrestre). A ciência era dividida em: estática, hidrostática e cinética. Porém, aliavam-se guerra e status político da própria ciência ao curso global das mudanças, o que, talvez, pudéssemos chamar com mais propriedade de mudanças de paradigmas: desenvolvimento tecnológico deve ser considerado em paralelo e entrecruzando-se, de forma radical ou revolucionária, em determinada época, com as alterações de maior relevância e significado, do papel social das ciências e das forças motrizes do telos, do comus e do ethos social. Com Hobbes e sua tentativa de fixar com precisão não só o poder do Leviatã, mas também do conatus não seria diferente, entendo-se conatus (ou endeavor) como uma espécie de conexão ampliada entre sentidos, sentimentos, significados que envolvem as inúmeras teias entre mente e mundo.

Assim, como se diz fortuitamente, se o homem é mau, por natureza, em Hobbes, como lobo de outro homem, sem restrições, então, para Hobbes a razão humana está submetida à própria maldade, assim como todas as demais características humanas. Contudo, lembrando-se que sempre foi temente a Deus (até por conveniência), crente nos direitos naturais, jusnaturalismo, não se pode concluir como na premissa de cima, porque seria como que admitir que o direito derivasse da consciência mal-sã. Sobretudo se pensarmos que o lobo do homem se revela pelo "estado de necessidade", então, o contrato social, motivado/motivador do conatus, aí o homem seria capaz de produzir uma RETA RAZÃO - razão esta que levaria de encontro ao juízo superior do soberano e, ao mesmo tempo, que o distanciaria da maldade que "lhe" seria natural e esperada em toda condição ou estado de necessidade.

No pensamento renascentista, seria como se a política (racionalismo-prático) suplantasse as emoções. Afinal, a política é organização da Polis. O ideal estaria em assegurar da melhor forma possível o poder, do Leviatã, isto é, em organizar e centralizar o poder, fundar o Estado-Nação e sua soberania subjacente à Razão de Estado (aliás, o tema mais candente entre os séculos XV e XVII). Mas, se era uma fase de ampliação de horizontes, igualmente deveria ser de aplicação de novas ou de outras formas de utilização das mesmas ciências, com outro olhar e perspectiva muito mais dirigida pelos fins. Se saber era poder, com os matemáticos em ação não haveria margem de erro (em política, não haveria margem para perdão, isto é, o erro que seria absolvido):

Por mais contrário que o movimento da Terra possa parecer à filosofia natural, Copérnico insistiu, ele deve ser verdadeiro porque a matemática o exige. Isso foi revolucionário [...] Os fatores que contribuíram para estimular essa tendência foram variados e complexos, mas incluem a recuperação de textos matemáticos da Grécia antiga por eruditos humanistas que forneceram novos meios para a formulação de exigências quanto à unidade da matemática, sua utilidade e sua certeza como meio de estabelecer a verdade [...] (Henry, 1998, p. 22).

Todavia, tudo isto só seria possível se houvesse munição tecnológica suficiente, engenho e razão direcionados ao mesmo fim, à conquista e conservação de mais poder. Tudo feito com o máximo de objetividade — tanto a matemática o exigia que “navegar é preciso”. Navegar é preciso, como necessidade de ampliação dos horizontes dos conquistadores, quanto à precisão de cálculo deveria se apoiar em determinado instrumental técnico: bússola e astrolábio, por exemplo. Nunca houve política sem tecnologia e, no Renascimento menos ainda:

Inovações nas operações militares, em particular a inventiva resposta ao cerco por canhões, o bastião resistente à artilharia e vários projetos de engenharia civil como a recuperação de terras, construção de canais ou mesmo o simples levantamento topográfico para propósitos fiscais, foram vistos como causas importantes não só do status mais elevado dos matemáticos nos primeiros tempos da Europa moderna, mas também do maior interesse da matemática [...] Mudanças na natureza e na estrutura das cortes reais numa Europa de Estados cada vez mais absolutistas também deram ao mathematicus oportunidades mais amplas de fazer sentir sua presença (Henry, 1998, p. 27).

Para se ver o Novo Mundo era preciso muita fé, sem dúvida, mas a fé com um pé na razão e na ciência e outro nos fins políticos. Decerto que este realismo não podia acertar como simples soma de dois mais dois, igual a quatro, porém, traçava aí as linhas gerais do realismo que habitaria toda a modernidade e a racionalidade técnica até meados do século XX. Um de seus grandes nomes, não só como cientista (matemático), mas sim como pensador político foi Pascal. Se a ação política não é em si matematizável, diante das próprias condições da realidade que permeia o realismo político, especialmente na relação entre objetivos e efeitos, ao menos pode ser melhor escalonada (não precisamente raciocinada) entre meios e fins. Nisto será, enquanto prática social, uma ação política fria, realista, calculista — quanto a ser isenta de piedade, uma vez que o erro em política é sempre derrota e a derrota equivale à morte política: vita mea, mors tua. Como nos diz A. Comte-Sponville (Pascal, 1994), o político-matemático era um pensador de rara luz, de tão crua, capaz de ver com radicalidade e certo revolucionarismo moderno, de notável lucidez e desiludido. Por vezes, desesperado quando se voltava à sociedade que o cercava, mas sem se esconder no niilismo ou no individualismo apolítico. Há uma virtù em Pascal e, talvez, seja a de ser profusamente realista e sem utopias, desilusões, mágoas ou rancores — o que, certamente, é raríssimo de se ver no cotidiano da vida real. Como nos diz, pela razão dos efeitos: “A concupiscência e a força são as fontes de todas as nossas ações: a concupiscência produz as voluntárias: a força, as involuntárias”. (Pascal, 1994, p. 08). A concupiscência na vida diária, sinônimo de sensualidade, lascívia, em política é simplesmente sedução, oratória, impressionismo e/ou marketing. Também podemos dizer que não lhe impressionava o maniqueísmo ou messianismo puritano, como idealista sem realidade, pois não há mal sem o bem e vice-versa. Se lermos somente o primeiro trecho da citação, sem o cuidado necessário, parece retomar o lendário do homem, lobo do homem:

Todos os homens se odeiam naturalmente uns aos outros. Faz-se o possível para utilizar a concupiscência em benefício do bem público; mas isso é fingimento, e uma falsa imagem da caridade; pois, no fundo, é apenas ódio [...] fundamentaram na concupiscência e dela extraíram regras admiráveis de governo, de moral e de justiça; mas esse fundo infame do homem, esse fingmentum malum, está apenas coberto: ele não foi tirado [...] Injustiça. — Não encontraram outro meio de satisfazer a concupiscência sem prejudicar os outros (Pascal, 1994, p. 10-11).

Ódio ou luta de classes? O silogismo se apóia em metáforas! Deste realismo político, além da prática da navegação precisa, exata, ainda temos como derivado o materialismo e o Positivismo (como perspectiva política, religião ou método), mas especialmente a partir dos séculos XIX e XX. Este Homem Novo, marcado pelo individualismo, no período propriamente do Renascimento, não permitiu ver o Outro, mesmo sob constantes alertas morais, porque o EU era muito mais importante ao capital e sua expansão do que o apego ao comus e ao ethos:

O eu é odioso [...] Em suma, o eu tem duas qualidades: ele é injusto em si, ao fazer-se o centro de tudo; ele é incômodo aos outros, ao querer sujeitá-los: pois cada eu é o inimigo e gostaria de ser o tirano de todos os outros [..] Cada um é para si, pois, ao morrer, tudo está morto para si. E daí cada um acreditar ser tudo para todos [...] Um homem que se põe à janela para ver os que passam, se eu estiver passando, posso dizer que ele se pôs aí para me ver? Não, pois não em pensa em mim em particular. E quem ama alguém por causa de sua beleza, ama-a de fato? Não, pois a varíola que matará a beleza sem matar a pessoa fará com que não mais a ame (Pascal, 1994, pp. 12-12).

Assim, o filósofo-matemático nos faz lembrar novamente de Hobbes e seu Homo homini lupus, porém não se deve confundir o individualismo do Renascimento nem com o hedonismo de um Epicuro, por exemplo, da Grécia clássica, nem com o niilismo ou cinismo abjeto atual. Isto fica mais claro no próprio Pascal quando se refere à conquista e à glória:

A maior baixeza do homem é a busca da glória, mas este é também o maior sinal de sua excelência; pois, não importa as posses que tenha na terra, a saúde e a comodidade essencial que possua, ele não estará satisfeito se não for estimado pelos homens. Julga tão grande a razão do homem que, mesmo tendo alguma vantagem na terra, não estará contente se não estiver vantajosamente situado também na razão do homem (Pascal, 1994, p. 18).

Contudo, esta lógica seria demasiadamente refeita a partir do que Marx (1977) chamou de a acumulação primitiva do capital, sobretudo, entre as duas grandes revoluções industriais.

Kant e o Iluminismo

Resposta à pergunta: Que é esclarecimento [Aufklärung]? (Kant).

Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung].

Colado ao movimento de ideal libertário do Iluminismo, que tinha o objetivo de libertar os indivíduos de qualquer tipo de servidão moral, religiosa ou política, o nome que ressoa é o filósofo Imanuel Kant. Pode-se dizer que há um tipo de “iluminismo antigo”, visto no “Discurso de Péricles” de Tucídides, na Grécia antiga. Mas, seria apenas a forma de ser da filosofia, a exemplo de Epicuro: “O filósofo do jardim”. Já o chamado Iluminismo moderno pode ser simplesmente conhecido como Século das Luzes e seriam seus principais representantes: Locke, Diderot, D’Alembert, Moliére e Voltaire. Mas, como herdeiro do Renascimento17, trouxe parte de sua história, ciência e métodos, como o Empirismo. Como se sabe, o Empirismo é um componente das pretensões cognoscitivas desse período, além do cartesianismo. Porém, com Kant, há uma perspectiva de limitação do alcance da razão: a chamada doutrina da “coisa em si”. Como lugar-comum do Iluminismo, essa doutrina implica que “os poderes cognoscitivos”, sensíveis e racionais, vão até a extensão do próprio fenômeno analisado, não ultrapassando seus limites. Assim, também pode-se dizer que o Iluminismo é caracterizado pela crítica racional e pelo reconhecimento dos limites (ou capacidades) dos poderes cognoscitivos. Esta atitude empirista garantiu à ciência que o conhecimento em geral estivesse aberto à crítica da razão. A principal colaboração do período anterior consistiu em admitir que não há verdade absoluta e que a verdade pode/deve ser checada, colocada à prova e, eventualmente, corrigida, modificada ou até abandonada. Neste caso, abandonada por uma teoria mais razoável, verossímil ou adaptada ao tempo: o Evolucionismo suplantaria as teses da “geração espontânea”. Ainda poderiam ocorrer mudanças de paradigma, como no caso da 1ª Revolução Industrial (1750), seguida da Revolução Americana (1776) e da Revolução Francesa (1789). Um contraponto à tendência da matematização ocorrida no Renascimento, entretanto, indica que, em geral, pensava-se que as Leis Positivas são as estabelecidas por instituições políticas e que se opõem as Leis Naturais: ditadas pela natureza. Assim, o Iluminismo não se limitava ao uso crítico da razão, mas, sobretudo, punha-se o compromisso de que o conhecimento estivesse a serviço do bem individual e social. Por isso, o Iluminismo foi chamado de Revolução das Luzes ou grande revolução cultural do século XVIII. Pode-se ressaltar que desde o século XVII há um crescente apelo em torno da tolerância religiosa e que, paulatinamente, foi-se transformando em liberdade de pensamento e de expressão — agora como base ou condição da própria “liberdade humana” (Locke, 1987). Também conhecido por Ilustração, o “pensamento revolucionário” tinha por base conhecer a verdade e a experiência da liberdade. A raiz de sua filosofia afirmava que a razão é a luz que afasta a ignorância e a servidão. Portanto, há três aspectos do pensamento revolucionário a ressaltar:

Para Kant (1724-1804), talvez o nome mais expressivo, Ilustração é à saída da menoridade (heteronomia) para a autonomia. Kant não acreditava que vivia uma época propriamente ilustrada, mas que era sim favorável ao crescimento educacional, intelectual e moral. Porém, sempre foi mais fácil pedir “aconselhamento” aos profissionais e especialistas, como: médico, advogado e padres. “Não seria preciso se preocupar com nada”. Também “deve parecer difícil pensar e agir por si próprio”. Então, diante desse dilema, quais eram os inimigos declarados da razão?

  1. Força da Tradição: “aquilo que é aceito por muito tempo, por muita gente”. Todavia, isto não implica na verdade.

  2. Autoridade da Religião: “as verdades religiosas são dogmas e seu questionamento é pecado”.

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Para uma teoria do Estado pós-moderno: a razão política no entendimento do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3524, 23 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23782. Acesso em: 14 nov. 2024.

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