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Direito de amar: vulnerabilidade e mitigação da autonomia privada do grupo LGBT pela ausência de garantia da possibilidade de celebração do casamento civil

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23/04/2013 às 09:04
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4. O Mito da Heterossexualidade

Como nos ensinou Jurandir Freire Costa, toda época produz crenças a respeito dos conceitos de bem e mal, do mundo e do indivíduo, que parecem óbvias e indubitáveis aos olhos dos observadores contemporâneos(COSTA, 1992). A partir do século XIX - período definido por Foucault como uma era marcada pela classificação do que é ou não “normal” - impôs-se na consciência ocidental, como um dado universalmente válido para todas as circunstâncias, a uma crença de que poderia haver uma divisão dos indivíduos de uma sociedade entre heterossexuais e homossexuais.

O estudo para a categorização – e, consequentemente, valoração – das diversas práticas sexuais da humanidade teve início na transição dos séculos XVIII e XIX, principalmente como uma forma de exercício e afirmação de poder, aprendida principalmente com a Igreja Católica, das instituições sobre a individualidade.

A previsibilidade dos comportamentos humanos é elemento essencial à prosperidade da economia no sistema capitalista. Na transição do sistema econômico feudal para o sistema capitalista, a organização do Estado passou, então, a se preocupar ostensivamente com aspectos da vida pessoal dos indivíduos, entre elas, especialmente, a sexualidade, mais por suas consequências sociais, familiares e patrimoniais que por qualquer atribuição de valor intrínseco aos comportamentos.

A perseguição instituída contra o “desvio” – termo recém-inventado para designar a característica dos indivíduos que pudessem, eventualmente, perturbar a expectativa de ordem social da classe dominante, como os extremamente pobres, os “loucos”, os vadios, os homossexuais – legitimou a intervenção social na vida privada.

Sob a ótica daquela realidade social, civilização significava disciplina e esta, por sua vez, significava controle dos impulsos – inclusive os sexuais – dos indivíduos. A manutenção da civilização da sociedade ocidental era responsabilidade de instituições de controle da disciplina, como prisões, hospícios e escolas. Todas essas instituições tinham, então, o objetivo de promover a predominância de uma impressão de “normalidade” dos indivíduos dentro da sociedade.

Devemos considerar o fato de que estabelecer o que é “normal” ou “anormal” tem estreita relação com a definição do que é “adequado” ou “desviante”, e que esta classificação é inevitavelmente uma postura de dominação política.

Entretanto, o ensino trazido pela Igreja Católica de que a prática sexual sem fins de reprodução – a homossexualidade, portanto – era contrária à natureza divinamente predeterminada para a humanidade já não era mais suficiente para justificar os interesses do nascente Estado Laico. A criminalização da “sodomia” por leis divinas não tinha mais espaço na sociedade civilizada ocidental.

A classificação é sempre, necessariamente, uma discriminação. O exercício desse “poder de discriminar”, portanto, precisou se mascarar de cientificamente justificado – por piores, escusas e anti-científicas que fossem as justificativas.

Daí nascem, na transição entre os séculos XIX e XX, as correntes médicas que afirmavam que os homossexuais eram diferentes, moral, psiquiátrica e/ou biologicamente, dos indivíduos considerados heterossexuais[2], da figura do “homem-pai” legitimada como ideal de comportamento masculino da sociedade patriarcal cristã-burguesa dominante. Dessa forma, a medicina forja a ficção do “homossexualismo”, relacionando o comportamento homossexual à doença, afirmando que tais práticas eram anti-higiênicas, perversões da naturalidade das relações sexuais, aberrações.

A consequência natural dessa concepção foi que a medicina passou, então, a propor soluções “médicas” para o “problema” que a homossexualidade representava para a sociedade. Na transição dos séculos XIX e XX, a medicina elencava três possíveis causas para a homossexualidade, então chamada “homossexualismo”: a hereditariedade, defeitos congênitos ou desequilíbrios hormonais. A pretensa “cura” seria, então, a reversão desses fatores, convertendo homossexuais em heterossexuais.

Note-se que, acompanhando o conceito de “doença” e “cura”, vêm os juízos de valor, os conceitos de “bom” e “ruim”, legitimando a concepção de que havia práticas aceitáveis ou não para os indivíduos em suas vidas particulares.

O saber “científico” da medicina oitocentista, resguardando para si o poder sobre o conhecimento do “natural”, se reveste então um caráter – nocivo à sua própria natureza – de interferência na vida do indivíduo, na medida em que conhece o que é o “certo” ou o “errado”, e assume a responsabilidade, outrora exclusivamente eclesiástica, por orientar a sociedade no caminho de uma sexualidade “pura”, aceitável e conveniente, que respeitasse o que se entendia por natureza humana.

O termo “homossexualidade” foi cunhado em 1869 pelo médico húngaro Karoli Kertbeny para designar todas as formas de conjunção carnal e atração física entre pessoas do mesmo sexo(FÉRAY, 1981). Westphal, em 1870, escreve o primeiro artigo teórico – ou especulativo, melhor dizendo – acerca da homossexualidade. Posteriormente, como definição do inverso da homossexualidade – e produto direto da invenção desta – nasceu, somente nos idos de 1888, o termo heterossexualidade, como início da busca da definição de um conceito “científico” que sustentasse a consolidação da moral sexual cristã-burguesa(FOUCAULT, 1976).

O Século XIX é marcado não só pela definição dos conceitos de “normal” e “anormal” pela classificação em si, mas essencialmente pelo estabelecimento de um policiamento do que, sendo anormalidade, poderia eventualmente vir a perturbar a ordem socioeconômica instituída. A heterossexualidade é então criada como uma matriz de exclusão(BUTLER, 1999): nesse caminho, a homossexualidade e as demais formas de sexualidade marginalizadas pela consciência social são categorizadas para que os instrumentos de poder – do Estado e da Igreja, nesse caso – possam, a partir daí, obrigar a confissão, vigiar, controlar e, principalmente, “adestrar”, na medida do que fosse virtualmente possível.

Sob essa perspectiva, estabelecer a “normalidade” dependeu de estigmatizar, estereotipar, subalternalizar determinadas categorias para se consolidar socialmente a supremacia de outras. Podemos compreender, daí, que a invenção da homossexualidade como definição se deu, então, como uma das formas de estabelecer socialmente a ficção da normalidade - e, portanto, obrigatoriedade - do formato cristão-burguês do casamento heterossexual adulto monogâmico como padrão a ser seguido.

Não podemos deixar de ressaltar que o surgimento dos estudos relativos à homossexualidade é contemporâneo ao surgimento dos demais estudos guiados pela concepção eugênica de que se poderia comprovar cientificamente a superioridade de determinados grupos com relação a outros, a mesma ideologia que conduziu estudos sobre a superioridade de homens sobre mulheres e de negros sobre brancos.

Note-se que ainda no século XX, os cientistas que se dedicavam às áreas do saber que diziam respeito exclusivamente aos fenômenos da natureza e às relações animais não se isentavam do julgamento a respeito da moral (ou da falta dela) contida na homossexualidade.

O autor do livro “Biological Exuberance – Animal Homossexuality and Natural Diversity” afirma que, durante seus estudos, se deparou com uma pesquisa sobre o comportamento das baleias orca, financiada pela Marinha Norte-Americana em 1979, na qual a conclusão de que fora constatado comportamento homossexual entre os machos da espécie foi vetada pelos militares por ser “imoral”[3].

Em 1987, o biólogo americano W. J. Tennent, num estudo científico sobre o comportamento homossexual de certa espécie de borboletas, afirmou que “talvez seja um sinal dos tempos o fato de a literatura entomológica estar no caminho da decadência moral e das ofensas sexuais”[4].

Somente com o amadurecimento da separação entre a sociedade e a moral religiosa cristã, a partir da segunda metade do século XX, a comunidade científica passou a admitir que a homossexualidade podia não ser o que tão categoricamente afirmara que era. Em 1973, a homossexualidade deixou de ser considerada como doença pela Associação Americana de Psiquiatria. Em 1985, o então “homossexualismo” foi promovido de doença mental a “sintoma de desajustamento psicossocial” pela Organização Mundial da Saúde. Somente em 17 de Maio de 1990, a Assembleia Geral da OMS retirou a homossexualidade da sua relação de patologias mentais.

Apesar disso, não se pode ignorar que a associação entre homossexualidade e doença ainda não deixou de permear a consciência social, e que, pelo contrário, foi reforçada, obviamente contando com uma grande ajuda institucional e religiosa nesse sentido, pela epidemia do vírus HIV, que se propagou geometricamente entre os homossexuais dos grandes centros urbanos durante as décadas de 70, 80 e 90 do século passado.

Atualmente, sabemos que as variáveis que definem a sexualidade humana são complexas e não admitem categorizações simplistas. Na própria definição do sexo de uma pessoa, levam-se em consideração pelo menos, além dos seus aspectos biológicos congênitos, a sua identidade sexual, seu papel social e sua preferência afetiva.

Foucault já alertava para a futilidade da investigação acadêmica da homossexualidade(FOUCAULT, 1976), uma vez que todas as características das subjetividades dos indivíduos, inclusive a sexualidade, são produto direto da direção que a sociedade lhe dá ao modo de aprender a perceber, sentir, descrever, definir ou avaliar moralmente o que se é. Como salienta Freud, as inclinações sexuais de cada indivíduo estão intimamente atreladas à cultura da sociedade na qual se insere a respeito da sexualidade.

Entretanto, a ignorância com relação à origem de nossas inclinações sexuais ainda vigora com a hegemonia social do heterossexismo, sustentando no espaço-comum ideológico a ideia de que seja “distúrbio” qualquer comportamento sexual diferente da heterossexualidade.

Entretanto, abrimos a consciência para a constatação de que a heterossexualidade não é simplesmente “natural”, e sequer uma escolha livre: é a organização da sociedade que forma os indivíduos para que estes se relacionem obrigatoriamente com indivíduos do sexo oposto(KATZ, 1996). São as instituições, como a Igreja, o sistema educacional, a mídia e o próprio modelo institucionalizado de família, que reproduzem o ideal de perpetuação da espécie e consecução dos objetivos sociais dos papéis de “homem” e “mulher” na sociedade burguesa, incutindo nos indivíduos a pressuposição de uma heterossexualidade[5] – muitas vezes irreal – que limita suas percepções sobre as próprias individualidades sexuais.


5. Casamento e Celebração: A Realização Pessoal enquanto Valor Inerente ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A Pós-Modernidade degredou a Tragédia aos meios de informação, polarizando a cultura de massa em meios ficcionais, nos quais são imperativos os finais felizes, e em meios não-ficcionais, condenados a suportar o ônus de contar as histórias tristes. Em clara contrapartida às capas de jornais denunciando diariamente o caos de uma realidade permeada de catástrofes, violência e injustiça, cada vez mais numerosos filmes, livros, programas de televisão e letras de música insistem que o ser humano - seja movido por um sentimento abstrato como o amor, ou por uma bondade supostamente inerente à sua própria natureza - é capaz de fazer tudo terminar bem.

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Esse fenômeno, somado às tecnologias de comunicação que possibilitam ao indivíduo interagir com a sociedade ao mesmo tempo em que se mantém fisicamente isolado dela, cria a ilusão de que a tragédia é uma possibilidade distante e rara, enquanto a plenitude do bem-estar - a felicidade, portanto - é a conclusão de todo empreendimento bem-intencionado de vida humana. Essa nova metaética subconsciente, segundo a qual as pessoas "boas" são felizes, leva os indivíduos a uma subordinação da própria autoestima à sua percepção de realização pessoal, o que termina por converter o ideal de felicidade do homem numa expectativa de adequação da realidade ao seu desejo individual, e nunca o inverso.

Diante disso, embora estejam intimamente ligadas uma à outra, podemos perceber uma clara diferença entre a felicidade e a realização pessoal: o que se chama de felicidade é um ideal de estado metafísico do ser humano, uma condição psicológica cuja mensuração talvez sequer seja possível; a realização pessoal, por sua vez, é a verificação prática de progresso nos passos definidos pelo próprio indivíduo na busca daquele seu íntimo ideal de felicidade. Por exemplo, se o ideal de felicidade de uma pessoa consiste no alcance de determinado emprego, a sua realização pessoal estará em conseguir tal emprego, ainda que esse sucesso fático não proporcione a felicidade que a pessoa acreditou que proporcionaria.

Do mesmo modo, a constituição de uma família nos moldes idealizados por uma pessoa, embora configure a sua realização pessoal, pode não garantir que ela será tão feliz quanto idealizou que seria. A própria condição humana de constante sujeição à possibilidade de ocorrência de eventos radicalmente modificadores do estado das coisas, desde um incidente de proporções trágicas até o simples esgotamento da intenção de vida em comum, se coloca como desafio de transposição absolutamente imprevisível para o efetivo alcance do ideal de felicidade.

Em que pese, portanto, a impossibilidade da garantia de que todos os indivíduos alcançarão de fato a felicidade, a sua realização pessoal, ou seja, o alcance das metas pessoalmente definidas para a busca dessa felicidade, pode e deve ser garantida. Esse direito à busca da felicidade, embora não mencionado expressamente no Ordenamento Normativo brasileiro (ao contrário de vários dos países com os quais a nossa cultura se intercambia), representa a dimensão concreta do conteúdo axiológico da cláusula geral de tutela da pessoa humana.

Tal como nos foi ensinado por Kant em sua célebre "Crítica da Razão Prática", a moralidade, característica essencial da natureza humana, reside no reconhecimento racional de que todo ser humano existe como um fim em si mesmo. Portanto, a Ordem Normativa sobre a qual se assenta o Estado Democrático de Direito precisa ter como objetivo final o respeito do homem por si próprio e de todos uns pelos outros. Esse pensamento foi o que inspirou a Constituição da República a consagrar a Dignidade da Pessoa Humana como seu fundamento no inciso III do seu artigo 1º, consolidando o imperativo principiológico segundo o qual o valor intrínseco de cada indivíduo deve ser situado acima de qualquer outro interesse.

Nesse sentido, para o exercício da função promocional do Estado, torna-se imprescindível o reconhecimento dos padrões sociais que são recorrentemente representados no consciente coletivo como os elementos indispensáveis a uma existência humana feliz: i. Patrimônio, ou seja, a participação da pessoa na economia da sua sociedade e as relações de empoderamento e interdependência que surgem de tal participação, e o acesso aos bens de consumo em circulação nessa economia; ii. Saúde, significando a integridade psicofísica do indivíduo; e iii. Família, compreendida como o núcleo de interrelações íntimas do indivíduo com aqueles outros que lhe são mais próximos, biológica, social ou afetivamente.

As revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX marcaram a Idade Moderna com a reivindicação da liberdade do homem para constituir e manter seu próprio patrimônio; o repúdio global contra as atrocidades cometidas nas grandes guerras do século XX despertou o surgimento de uma doutrina geral de proteção da liberdade e da integridade psicofísicas da pessoa. Mas, apesar dos avanços sociais e ideológicos do final do século XX, ainda falta muito para a consolidação de uma proteção integral à intimidade e à liberdade de autodeterminação nas relações privadas do indivíduo.

A doutrina jurídica contemporânea vem constantemente reafirmando a conclusão de que a tutela jurídica da família é uma proteção instrumental, nunca essencialmente formal, àquele núcleo de relações humanas que tem a capacidade de criar um ambiente próprio ao desenvolvimento da personalidade do indivíduo e de efetivação da sua dignidade e dos direitos que dela emanam. E, muito embora tenha passado por modificações tão radicais quanto as que sofreu a própria civilização em seu desenvolvimento, o casamento não somente perdura, como ocupa posição de prestígio inabalável na consciência social. Tanto é assim que o texto da norma constitucional que garante a proteção especial do Estado à família (art. 226) menciona expressamente o casamento em quatro de seus oito parágrafos.

A conclusão natural dessa observação é que o casamento é uma instituição intrínseca à própria ideia de família. Comparando os dados obtidos em nossa pesquisa com os resultados de outra publicada por Bernardo Jablonski em 1991, podemos verificar que as pessoas em cujo planejamento de vida está incluída a formação de família também planejam se casar(JABLONSKI, 1991). Note-se que, passados mais de vinte anos e apesar da drástica transformação - causada pela difusão da internet nesse mesmo período - no modo como o público interage com a mídia de massa, os efeitos da representação social do casamento permanecem idênticos.

Assim, filtrado por essa cultura que identifica quase necessariamente casamento e família, o ideal de felicidade que inclui a formação de uma família inclui, também necessariamente, o casamento. Daí porque não basta a possibilidade de reconhecimento de uma união estável entre duas pessoas do mesmo sexo para que esteja garantida a efetivação da dignidade dessas pessoas: o planejamento familiar, direito garantido constitucionalmente e inquestionavelmente incluído na tutela da pessoa humana, tem como condição, na esmagadora maioria dos casos, o casamento.

Trata-se de uma questão lógica de causa e efeito: se o casamento é a celebração do projeto de vida em comum acordado entre duas pessoas, a família formada sem esse projeto prévio é o resultado de um processo que envolve, quando não o acaso, a superação de uma série de obstáculos aos quais o casamento não está submetido. Nossa pesquisa demonstra que mais de 17% das pessoas que responderam "sim" à pergunta "Você pretende se casar um dia?" responderam "não" à pergunta "Você se imagina passando o resto da vida com a mesma pessoa?", o que dá suporte à conclusão de que o casamento, além de ser a união de duas pessoas, representa para muitos um marco de passagem de estágios de vida, e tem, por isso, uma função essencial na construção da auto estima e no alcance da realização pessoal, ainda que este mesmo indivíduo não tenha a expectativa de que este estado dure indeterminadamente.

A própria norma constitucional determina que o ordenamento infraconstitucional deve facilitar a conversão de união estável em casamento porque, nos parece óbvio, o casal que superou todas as vicissitudes da vida em comum e permaneceu no mesmo status, mantendo a intenção de formar uma família em conjunto, já deu com isso prova de sucesso naquilo do que a celebração do casamento é somente o projeto.

Assim, possibilitar aos pares homoafetivos o reconhecimento da união estável mas negar-lhes o casamento equivale a condenar esses casais a se submeter ao teste da convivência para, somente após a superação deste, garantir-lhes alguns dos direitos civis inerentes à formação de uma família.

Em que pese o reconhecimento constitucional da relevância da união estável e da sua inquestionável legitimidade enquanto família, ainda é evidente a sua posição subalterna com relação ao matrimônio, não somente no que diz respeito aos direitos conferidos aos casais em um e outra, mas principalmente quanto à situação de ambos no meio social: pessoas casadas afirmam a sua união pelo próprio estado civil, festejam seu "chá-de-panela" e "despedida-de-solteiro", escolhem padrinhos e madrinhas de casamento, podem convidar toda a comunidade de que fazem parte para uma festa que representa o ritual de passagem que marca, especialmente para as mulheres na vasta maioria dos casos, a saída definitiva da casa parental, recebem presentes de casamento e ainda têm direito à licença gala para aproveitar seus primeiros dias de vida em comum.

A inadequação social da união estável, por sua vez, pode ser exemplificada pela simples observação do fato de que o Facebook®, a rede social virtual mais difundida no mundo - e cuja relevância na sociedade brasileira já se tornou impossível de ignorar, considerando-se a ultrapassagem da marca de sessenta milhões de usuários no Brasil no ano de 2012 - define suas opções de "status de relacionamento" como "solteiro", "em um relacionamento sério", "noivo", "casado", "em um relacionamento enrolado", "em um relacionamento aberto", "viúvo", "separado" e "divorciado". Às pessoas que vivem maritalmente sem serem casadas resta dizerem-se casadas, mesmo sem sê-lo, ou denegrir a sua união classificando-a como "um relacionamento sério" (que é a mesma classificação normalmente atribuída ao namoro de dois adolescentes em idade escolar).

Apesar de, nas últimas décadas do século XX, o aumento da quantidade de dissoluções de casamentos ter alarmado a sociedade ao ponto de motivar pesquisas acadêmicas das mais diversas áreas do saber, a inconteste - e inalterada - posição de privilégio do matrimônio na sociedade contemporânea, refletida indubitavelmente no Ordenamento Jurídico, demonstra que a aparente crise representa apenas uma fase de adaptação da instituição às pós-modernas expectativas sociais a seu respeito, que decorrem das próprias transformações sociais observadas nesse mesmo período.

O casamento continua sendo sinônimo de celebração, não somente no sentido de estabelecimento de um pacto, mas também no sentido de comemoração. Uma comemoração que, como vimos, é essencialmente o reconhecimento social do atingimento de uma das metas do ideal de felicidade do indivíduo, que é a constituição de uma família. Essa, em apertada síntese, é a razão pela qual o direito ao casamento civil integra, em conjunto com outras garantias, o direito à busca felicidade, à realização pessoal, e que, portanto, representa um valor inerente à garantia constitucional fundamental de proteção à Dignidade da Pessoa Humana.

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Sobre o autor
Daniel Rocha de Oliveira

Advogado, pós-graduado em Direito Privado, especializado em Direito de Família e Direito Homoafetivo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Daniel Rocha. Direito de amar: vulnerabilidade e mitigação da autonomia privada do grupo LGBT pela ausência de garantia da possibilidade de celebração do casamento civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3583, 23 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24248. Acesso em: 24 abr. 2024.

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