Há muito se submeteu à apreciação do Judiciário questão relativa à incidência do ICMS nas operações de transferência entre estabelecimentos de uma mesma empresa. Na oportunidade, a jurisprudência se firmou pela não incidência do imposto, tendo em vista que o aspecto material da Regra Matriz de Incidência do ICM denota[1] a necessidade de uma operação de “mercancia”, que implique na transferência jurídica da mercadoria, o que não seria o caso da transferência. Neste espeque, o art. 155, II, da CF, ao dispor em “operações de circulação”, estar-se-ia referindo-se à operações de mercancia que implique na troca da titularidade do bem e não à quaisquer “circulações” físicas.
Em razão disso foi editada a Súmula 166 do STJ, verbis:
Súmula 166. Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal, cotejando a hipótese da transferência à materialidade imposta ao ICM pelo art. 155, II, da Constituição Federal, também ratificou a não incidência da exação nas transferências entre estabelecimentos, a teor do RE nº 267599 AgR-ED, relatado pela Ministra Ellen Grace[2].
Cabe um aparte, de plano, para esclarecer que não se busca aqui, avaliar a correção, ou não, do referido posicionamento. O que se destaca é a razão de decidir: ausência de materialidade do ICM nas transferências.
Com efeito, como entendeu-se que na transferência entre estabelecimentos não há “troca/mudança” da titularidade da mercadoria, não haveria de se falar em mercancia e, por conseguinte, na incidência da exação. Frise-se que não há distinção na jurisprudência que amparou a citada súmula e nas outras decisões prolatadas pelos diversos tribunais estaduais pátrios e mesmo pelo STF, acerca das transferências interestaduais e as que ocorrem dentro de um mesmo Estado.
Todavia, mesmo com esta antiga sedimentação jurisprudencial, consta na Lei Kandir a previsão de incidência do ICM nas transferências interestaduais, oportunidade, inclusive, em que regulamentou a “base de cálculo” do imposto na operação, que seria:
“Art. 13. A base de cálculo do imposto é: [...]
4º Na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, a base de cálculo do imposto é:I - o valor correspondente à entrada mais recente da mercadoria;II - o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento;III - tratando-se de mercadorias não industrializadas, o seu preço corrente no mercado atacadista do estabelecimento remetente.” (grifos nossos)
No mesmo sentido está a segunda parte do inciso I, do art. 12, da Lei Kandir, ao informar que “considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”.
Sem adentrar na análise do artigo, vale ressaltar que é praxe comercial o cômputo do ICM nas operações de transferência. Grande parte do empresariado opta pela apuração do imposto, lançando-o a débito no estabelecimento de origem e apurando o crédito no estabelecimento de destino, inclusive como forma de “distribuição de crédito”, ou mesmo para evitar desconfortos com os fiscos Estaduais, que não hesitam em exigir o imposto em quaisquer situações de transferências.
Em razão disso, diga-se, do fato de grande parte das empresas se subsumirem à norma de incidência do ICM nas transferências, surgiu uma discussão paralela à da não incidência, relativamente à base de cálculo do imposto em tais operações (de transferência).
Os contribuintes pretendiam se debitar no estabelecimento origem e, obviamente, se creditar no estabelecimento destino, pelo “valor da operação”, inclusive incluindo o valor do frete quando destacado na NF (como ocorre nas operações “CIF”).
Por seu turno, as Fazendas Estaduais, em regra, aplicam a literalidade da Lei Kandir e só permitem o creditamento nos termos do seu art. 13, §4º, II, respaldando-se, inclusive, no art. 111, CTN.
Este posicionamento tem por finalidade dirimir distorções/guerra fiscal, já que, com tais restrições, as empresas não poderiam “transferir” créditos de ICM ao seu bel prazer, nem tão pouco gerar distorções de arrecadação ao reduzir a base de cálculo na saída de um Estado em que a tributação seja maior, para tributar o valor real da operação apenas no Estado em que a tributação seja menos impactante.
Talvez por esquizofrenia jurisprudencial, esta matéria foi levada ao STJ, que num passado próximo sequer apreciava questões que fossem superadas pela força na súmula 166 (neste sentido confira-se o Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 1.068.651/SC).
Pois bem. Sem tomar pé dos posicionamentos antigos sobre a matéria, a discussão sobre a base de cálculo na transferência foi submetida e apreciada pela Segunda Turma (uma das duas turmas componentes da Primeira Seção, regimentalmente competente para julgar matéria de Direito Público), que decidiu pela aplicação daquilo que o legislador complementar positivou.
Neste momento a Segunda Turma não apenas excepcionou a sua própria jurisprudência, como decidiu a matéria contrariamente aos contribuintes[3]!
Ao julgar o referido Recurso Especial, o STJ acendeu uma enorme insegurança, especialmente porque, em sua fundamentação, deixa claro que as operações de transferência não são operações de mercancia e nem tampouco configuram a alteração da titularidade do bem.
Da íntegra da decisão, tem-se que a Turma entendeu que quando houver circulação jurídica da mercadoria, com mercancia e transferência de titularidade, aplica-se o art. 13, §4º, I, da LC 87/96 (regra geral do ICM). Todavia, quando houver a merca circulação física interestadual, nos moldes da transferência, há de aplicar o inciso II do citado art. 13.
Neste novo paradigma defende-se que o legislador complementar teria excepcionado a materialidade do ICM, para fazê-lo incidir, também, nas situações em que não há “operações relativas à circulação de mercadorias”, ex vi do art. 155, II, CF, como é o caso da transferência, situação em que a base de cálculo da exação será “o custo da mercadoria produzida”.
Assevere-se que a decisão em destaque entende pela não incidência do ICM nas transferências dentro de um mesmo Estado. A incidência se justificaria, apenas, nas transferências interestaduais, posto que apenas nesta situação é que o legislador complementar consignou uma regra de exceção.
Fato é que, ao se pronunciar acerca da base de cálculo do imposto, o STJ determinou sua incidência nas transferências interestaduais. Afinal, para chegar ao consequente da hipótese normativa, necessário se faz verificar o seu antecedente, em especial o aspecto material da hipótese, até mesmo em razão das funções inerentes à base de cálculo, em especial na validação da materialidade da exação.
Como o ICMS é apurado pela sistemática de crédito x débito, numa transferência dentro de um mesmo Estado, não haveria impacto financeiro para o Estado, já que, apesar de a apuração do ICMS considerar cada estabelecimento autonomamente, os créditos e os débitos seriam apurados em face de um mesmo Ente tributante.
Por outro lado, e aqui surge a discussão política/financeira que foi capitaneada pelo STJ em seu novo paradigma, quando a transferência for para um outro Estado da federação, haverá redução de receita do Estado produtor, já que a mercadoria será tributada integralmente no Estado de destino (que é onde será feita a venda), porém terá sido no Estado de produção (origem) que foi tomado o crédito decorrente da entrada dos insumos, reduzindo, por consequência, a sua arrecadação efetiva.
Neste novo cenário o desafio imposto (especialmente levando em conta o alto grau político das decisões atualmente prolatadas tanto pelo STJ quanto pelo STF), é avaliar se este novo paradigma será chancelado e tomado como novo norte para os contribuintes, ou se o fundamento que embalou as diversas decisões pelo afastamento do ICM nas transferências irá se perpetuar.
Notas
[1] Há aqueles que entendem que do texto constitucional é possível extrair diretamente os elementos da regra matriz de incidência tributária.
[2] DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ICMS. TRANSFERÊNCIA DE BENS ENTRE ESTABELECIMENTOS DE MESMO CONTRIBUINTE EM DIFERENTES ESTADOS DA FEDERAÇÃO. SIMPLES DESLOCAMENTEO FÍSICO. INEXISTÊNCIA DE FATO GERADOR. PRECEDENTES.
1. A não-incidência do imposto deriva da inexistência de operação ou negócio mercantil havendo, tão-somente, deslocamento de mercadoria de um estabelecimento para outro, ambos do mesmo dono, não traduzindo, desta forma, fato gerador capaz de desencadear a cobrança do imposto. Precedentes. 2. Embargos de declaração acolhidos somente para suprir a omissão sem modificação do julgado.(RE 267599 AgR-ED, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 06/04/2010, DJe-076 DIVULG 29-04-2010 PUBLIC 30-04-2010 EMENT VOL-02399-07 PP-01418 LEXSTF v. 32, n. 377, 2010, p. 166-169)
[3] PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ICMS. BASE DE CÁLCULO. ESTABELECIMENTOS. MESMO TITULAR. TRANSFERÊNCIA ENTRE FÁBRICA E CENTRO DE DISTRIBUIÇÃO. ARTIGO 13, § 4º, DA LC 87/96.1. Discute-se a base de cálculo do ICMS em operações efetuadas pela recorrente entre a Fábrica (SP), o Centro de Distribuição (SP) e a Filial situada no Rio Grande do Sul. Precisamente, a controvérsia refere-se à base de cálculo adotada na saída de produtos do Centro de Distribuição com destino ao Estado gaúcho, o que demanda a interpretação do artigo 13, § 4º, da LC 87/96.2. Em resumo, a recorrente fabrica mercadorias em São Paulo-SP e as transfere às filiais espalhadas pelo Brasil. Em virtude do grande volume, utiliza, algumas vezes, o Centro de Distribuição localizado em São Bernardo do Campo-SP, antes de proceder à remessa.3. Constatou o aresto que, na saída das mercadorias do Centro de Distribuição paulista, a recorrente registrava como valor das mercadorias um preço superior ao custo de produção, próximo ou maior do que o valor final do produto (nas alienações ocorridas entre a Filial gaúcha e o comércio varejista ou atacadista daquele Estado).4. A sociedade empresária recolheu aos cofres paulistas ICMS calculado com base no valor majorado, gerando crédito na entrada dos bens na Filial do RS, onde a alienação das mercadorias a terceiros acarretou débito de ICMS, que acabou compensado com os créditos anteriores pagos ao Estado de São Paulo. Em consequência, concluiu o acórdão recorrido: "... o Estado de origem acaba ficando com todo o imposto, e o Estado de destino apenas com o dever de admitir e compensar os créditos do contribuinte" (fl. 1.172v).5. A questão jurídica em debate, portanto, refere-se à base de cálculo do ICMS na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado do mesmo titular - artigo 13, § 4º, da LC 87/96.6. Na espécie, por diversas razões a base de cálculo do ICMS deve ser o custo da mercadoria produzida nos termos do artigo 13, § 4º, II, da LC 87/96 (e não a entrada mais recente).7. Em primeiro, a interpretação da norma deve ser restritiva, pois o citado parágrafo estabelece bases de cálculos específicas. Em segundo, os incisos estão conectados às atividades do sujeito passivo, devendo ser utilizado o inciso II para estabelecimento industrial. Em terceiro, a norma visa evitar o conflito federativo pela arrecadação do tributo, o que impede a interpretação que possibilita o sujeito passivo direcionar o valor do tributo ao Estado que melhor lhe convier.8. A apuração do valor da base de cálculo pode ser feita por arbitramento nos termos do artigo 148 do CTN quando for certa a ocorrência do fato imponível e a declaração do contribuinte não mereça fé, em relação ao valor ou preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos registrados. Nesse caso, a Fazenda Pública fica autorizada a proceder ao arbitramento mediante Processo administrativo-fiscal regular, assegurados o contraditório e a ampla defesa, exatamente o que ocorreu no caso, em que foi utilizado o próprio Livro de Inventário do Centro de Distribuição.9. Em termos de arbitramento, o que não se permite na seara do recurso especial é apurar a adequação do valor fixado, por esbarrar no óbice previsto na Súmula 7/STJ. Precedentes.10. Em outro capítulo, a recorrente postula o afastamento da Taxa Selic, sob o argumento de que sua utilização nos débitos tributários é indevida. Todavia, o acórdão apenas mencionou que não haveria prova de sua utilização nos cálculos. Incidem, no ponto, as Súmulas 282/STF e 211/STJ, já que não houve prequestionamento da tese levantada no especial.11. Quanto à multa aplicada, a recorrente pediu a aplicação do artigo 2º do Decreto-Lei nº 834/69 e do artigo 112 do CTN. Além disso, argumentou que a penalidade deveria ser objeto de revisão, pois estaria extremamente abusiva (60 % sobre o valor principal devido).12. A Corte de origem afirmou que o dispositivo invocado pela recorrente não estaria mais em vigor, fundamento que não foi combatido, atraindo a aplicação da Súmula 283/STF. A análise da razoabilidade da multa implicaria a interpretação da norma constitucional prevista no artigo 150, IV, da CF, o que não se permite na via especial.13. O recurso interposto com fundamento na alínea "b" do permissivo constitucional não pode ser conhecido, pois a recorrente não esclarece de que modo o aresto teria julgado válido ato de governo local contestado em razão de lei federal.14. Alegações genéricas quanto às prefaciais de afronta ao artigo 535 do Código de Processo Civil não bastam à abertura da via especial pela alínea "a" do permissivo constitucional, a teor da Súmula 284 do Supremo Tribunal Federal.15. Em relação ao período de 01/01/1997 a 04/12/1997, houve o lançamento por homologação. Tendo havido pagamento antecipado, ainda que reduzido, rege-se a decadência pela regra do art. 150, § 4º, do CTN, que fixa o prazo de cinco anos, a contar do fato gerador, para a homologação do pagamento realizado pelo contribuinte. Em razão disso, nesse ponto, prospera a irresignação da decadência parcial da obrigação tributária inserida no auto de lançamento nº 0008699640.16. Recurso especial conhecido em parte e provido também em parte.(REsp 1109298/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/04/2011, DJe 25/05/2011) (grifos nossos)