3. Análise crítica
O que se viu até agora é que a adoção do critério biopsicossocial é realidade na conduta administrativa e sobejamente na jurisprudência brasileira.
Mas esse proceder não está imune a críticas, certo que ostenta aspectos positivos, negativos e indagações.
Isso porque o principal fundamento no plano social para a mudança paradigmática na interpretação sobre invalidez reside em fatos como a precarização e a falta de segurança nas relações de trabalho, o aumento das doenças ocupacionais, a má qualidade do serviço de saúde pública e, por conseqüência, o aumento na concessão de benefícios por incapacidade. Concorrendo com esses fatores tem-se um aumento da expectativa de vida da população.
Também é possível verificar outras causas, como a oferta de trabalho, a qualificação, a idade, a função anteriormente exercida, bem como qualquer característica peculiar do segurado, seja médica ou circunstância pessoal, que autorize classificar o indivíduo como inapto para o labor, e, consequentemente fundamentar a concessão do benefício, tido aqui com um viés mais social.
É consenso que se pode correlacionar as causas sociais e a progressão na concessão dos benefícios por incapacidade em detrimento das espécies contributivas, tratando especificamente das aposentadorias.
O que importa verificar é se realmente é correta a utilização de um benefício de risco em substituição aos benefícios contributivos para resolução de problemas sociais. Questão essa, a propósito, também debatida nos benefícios rurais não contributivos.
Também é pertinente questionar qual o impacto que essa política de concessão terá no equilíbrio atuarial da previdência, quando tenta harmonizar os rígidos requisitos legais do benefício de invalidez com a realidade da população, em relação à saúde e trabalho.
A análise crítica dessas indagações pende para ambos os lados. Considerando que a aposentadoria por invalidez é benefício que tutela um risco social específico, no caso uma contingência incerta ligada à doença, parece evidente que a prestação não se coaduna com a cobertura de eventos relacionados à idade, grau de instrução, perspectiva de reinserção no mercado de trabalho, etc. Afinal, é justamente por causa do risco imprevisível e da presença do elemento sinistro que a espécie tem carência reduzida de 12 contribuições, não se a exigindo nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa, ou ainda se o segurado é portador de doenças específicas.
É inequívoca a quebra da base de custeio se o cidadão filia-se já em idade avançada e assolado por todas as demais contingências sociais que se analisou. Então, ao contribuir minimamente, fará jus ao longo benefício de aposentação.
O fato é que hoje a lei permite essa situação, mas desde que respeitada a vedação da preexistência da incapacidade. Todavia, adotando-se a interpretação flexibilizadora, mesmo com diagnóstico clínico desfavorável à concessão, poderia ser concedido o benefício com base na incapacidade biopsicossocial.
Lembra-se que é comum o segurado em idade avançada receber alta médica porque tecnicamente não é incapaz para o labor. Afora esse aspecto, o segurado que permaneceu durante quase toda a vida laboral fora do regime geral pode se filiar tardiamente, e embora não tenha perspectiva de atingir a carência da aposentadoria por idade ou tempo de contribuição, facilmente preencherá os requisitos para a aposentadoria por invalidez.
Se toda a população de trabalhadores informais deixar para contribuir tardiamente e o fizer sob o limite máximo do salário-de-contribuição não há dúvidas de que haverá déficit. Ainda que o sistema seja solidário e equitativo na forma de participação no custeio, não significa que não deva ser superavitário, em atenção ao princípio específico do equilíbrio financeiro e atuarial.
Como sempre, vai se utilizar do critério da ponderação de interesses, ou melhor, dos princípios constitucionais da seguridade e da previdência, já que a seletividade impõe ao Estado eleger as maiores carências sociais.
Assim, se é certo que a pluralidade de fatores descritos acima está inequivocamente dificultando a implementação dos requisitos para as aposentadorias por idade e tempo de serviço/contribuição, e a própria manutenção dos trabalhadores no rol de segurados, deve se levar em conta o processo de resgate da cidadania, alcançando uma prestação mínima e universalizando a cobertura para quem necessita.
Por essas razões o fator positivo do critério biopsicossocial de invalidez é a inclusão social. Relevar as condições sociais do segurado é uma forma de flexibilizar a concessão do benefício e mitigar os efeitos nefastos dos problemas já citados, que estão dificultando o cidadão de se manter contribuindo para a Previdência Social de forma contínua e duradoura.
O negativo é a possibilidade de quebra da base de custeio e a estimulação de um movimento de massa tendente a não contribuir para a previdência até que advenha a contingência social, o que frustra a idéia de seguro.
Por outro lado, no âmbito judicial o grande problema é a atual massificação dos litígios, em que a facilidade de acesso à justiça paradoxalmente prejudica o jurisdicionado realmente incapaz. O fato é que hoje é banal ajuizar ação nos juizados especiais federais requerendo o restabelecimento de auxílio-doença ou concessão de aposentadoria por invalidez.
O volume de ações previdenciárias por incapacidade não representa atualmente um indicador de erro no ato administrativo médico-pericial. É possível afirmar sem medo que na maioria dos litígios de restabelecimento de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez a causa de pedir não é embasada em erro médico, mas sim no inconformismo com o mérito administrativo, consubstanciado na conclusão sobre a incapacidade laborativa. A atuação do Poder Judiciário nos casos de lide exclusiva sobre o requisito da incapacidade muitas vezes não é correção de ato administrativo, mas mera instância revisora da perícia.
Ainda não se elaborou estudo específico de impacto sobre a concessão judicial de auxílio-doença. Mas fica autorizada a crítica de que a atuação do Poder Judiciário nos benefícios por incapacidade pode caracterizar invasão de esfera de competência do Poder Executivo.
É questionável na evoluída concepção que se tem hoje de Administração Pública que o resultado do exame-médico pericial possa ser substituído por outro produzido judicialmente, seja por um perito também servidor público (o que não ocorre na Justiça Federal, em que toda a perícia é terceirizada), seja por um médico da confiança do juízo, que ao final será o verdadeiro “juiz” do processo. A invasão da esfera de competência de um poder por outro é nítida se considerarmos o resultado positivo ou negativo do exame da incapacidade como se mérito administrativo fosse.
Em ambos os casos as distorções: se a Justiça possui departamento médico-pericial, o que só ocorre no ramo estadual, a perícia revisora fica a cargo de perito remunerado pela Fazenda Pública, que tende a convergir com o resultado da perícia administrativa. Por outro lado, na Justiça Federal a perícia é toda realizada por peritos credenciados pelo juízo, o que acarreta graves distorções.
É fato que a realização do ato médico-pericial depende de profissional treinado especificamente para esse mister, e nesse aspecto o serviço médico-pericial do INSS está muito evoluído. Afora esse aspecto, não se olvide que a medicina do trabalho tecnicamente está apta para emitir juízo sobre capacidade laborativa em qualquer área de especialidade, sendo falacioso afirmar que somente o médico especialista na doença do segurado tem aptidão para diagnosticar invalidez. É importante salientar que qualquer médico treinado tecnicamente de acordo com os parâmetros da Organização Mundial de Saúde tem aptidão para a análise pericial da incapacidade, mormente no caso da biopsicossocial, em que os critérios médicos serão agregados às demais condições pessoais do segurado.
Portanto, a qualidade do ato médico pericial é problema grave na avaliação da incapacidade biopsicossocial no âmbito judicial39.
Em passado recente, o Judiciário corrigia os erros do processo concessório, na maioria das vezes em processos de averbação de tempo rural e outras controvérsias relativas ao reconhecimento ou contagem de tempo de serviço. Era uma espécie de controle externo da administração.
Atualmente, o risco é que o Judiciário acabe excedendo suas atribuições, ao invés de exercer o necessário papel de correção de erro administrativo nos benefícios por incapacidade, quando presente a ilegalidade. É ingênuo pensar que cada benefício indeferido por perícia contrária, e judicializado, corresponda a erro do ato médico pericial.
O que se formou, notadamente nos Juizados Especiais Federais, é um sistema paralelo de concessão de benefícios por incapacidade.40
E não se trata aqui de crítica ao Poder Judiciário, pois o próprio juiz acaba refém do processo e do laudo pericial, que muitas vezes acaba sendo o único fator determinante na concessão.
Daí a proposição do articulista, fundada na evolução do trato dessas questões no Brasil, no sentido de que no futuro o Judiciário só analise questões de direito nos benefícios por incapacidade, como a qualidade de segurado, carência, preexistência da incapacidade e renda familiar, sob pena de transmudar-se em mero órgão concessor de benefício.
Importante fixar a premissa de que a proposta está fundada na eficiência do Estado e no ceticismo em relação à redução de demandas em benefício por incapacidade, já que tanto o ajuizamento como o recurso são gratuitos e não dependem de assistência de advogado. Assim, a atual intervenção do Poder Judiciário nos benefícios por incapacidade pode ser desvirtuada facilmente para uma aventura judicial em que a tentativa é livre, pois não há ônus.
A única ação administrativa tendente a diminuir a litigiosidade nessas espécies de prestações é o acompanhamento das perícias judiciais por assistente técnico da autarquia, ou seja, a própria perícia administrativa, ao acompanhar as perícias judiciais, faz um exercício de autotutela, em controle interno capaz de uniformizar procedimentos e entendimentos médico-periciais.
O efeito a médio e longo prazo é a redução de ações, na medida em que o INSS começa a vencer a maioria das causas, reprimindo o ajuizamento de demandas aventureiras41.
É o que se observa no enfrentamento e trato cotidiano dessa questão assessorando administrativa e judicialmente o Instituto Nacional do Seguro Social.
Mesmo esse trabalho de atuação conjunta da autarquia e representantes judiciais nos processos não inibe um segundo problema na adoção do critério biopsicossocial pelo Judiciário: a subjetividade, quando abre caminho para o erro e o abuso de decisões judiciais.
Ao se ampliar o plexo de incidência fática do conceito jurídico de invalidez, tido como indeterminado, se permite ao juiz toda a série de interpretações, muitas vezes distorcidas.
A fragilidade nesses casos se revela pela indução do juízo em erro, pouca experiência do magistrado, pressão da comunidade, parcialidade, influência política no ato decisório e até mesmo a ausência de percepção dos impactos que uma interpretação jurídica pode causar na comunidade.
No afã de fazer caridade ou de ser um agente transformador na comunidade em que está inserido, o juiz pode entrar no caminho perigoso da banalização na concessão de benefícios, tornando-se facilmente manipulável pela comunidade jurídica. O in dubio pro misero, nesse caso, se transforma em arbítrio.
Não à toa, MARCELO LEONARDO TAVARES assinala42:
Quanto à perícia, a presunção in dubio pro misero pode convencer o juiz, por exemplo, da continuidade de uma incapacidade, em caso em que o INSS tenha concedido benefício por algumas vezes, pelo mesmo motivo, de maneira intercalada, se o perito judicial, ao responder aos quesitos formulados, afirmar não poder informar, clinicamente, que tenha ocorrido a recuperação do segurado nos períodos de alta.
O que deve ser evitado, sob pena de se utilizar a presunção indevidamente, é fazer alusão a ela como uma forma fácil para não se adotar postura judicial compromissada com a solução justa da lide previdenciária a partir do exame detalhado das provas e da busca da verdade real. O Direito Processual Previdenciário deve proporcionar, com os dois princípios analisados, subsídios para a prolação de uma decisão que pacifique a questão relativa à fruição de um direito social fundamental e que tenha compromisso com o seguro, a fim de proteger adequadamente os beneficiários, sem onerar o grupo e a sociedade de forma indevida.
No mesmo sentido, vale destacar a opinião de MACHADO DA ROCHA e BALTAZAR JUNIOR:
Na ação judicial, não raro divergem o perito do Juízo e o assistente técnico da autarquia. Nesse caso, em princípio, deve prevalecer a conclusão do perito judicial, que está em posição equidistante do interesse das partes, ressalvada a hipótese de estarem as conclusões do assistente técnico melhor fundamentadas ou escudadas em outros elementos de prova, tais como exames laboratoriais.43
Como se vê, a questão envolve dois âmbitos de atuação. O primeiro é administrativo, no sentido de melhorar a qualidade do ato concessório de benefício por incapacidade, com atendimento mais qualificado e humanizado, adotando-se o critério biopsicossocial com base em dados concretos coligidos no ato médico pericial e no bojo do processo administrativo.
O segundo passo é o rígido acompanhamento e controle das ações judiciais, para evitar o desvirtuamento da interpretação ora defendida, e buscando a padronização das interpretações administrativa e jurisprudencial.
A redução de demandas em benefícios por incapacidade vai ser consequência dessas ações.
Superados esses óbices, e tratando de equilíbrio atuarial, é necessário averiguar ainda se a adoção do critério biopsicossocial retira a característica não programável do benefício de aposentadoria por invalidez. Ora, na medida em que o benefício passa a ser substitutivo da aposentadoria por idade, por exemplo, a concessão passa a ser previsível, deixando de ser vinculada a um sinistro causador de incapacidade – doença ou acidente – para se tornar conseqüência da idade e dos fatores exógenos já relatados.
É um risco que está diretamente ligado à necessidade de ampliação da cobertura previdenciária e consequentemente da base de contribuintes.
Também é passível de reflexão a necessidade de revisão administrativa por que passam os benefícios por incapacidade. Nesse sentido, a retomada legislativa de um limite etário para as revisões da aposentadoria por invalidez parece pertinente ao se admitir a adoção da incapacidade biopsicossocial44.
A situação do beneficiário idoso, por exemplo, dificilmente é reversível, sendo questionável a recuperação da capacidade nos termos do art. 47 da lei 8.213/91, para suspender aposentadoria por invalidez de beneficiário em idade incompatível com a reinserção no mercado de trabalho.
Mais uma vez MARTINEZ é lúcido ao tratar do retorno ao trabalho nessas condições:
O mais correto, porém, é o apreciador da situação louvar-se no bom senso e verificar se a remuneração auferida é ou não expressiva, a idade do segurado, suas condições de saúde se a volta se deu na mesma atividade ou função e o quanto os salários representam comparados com a prestação mensal45.
Por outro lado, em relação aos segurados mais jovens o dado crítico é a possibilidade de deturpação do benefício para a função de seguro-desemprego, problema já enfrentado em comunidades com variação sazonal de oferta de trabalho.
Como se vê, não é tarefa fácil equacionar as questões previdenciárias, mas não há alternativa. O futuro da previdência reside justamente na capacidade de mutação do sistema para que se adapte à realidade.
Por isso é importante deixar claro que a adoção do critério biopsicossocial de incapacidade é dinâmica. A interpretação tem que ser maleável, adaptando-se à realidade socioeconômica e a evolução dos indicadores relacionados à saúde do trabalhador, níveis de desemprego, acesso ao Sistema Único de Saúde – SUS, dentre outros.