“[...] Transformai-vos pela renovação do vosso entendimento”
(Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 12, versículo 2)
Resumo: A insegurança a respeito da possibilidade do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo representa a mitigação dos direitos fundamentais – especialmente a autonomia privada – do grupo LGBT, e denuncia a sua vulnerabilidade no contexto social da atualidade. A reflexão a respeito da interação necessária entre o fato social e a hermenêutica jurídica nos levará ao estudo da necessidade de revisão de determinados dogmas juscivilísticos, na busca de uma jurisdição não-discriminatória, ativamente includente. Veremos as relações de necessidade entre laicidade e conduta estatal, e entre os princípios constitucionais e a geração e aplicação do Direito Civil.
Sumário:1.Introdução. 2.Vulnerabilidade do Grupo Social LGBT. 3.Liberdade e Autonomia Privada nas Relações de Direito de Família. 4.O Mito da Heterossexualidade. 5.Casamento e Celebração: A Realização Pessoal enquanto Valor Inerente ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 6.A Controvérsia das Relações Homoafetivas no Direito Brasileiro. 7.Conclusão. Referências.
1. Introdução
Em Outubro de 1988, a nova Constituição da República trouxe à Ciência do Direito, ou melhor, à inteligência dos intérpretes e aplicadores do Direito, um novo e profundo desafio: não discriminar.
E é no caminho dessa busca que a Pós-Modernidade dos tempos traz à tona uma discussão que nos remete à investigação científica de fatos da vida humana que remontam ao princípio da civilização: qual é o limite para estabelecer o que é ou não permitido aos indivíduos em suas vidas particulares e na constituição de suas famílias?
Em sendo a família a base da sociedade, e sendo mutável – e constantemente mutante – a própria sociedade, pode ser estática a fonte da metaética que define seus padrões e valores? Ou, antes, a instituição Família é meio ou finalidade?
Trataremos neste trabalho de tema que provavelmente sequer precisaríamos abordar não fossem os preconceitos, de todas as ordens, que se abatem sobre o assunto: a união de pessoas do mesmo sexo com objetivo de formar família e sua repercussão na sociedade e nas vidas das pessoas envolvidas.
Em toda o mundo ocidental, a discussão a respeito do "casamento gay" divide opiniões, toma a posição de paradigma eleitoral e ocupa as manchetes dos principais meios de comunicação. Aqueles que outrora foram o símbolo do estereótipo de promiscuidade e perversão moral, agora “saem do armário” reivindicando a revisão das ideias e conceitos que os relegaram a tal situação. Borbotam a cada dia estatísticas de uma nova realidade na sociedade brasileira, quiçá mundial, na qual os homossexuais demonstram inequivocamente a integridade de sua moral e vivem suas uniões afetivas com cada vez maior estabilidade, publicidade e aceitação social.
Não há que se discutir a ilegalidade de legitimar a condição de marginalidade de qualquer grupo dentro da sociedade. Agora, também, não cabe mais discussão quanto à marginalidade em que estão postos os homossexuais, condenados, pela discriminação que sofrem por parte das camadas mais conservadoras e preconceituosas do Poder Legislativo, muitas vezes endossada pelo Judiciário e pela Doutrina Jurídica, a uma existência sob sua própria conta e risco, sem o reconhecimento do seu direito natural, intrinsecamente humano, de terem seus projetos de vida em comum protegidos pela Lei e, portanto, mitigados em seu acesso à Justiça.
Diante do inegável impasse que se estabeleceu após a louvável decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto da ADI 4277 e ADPF 132, quando decidiu possível o reconhecimento de união estável com natureza familiar entre pessoas do mesmo sexo, o operador e o intérprete do Direito, conhecendo a lamentável morosidade e falibilidade da Legislatura no Brasil, precisam assumir a responsabilidade pela efetivação dos Direitos Humanos e Fundamentais previstos na Constituição da República, e, através de uma postura includente e antidiscriminatória, dar concretude e efetividade social aos imprescindíveis preceitos constitucionais de Igualdade, Liberdade, Justiça, Solidariedade e Dignidade da Pessoa Humana.
2. Vulnerabilidade do Grupo Social LGBT
A Constitucionalização do Direito Civil, premissa da qual parte este trabalho, já deixou de ser uma inovação acadêmica e é, atualmente, um fenômeno doutrinário e jurisprudencial observável em todas as esferas de operação do Direito no Brasil. Trata-se da recentralização axiológica do ordenamento na Constituição, norma que é o seu vértice. Como esclarece Cézar Fiuza:
“[...] Por constitucionalização do Direito Civil deve-se entender, hoje, que as normas de Direito Civil têm que ser lidas à luz dos princípios e valores consagrados na Constituição, a fim de se implementar o programa constitucional na esfera privada. [...] Falar em constitucionalização do Direito Civil não significa retirar do Código Civil a importância que merece como centro do sistema, papel este que continua a exercer. [...] No entanto, apesar disso, se a Constituição não é o centro do sistema juscivilístico, é, sem sombra de dúvida, o centro do ordenamento jurídico, como um todo. É, portanto, a partir dela, da Constituição, que se devem ler todas as normas infraconstitucionais. Isso é o óbvio mais fundamental no Estado Democrático.” (FIUZA, 2009)
A melhor definição de Direito Civil-Constitucional é, provavelmente, a síntese feita por quem foi seu precursor no cenário jurídico nacional: “[...] Uma interpenetração do Direito Público e Privado, de tal maneira a se reelaborar a dogmática do Direito Civil”(TEPEDINO, 2004).
Este novo paradigma de interpretação impõe ao Direito Civil a realocação de determinados valores de modo a orientar a lógica do Ordenamento para uma perspectiva centrada na pessoa e em sua realização:
“[...] As situações existenciais a serem tuteladas exprimem-se não só em termos de direitos subjetivos, mas ainda em termos de direitos potestativos, de deveres, de ônus, de poderes, faculdades, estados: ‘... no centro do ordenamento está a pessoa, não como vontade de realizar-se libertariamente, mas como valor a ser preservado também no respeito de si mesma’. O princípio da liberdade individual consubstancia-se, hoje, numa perspectiva de privacidade, intimidade e livre exercício da vida privada. Liberdade significa, cada vez mais, poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais – e mais: o próprio projeto de vida, exercendo-o como melhor convier.” (MORAES, 2010a)
Há menos de vinte anos (tempo, certamente, insuficiente para uma mudança significativa na mentalidade social), o grande civilista Orlando Gomes sustentava que “[...] somente o grupo oriundo do casamento deve ser denominado família, por ser o único que apresenta os caracteres de moralidade e estabilidade necessários ao preenchimento de sua função social”(GOMES, 1994), em claro resquício da formatação familiar anterior à Constituição de 1988, conforme elucida novamente Gustavo Tepedino:
“A hostilidade do legislador pré-constitucional às interferências exógenas na estrutura familiar e a escancarada proteção do vínculo conjugal e da coesão formal da família, inda que em detrimento da realização pessoal de seus integrantes – particularmente no que se refere à mulher e aos filhos, inteiramente subjugados à figura do cônjuge-varão – justificava-se em benefício da paz doméstica. [...] O sacrifício individual, em todas essas hipóteses, era largamente compensado, na ótica do sistema, pela preservação da celula mater da sociedade, instituição essencial à ordem pública e modelada sob o paradigma patriarcal.”(TEPEDINO, 2001)
A orientação abstrata do Ordenamento era claramente a conformidade ao padrão de comportamento familiar cristão-burguês, não restando espaço para que o indivíduo fosse livre para sequer querer se determinar de maneira diversa. A autodeterminação, apesar de lícita, era desencorajada, como explica Norberto Bobbio:
“No caso de um comportamento permitido, o agente está livre para fazer ou não fazer alguma coisa, ou seja, está livre para valer-se da própria liberdade para conservar ou inovar. Se o Ordenamento jurídico julga positivamente o fato de o agente valer-se o mínimo possível da sua liberdade, procurará desencorajá-lo a fazer o que é lícito. Como se vê, a técnica do desencorajamento tem uma função conservadora. Se, ao contrário, o mesmo ordenamento jurídico julga positivamente o fato de o agente servir-se o máximo possível da sua liberdade, procurará encorajá-lo a se valer dela para mudar a situação existente: a técnica do encorajamento tem uma função transformadora ou inovadora. O exemplo mais interessante que se pode oferecer hoje, fazendo referência aos ordenamentos jurídicos de Estados dirigistas ou planificadores, é o das chamadas leis de incentivo, as quais, na vertente das medidas negativas, têm a sua correspondência nas leis de desincentivo.” (BOBBIO, 2007)
A já referida resistência à inclusão social de configurações familiares diversas do matrimônio heteroafetivo, que se caracterizava claramente como disposição de desencorajamento, teve papel fundamental na consolidação da vulnerabilidade do grupo social LGBT, cuja correção, através de uma concepção funcionalista da família, é, agora, imprescindível.
Como ensina a valiosa lição da eminente professora Heloisa Helena Barboza, todas as pessoas, em princípio, são vulneráveis, se partirmos de uma análise do próprio conceito de vulnerabilidade – do latim vulnerabilis, “que pode ser ferido”. O fato é que qualquer ser vivo “pode ser ‘vulnerado’ em condições contingenciais”(BARBOZA, 2009).
Tal vulnerabilidade, evidentemente, apresenta gradações que observam relação direta com as potencialidades do indivíduo: certos grupos sociais, como, por exemplo, os portadores de deficiência, os idosos, os integrantes do grupo LGBT, entre outros, por determinadas condições socioeconômicas ou psicofísicas, se encontram em condição de negativa desigualdade em relação aos demais, o que os torna vítimas em potencial, ou seja, estão inevitavelmente submetidos a uma constante situação de risco.
A vulnerabilidade à qual nos referimos é essa condição, na qual o risco deixa de ser uma hipótese eventual para se tornar uma realidade constante e concreta na existência do indivíduo. A pessoa que se encontra nessa condição “está impedida ou tem diminuída a possibilidade de exercer seus direitos”, e, por essa razão, “necessita de proteção especial”(BARBOZA, 2009).
É, em apertada síntese, um estado de impossibilidade de realização da Dignidade da Pessoa Humana, na configuração em que magistralmente a apresenta a professora Maria Celina Bodin de Moraes:
“O substrato material da Dignidade assim entendida pode ser desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência de outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica -, da liberdade e da solidariedade.”(MORAES, 2010b)
Ainda nesse contexto, Ricardo Pereira Lira nos leva à reflexão no sentido de que a atribuição do Estado não é de favorecimento de grupos sociais específicos, mas de retificação das circunstâncias de desfavorecimento:
“A Constituição de 1988 estabelece que a República tem como fundamento a Dignidade da Pessoa Humana, declara que é objetivo fundamental dessa mesma República erradicar a pobreza e a marginalização, bem como reduzir as desigualdades sociais. [...] Dessa forma esses princípios fundamentais presidem toda a interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, de forma a conduzi-lo à equidade e à Justiça Social. Esses princípios fundamentais estão acima dos próprios Princípios Gerais de Direito de que cuida a Lei de Introdução ao Código Civil, como processos de integração e suprimento das lacunas do Ordenamento.”(LIRA, 1997)
Assim, é dever do Estado-Juiz assumir o papel de corretor das injustiças que culminam na vulnerabilidade de qualquer grupo social. O Direito, enquanto ciência de ativa relevância e direta influência nas relações entre os grupos sociais, deve buscar o ideal da possibilitação do "desenvolvimento sustentável do patrimônio cultural brasileiro", através de uma proativa observação da evolução da consciência coletiva e dos costumes da sociedade.
A Ciência Jurídica não pode se restringir ao estudo da norma rígida, engessada. Durante longo período, a reflexão jurídica foi entravada pela névoa positivista, sendo permitida apenas ao estudo do “dever-ser” convalidado pela norma em sua autonomia existencial. Superada, hoje, a dissociação feita por Kelsen entre o Direito e a noção de Justiça, sabemos que cientificidade não tem necessariamente a ver com não-valoração, uma vez que o Direito é, também, ciência eminentemente humana.
O jurista não pode deixar de observar o fato social porque não podemos abrir mão da busca da Justiça no estudo do Direito. É dela que ele deriva. Nesse sentido, faremos coro com o conceito jusnaturalista de que o Direito é intrínseco à sociedade e anterior à Norma, e, mais ainda, superior a ela. A investigação científica da Justiça, baseada nos valores sociais do que é ou não justo ou ético, é necessariamente o ponto de partida da hermenêutica jurídica.
Como novamente nos ensina Bobbio, o Direito Natural é o conteúdo valorativo e essencial da formação das normas do Direito Positivo(BOBBIO, 1999) e, por isso, deve-se buscar a integração entre os conceitos de ética e justiça e a aplicação da norma jurídica positivada na legislação.
A efetividade social da jurisdição depende da sua adequação à realidade fática e, além disso, à percepção social da realidade fática. Assim, novas circunstâncias na esfera social demandam novas perspectivas nas leituras dos enunciados normativos, já que é na prática jurisdicional que a inteligência interpretativa do operador do Direito pode encontrar soluções para os conflitos sociais com mais eficiência e tempestividade que o sempre lento e, muitas vezes, falho processo legislativo.
O ordenamento jurídico não pode ser indiferente às transformações da sociedade que tutela, nem legitimar a marginalidade de qualquer grupo dentro dessa sociedade. E, sim, os homossexuais ainda são relegados à margem da sociedade e do ordenamento jurídico, violados em seus direitos fundamentais por serem impossibilitados de legitimar socialmente seus projetos de vida em família.
A desvinculação entre o Estado e a mentalidade religiosa, especialmente a cristã, obriga a um necessário reexame da nossa realidade cultural, e dentro dela, também, das relações homoafetivas (e da própria homossexualidade, consequentemente) e as possibilidades de discussão do tema e conscientização da sociedade.
E é justamente neste momento de iluminação e elucidação dos fatos, de quebra de estereótipos, que o Direito não pode se isentar da responsabilidade de corrigir o malcumprimento do dever de legislar do Estado, e dar respostas lúcidas à população. O status de Estado Democrático de Direito do Brasil depende de uma atitude ativa de atendimento às urgências de positivação dos direitos fundamentais de todos os grupos dentro da nossa sociedade.
3. Liberdade e Autonomia Privada nas Relações de Direito de Família
Liberdade e autonomia privada são dois conceitos que, na Ciência do Direito, assumem posições opostas, mas complementares: enquanto esta representa o aspecto negativo, de limitação da ingerência do Estado e da intervenção de terceiros nas escolhas e relações privadas dos indivíduos, aquela tem caráter positivo, se referindo à própria faculdade individual de autodeterminação do conteúdo e dos efeitos de tais relações. E essa relação de complementariedade representa, por excelência, a ponderação de interesses individuais e coletivos que é a interseção essencial entre Direito Público e Privado.
E podemos adicionar que o conceito de liberdade, que a própria Constituição da República classifica como Direito Fundamental, envolve ainda duas dimensões básicas: a liberdade subjetiva, ou de pensamento, que é a característica interna da liberdade do indivíduo, ou seja, a liberdade de escolha, de crença, de convicção - e que demanda do indivíduo a prévia consciência das diversas possibilidades que a realidade lhe oferece; e a liberdade objetiva, ou de ação, que é a efetivação ao nível material das escolhas e ideologias produzidas pela liberdade de pensamento.
Note-se que, apesar de "autonomia privada" e "privacidade" terem sido tratados pela Doutrina civilista durante muitos anos como institutos diversos - atribuindo-se a esta natureza existencial e àquela natureza patrimonial -, tratam-se ambas, apesar de terem objetos diferentes, exatamente do mesmo fenômeno jurídico: a atribuição de potencial jurígeno ao exercício da liberdade.
A tutela das relações de Direito Privado Patrimonial prestigiou tanto, ao longo da evolução do Direito, essa noção de autonomia privada que a tríade propriedade privada, liberdade negocial e livre iniciativa ocupou o próprio cerne dos sistemas jurídicos baseados na norma civil. Vide, como exemplo, a massiva influência nos ordenamentos jurídicos da Europa continental e de suas colônias do Code Napoléon, Lei civil que ostentou o status de norma fundamental no Estado Francês, durante o período pós-Revolução, a despeito da posição hierárquica da própria Constituição.
Entretanto, como nos ensina o eminente civilista italiano Pietro Perlingieri, nenhum outro Princípio além da Dignidade da Pessoa Humana tem, no Direito, valor intrínseco por si só, de modo que os demais princípios jurídicos merecem tutela na medida em que e somente enquanto concorrerem para a promoção daquele(PERLINGIERI, 2008).
Tanto é assim que o Direito ocidental contemporâneo, contrariando a normativa liberalista e patrimonialista instituída pelas revoluções burguesas do final da Era Moderna, subordina a tutela da autonomia privada à realização da sua função social. Essa inversão axiológica, que flexibilizou o antigo dogma pacta sunt servanda e submeteu a liberdade de contratar à intervenção estatal, através da funcionalização do instituto, se baseou justamente na necessidade de evitar que a autonomia fosse utilizada contra o próprio indivíduo que a exerceu, de modo a atingi-lo em sua dignidade.
A clara disposição constitucional do caput do artigo 170 ("A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna") informa que mesmo aqueles princípios conceituados e estudados ao longo dos séculos de estruturação da civilização ocidental sob uma perspectiva estrutural e patrimonialista, tais como a propriedade e a liberdade de iniciativa, hoje estão condicionados à função existencialista de promoção da dignidade. Tal encadeamento de valores é evidente no Ordenamento brasileiro pela leitura dos artigos 5º, caput e seu inciso XXIII, e 170, caput e seu inciso III, da Constituição da República, e 421 e 2.035, par. ún., do Código Civil.
Podemos, então, tomar como paradigma a conclusão de que liberdade e autonomia privada devem ser, hoje, consideradas primordialmente por seu aspecto existencial, e só secundariamente sob seu aspecto patrimonial. Isto considerado, resta óbvia a inadequação da redução do estudo da autonomia negocial a uma perspectiva meramente contratual, como já observado também por Perlingieri: liberdade e autonomia privada, em função da dignidade, são princípios que se aplicam a todas as relações privadas, não somente àquelas que têm caráter patrimonial, mas principalmente às que dizem respeito a elementos integrantes da personalidade do indivíduo(PERLINGIERI, 2008).
Apesar disso, influenciada pela histórica perspectiva patrimonialista do Direito, a tutela da personalidade, das relações familiares e da sucessão teve, desde a sua origem romana até as codificações dos séculos XVIII e XIX, um viés essencialmente regulador, restringindo a autonomia privada nas interações jurídicas de natureza pessoal em privilégio da conservação do patrimônio familiar e da sustentação da economia das comunidades.
A evolução histórica da tutela da autonomia privada nos leva à observação de que o rompimento dessa tendência reguladora de restrição, apesar de fartamente sustentado por princípios de Direito e pela doutrina jurídica, é um movimento lento pela própria natureza do processo legislativo nos sistemas jurídicos positivistas, e dificultado sempre por disputas (só cosmeticamente ideológicas) entre grupos parlamentares.
Em que pese, entretanto, o embate entre as convicções particulares dos diversos grupos sociais representados no Poder Legislativo, há que se reconhecer na autonomia existencial um espaço de não-legislabilidade, como já observado por Stefano Rodotà: o legislador não pode violar a consciência individual dos cidadãos impondo-lhes como padrão a sua própria.
“A saída deste dilema não pode ser aquela, antiga, de reconhecimento da liberdade de consciência individual aos parlamentares. Não é a liberdade deles que deve ser resguardada, mas a de cada um de nós. ‘A Lei não pode, em nenhum caso, violar o limite imposto do respeito à pessoa humana’, diz, com sua bela linguagem, a própria Constituição [italiana] no artigo 32. É a consciência individual, com todas as suas vicissitudes, que deve ser respeitada por um legislador a quem se impõe sobriedade e, nos casos extremos, o silêncio. Além disso, consentindo que exista uma área ‘indecidível’ pelo legislador e remetida à decisão individual no quadro dos princípios gerais, se chegará a uma regra capaz de evitar conflitos violentos onde um ou mais dos partidos políticos faça referência a valores reconhecidamente não negociáveis.”[1](RODOTÀ, 2006)
Assim informa o próprio Ordenamento normativo (artigos 5º, X da Constituição da República, e 21 do Código Civil), reservando ao indivíduo a liberdade de determinação do seu próprio projeto de vida. Somente a funcionalização dos institutos de Direito Privado justifica a intervenção do Estado na autonomia existencial do indivíduo. Logo, tal intervenção deve se restringir ao mínimo necessário para garantir a centralização das relações subjetivas de direito na promoção da dignidade dos seus integrantes e na realização de sua função social.
A Emenda Constitucional nº 66/2010, que suprimiu da norma constitucional os requisitos objetivos para o divórcio, representa a consolidação dessa tendência de intervenção mínima do Estado na autonomia existencial dos indivíduos. Exemplos anteriores de tal tendência eram, em sua maioria, infraconstitucionais: a possibilidade de duas pessoas não se casarem, mesmo após terem firmado pacto antenupcial (art. 1.653 do Código Civil); a retirada do ordenamento da norma que criminalizava o "rapto", último resquício da histórica exigência legal de consentimento paterno para o casamento; o privilégio garantido pela Lei ao consenso entre as partes nas questões a respeito do exercício do poder familiar (art. 1.631 do Código Civil) e guarda dos filhos (art. 1.584 do Código Civil), casos em que a intervenção do Estado-Juiz é tratada sempre como excepcional; e a dispensa da própria atividade jurisdicional quando o divórcio consensual não envolver filhos menores (art. 1.124-A do Código de Processo Civil).
A intenção de constituir família não mais inclui necessariamente a intenção de gerar prole(FACHIN, 2001). Planejamento familiar, adoção, fertilização assistida, reprodução natural ou a simples opção por não ter filhos: a evolução nos dá escolhas e descaracteriza a família como núcleo de reprodução humana do qual fazem parte, necessariamente, duas gerações.
A função da família é muito mais que de reprodução biológica ou de conservação de patrimônio: a função da família ocidental contemporânea é ideológica, de reprodução de valores éticos e sociais por seus membros. O sentido de ser família não passou por uma simplesmente modificação: a liberdade de escolha dos indivíduos substituiu os instintos, os impulsos e as necessidades naturais numa sofisticação do comportamento – e, por que não dizer, do próprio ser – humano, que o Direito não pode reter nem deixar de acompanhar.
Assim, embora paulatinamente, a normativa civil vai avançando em direção ao necessário reequilíbrio dos seus institutos de acordo com os valores informados pela Constituição da República, subordinando a autonomia privada nas relações patrimoniais ao cumprimento de sua função social enquanto devolve às relações de natureza pessoal a autonomia que lhes é inerente.