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Direito de amar: vulnerabilidade e mitigação da autonomia privada do grupo LGBT pela ausência de garantia da possibilidade de celebração do casamento civil

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Agenda 23/04/2013 às 09:04

6. A Controvérsia das Relações Homoafetivas no Direito Brasileiro

Passados já dois anos da histórica decisão proferida por unanimidade no plenário do STF, que pacificou a possibilidade de reconhecimento de entidade familiar formada por um par homoafetivo, ainda muito se discute a respeito dos efeitos de tal reconhecimento. A imprecisão conceitual da decisão do Supremo, embora proposital e bem-intencionada, longe de ser uma solução final, provocou muitas outras questões que Doutrina e Jurisprudência vêm tentando responder.

A consequência jurídica de ser família é o natural reconhecimento dos direitos oriundos de tal status. Direitos que, aliás, dizem respeito não só à legitimidade da relação, mas à sua preservação e à possibilidade de efetivação social do caráter familiar da união e, principalmente, à garantia da dignidade das pessoas envolvidas. Embora algumas das questões pacificadas em decorrência da decisão da Suprema Corte já fossem razoavelmente comuns na jurisprudência (deferimento de benefício previdenciário e inclusão em planos de saúde, por exemplo), a necessária definição de alguns outros elementos cruciais da vida em comum se tornou sensível.

Consideraremos como primeiro e mais relevante a possibilidade de candidatura conjunta à adoção, que constitui principalmente a proteção de um direito do próprio adotando. O artigo 227 da Carta Magna prevê a família, em primeiro lugar, como responsável pela garantia dos direitos humanos e pelo desenvolvimento físico, psicológico, e social das crianças e adolescentes. O reconhecimento do caráter familiar das uniões homoafetivas é, nesse sentido, o oferecimento a crianças e adolescentes desacolhidos o incremento das possibilidades de encontrar um lar onde possam ter o tão necessário afeto e condições de vida mais salutares e adequadas ao seu crescimento e desenvolvimento que os orfanatos, instituições de internação ou, no pior dos casos, que as ruas e a delinquência.

O Superior Tribunal de Justiça julgou recentemente Recurso Especial do Ministério Público do Estado de São Paulo (REsp 1281093 / SP), que questionava a possibilidade jurídica da adoção unilateral por uma mulher de filha biológica de sua companheira, passando ambas a ostentar o status de mães.

Contrariando o argumento do Parquet, que já houvera sido vencido em primeira e segunda instâncias, a relatora, Min. Nancy Andrighi, fez menção à "[...] evidente necessidade de se aumentar, e não restringir, a base daqueles que desejam adotar, em virtude da existência de milhares de crianças que longe de quererem discutir a orientação sexual de seus pais,  anseiam apenas por um lar"[6] para negar provimento ao recurso e, assim, reforçar a tendência includente da jurisprudência na questão da adoção homoparental.

Extrema relevância tem também o direito de curatela em caso de incapacidade civil, uma vez que a comunhão de vida estabelecida pela formação de família não diz respeito somente aos bons momentos da convivência.

Não se pode admitir que seja justo, ou mesmo que atenda aos interesses do incapaz, o deferimento de curatela a um parente consanguíneo em detrimento daquela pessoa que com ele conviveu e que melhor o conheceu durante anos a fio. A própria intenção legal da curatela é desafiada quando é deferida a qualquer um que não seja a pessoa que mais intimamente entende – e, portanto, é capaz de atender – os interesses do curatelado.

Embora ainda sejam raros na jurisprudência os exemplos de deferimento de curatela a companheiros homoafetivos (provavelmente porque a maioria das decisões de primeira instância não são chegam a ser contestadas), pode-se observar que boa parte das decisões condiciona o deferimento da curatela ao reconhecimento prévio de união estável. Assim, antes da decisão do STF, nos tribunais cuja jurisprudência dominante era contrária à possibilidade de reconhecimento da existência de união estável entre pessoas do mesmo sexo, o deferimento da curatela também era, por conseguinte, impossível.

Finalmente, a controvérsia mais acirrada, e principal foco deste trabalho, nos parece ser a respeito da possibilidade de casamento civil para os pares homoafetivos, seja oriundo do procedimento jurisdicional de conversão da união estável, como autoriza o §3º do art. 226 da Constituição da República, seja pelo procedimento administrativo direto ordinário.

Poucos meses depois do julgamento conjunto da ADI 4277 e ADPF 132 na Suprema Corte, o jornal Folha de São Paulo publicou uma pesquisa realizada pelo IBOPE [7], com margem de erro de dois pontos percentuais, segundo a qual a maioria dos brasileiros (63% dos homens e 48% das mulheres) ainda se manifestava contrária à institucionalização de algum tipo de apoio estatal à oficialização das famílias homoafetivas.

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O mesmo estudo, entretanto, constatou que um percentual ainda maior da população afirma não ter problemas em aceitar e conviver com um amigo homossexual, ou mesmo aceitar a ocupação de posições de relevância social como médico, policial ou professor do ensino fundamental por pessoas homossexuais.

Esses dados demonstram que a tolerância da consciência coletiva à ideia de um casal formado por pessoas do mesmo sexo ainda esbarra no limite da publicidade das atitudes que, entende-se comumente, devem ser mantidas na esfera da intimidade(SEMPRINI, 1999). A compreensão e aceitação de que uma pessoa homossexual não é, por sê-lo, desprezível ainda não abarca a aceitação de que essa mesma pessoa demonstre publicamente sua condição.

Entretanto, o objetivo constitucional de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) conduz à natural conclusão de que o atraso do pensamento de uma parcela da sociedade, mesmo que esta seja a majoritária, não pode ser legitimado como inibidor do progresso e da efetivação de direitos de qualquer grupo dentro da sociedade.

O papel que a Ciência Jurídica representa na sociedade está intimamente atrelado ao interesse humano de mútua convivência, suas faculdades, seus deveres, sua liberdade, sua moralidade, seu comportamento. Todos esses valores compõem o Direito na medida em que ele é a aplicação de uma perspectiva normativa ao estudo do homem e dos fatos da sua conduta e organização social.

O operador do Direito precisa, então, estar atento ao fato de que o seu saber depende diretamente da observação da sociedade, dos seus hábitos, de suas peculiaridades, de sua concretude fática. Enquanto ciência humana, o Direito não pode abandonar o compromisso que tem de produzir saberes e soluções que possam efetivamente tutelar e valorar a diversidade dos fenômenos socioculturais.

Apesar disso, a despeito do paradigma hermenêutico estabelecido pela decisão do STF, e da clara tendência jurisprudencial do STJ de desconsiderar a diversidade de sexos como requisito para o casamento – video julgamento do REsp 1183378 / RS[8] – a jurisprudência ainda está longe de ser pacífica quanto à possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Nos Estados de São Paulo, Bahia, Alagoas e Piauí, em reação à recusa dos cartórios em receber os pedidos de conversão de união homoafetiva em casamento, ou a habilitação para o casamento direto entre pessoas do mesmo sexo, foram editadas pelas respectivas corregedorias normas regulamentando a habilitação para o casamento de pares homoafetivos e a conversão em casamento de suas uniões anteriormente registradas.

Nos demais Estados, as questões têm chegado lentamente aos tribunais, mas ainda sem uma resposta de caráter geral. No Rio de Janeiro, por exemplo, sete das dez apelações em ações de conversão de união homoafetiva em casamento julgadas pelas Câmaras Cíveis foram providas. Como a Corregedoria, entretanto, não publicou norma que regulamente a habilitação de pares homoafetivos para o casamento, diante dos pedidos, os cartórios do Registro Civil de Pessoas Naturais têm suscitado dúvidas ao juízo da Vara de Registros Públicos, que, por sua vez, os indefere.

Na doutrina, a divergência é ainda mais marcada. Autores como Carlos Roberto Gonçalves, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Arnaldo Rizzardo, entre outros, mantém seu entendimento clássico de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é um negócio jurídico inexistente, uma vez que carente de pressuposto essencial, que seria a heterogeneidade de sexos.

A obra de Caio Mário da Silva Pereira, atualizada por Tânia da Silva Pereira, sustenta a classificação do casamento entre pessoas do mesmo sexo como inexistente, argumentando, para tanto, que a própria Constituição estabeleceria "a heterossexualidade como base do casamento"(PEREIRA, 2012).

Nesse mesmo entendimento, Maria Helena Diniz assevera enfaticamente que "absurdo seria admitir que o matrimônio de duas mulheres ou dois homens tivesse qualquer efeito jurídico"(DINIZ, 2012). Roberto Senise Lisboa corrobora a afirmação, dizendo, por sua vez, que "as uniões homoafetivas não foram expressamente reconhecidas como entidade familiar, a ser constituída a partir do casamento ou da união estável, que pressupõem a união de um homem e uma mulher"(LISBOA, 2012).

Silvio de Salvo Venosa, em que pese seu entendimento contrário à tese de inexistência do ato jurídico, tem um discurso ainda mais carregado, afirmando que "as uniões homossexuais nunca terão o estado de casamento nem a índole de família"(VENOSA, 2011).

Constatamos, entretanto, que a sustentação de uma argumentação de impossibilidade do casamento civil direto por pares homoafetivos através de uma interpretação negativa do texto legal, além de violar o Princípio da Não-Discriminação e o valor fundamental da Dignidade da Pessoa Humana e contrariar diretamente a orientação constitucional de efetivação da liberdade e autonomia privada, não tem a virtude – ou mesmo a intenção – de proteger a instituição do casamento; antes, pelo contrário, a reduz a instrumento de controle social por partes não legitimadas para tal.

De outro lado, capitaneados pela eminente jurista, ex-desembargadora e ativista dos direitos civis LGBT, Maria Berenice Dias, se posicionam renomados autores como Cristiano Chaves de Farias, Flávio Tartuce, Fábio Ulhôa Coelho, Daniel Sarmento, Roger Raupp Rios, Marianna Chaves, Paulo Roberto Vechiatti, sustentando, em termos gerais, a incompatibilidade da exegese contemporânea dos princípios constitucionais de não-discriminação, justiça, igualdade e solidariedade com a manutenção do modelo heterossexista do casamento.

Regina Beatriz Tavares da Silva, revisando a obra do saudoso jurista Washington de Barros Monteiro, retoma a definição clássica de casamento adaptando-a à realidade jurídica atual, conceituando-o como "a comunhão de vida entre dois seres humanos" (grifo nosso), claramente retificando o entendimento da necessidade de diversidade de sexos, ou mesmo a atribuição de papéis de gênero aos cônjuges(MONTEIRO e SILVA, 2012).

Dentre os enunciados apresentados e aprovados por ocasião da V Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, e que contou com a participação de renomados professores e profissionais de Direito de todas as áreas e de todas as regiões do país, o de número 526 afirma o entendimento atualmente majoritário, embora longe de ser pacífico, na doutrina: "Art. 1.726. É possível a conversão de união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento, observados os requisitos exigidos para a respectiva habilitação"[9].

Lenio Luiz Streck e Rogério Montai de Lima, apesar de reconhecerem que o direito à conversão da união homoafetiva em casamento é um dos efeitos decorrentes da decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e ADI 4.227, reiteram duras críticas à atuação da Corte Suprema[10].

Às críticas desses e dos demais doutrinadores que classificam a atuação do Poder Judiciário como usurpadora da competência do Legislativo, tentando atribuir ao termo "ativismo judicial" uma conotação pejorativa, respondemos que o Princípio Constitucional da Não-Discriminação requer uma interferência direta e ativa do Direito em conceitos sociais e atos administrativos reconhecidamente discriminatórios.

A exigência de diversidade de sexos para o casamento, derivada da interpretação tradicional do texto do art. 1.517 do Código Civil, afronta os princípios constitucionais de Liberdade e Não-Discriminação, além de violar a previsão constitucional de proteção às diversas formas de família e o valor fundamental da Dignidade da Pessoa Humana (artigos 1º, III; 3º, IV; 5º, caput e 226 da Constituição).

O respeito à dignidade da pessoa humana abrange a proteção à possibilidade de efetivação das escolhas que a pessoa faz no exercício dos seus demais direitos, como à intimidade, à individualidade, à igualdade, à liberdade, à diferença, à exclusividade, à privacidade.

A homossexualidade não só é, hoje em dia, aceita pela sociedade cosmopolita brasileira como, antes de tudo, compreendida pela comunidade científica como condição natural do ser humano. Antropologia, Sociologia, Psicologia, Medicina, o próprio Direito e os demais ramos do saber que têm por objeto o conhecimento e a valoração do ser humano já são unânimes em afirmar que, ao contrário do que se pregou durante longo tempo, a homossexualidade não é doença, nem desvio de conduta, nem desvio de moral.

Negar jurisdição - e, portanto, a efetivação social de direitos - ao caso concreto por ignorar deliberadamente qualquer aspecto da personalidade do indivíduo, incluindo a sua sexualidade, é discriminação inadmissível diante da compreensão dos Direitos Fundamentais e/ou naturais de todo cidadão, que põe em risco, inclusive, a probidade intelectual necessária para que o Direito seja respeitado enquanto ciência.

O Direito tem a intrínseca responsabilidade de conduzir a sociedade ao esclarecimento, através do exercício racional de constante evolução dos institutos jurídicos, das instituições jurídico-sociais, dos discursos do Direito, das realizações político-jurídicas, do tratamento jurídico que se dá à pessoa humana[11].

Dar eficácia ao Princípio da Não-Discriminação contido na Carta Maior significa minimizar os preconceitos através de uma jurisdição inteligentemente includente e realística. É fato que, se o preconceito é alimentado pelas relações institucionais entre os grupos sociais, ele também pode ser reduzido pelo tratamento institucional que iguale os iguale em status social.

Não se pode ignorar o poder de internalização de valores que o Direito tem sobre os indivíduos na sociedade. A tutela jurisdicional efetiva tem caráter não só coercitivo, mas, principalmente, didático, na medida em que funciona como meio de transformação social, de exemplo e transmissão dos valores institucionais, resultando, por fim, na transformação da percepção e dos conceitos da sociedade.

Entendendo isso, entenderemos, por consequência, como uma prestação jurisdicional includente e antidiscriminatória tem o efeito social de desfazer, ainda que num processo naturalmente lento – afinal, tratam-se de transformações sociais – a própria discriminação, quiçá o preconceito que a motiva.

Sobre o autor
Daniel Rocha de Oliveira

Advogado, pós-graduado em Direito Privado, especializado em Direito de Família e Direito Homoafetivo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Daniel Rocha. Direito de amar: vulnerabilidade e mitigação da autonomia privada do grupo LGBT pela ausência de garantia da possibilidade de celebração do casamento civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3583, 23 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24248. Acesso em: 22 dez. 2024.

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