3. SUGESTÕES DE NOVOS CRITÉRIOS PARA A OUTORGA DO BENEFÍCIO
Nesse ponto da presente monografia, é possível perceber alguns aspectos marcantes na análise do instituto da justiça gratuita:
a) por mais que a presunção seja um meio de prova válido[135] (artigo 212, IV, do Código Civil), a mera afirmação de pobreza que a Lei de assistência judiciária gratuita erige como suficiente para a comprovação da subsunção ao instituto, como se viu, é plenamente discutível do ponto de vista prático, pois tendente a resultar i) em aventuras jurídicas, o que, por certo, aumenta a morosidade[136] do Judiciário, ou, ii) diante da ausência de parâmetros claros na jurisprudência, em decisões injustas de indeferimento do benefício e
b) a “inversão do ônus da prova” que cria a citada Lei imputa ao impugnante da concessão da justiça gratuita tarefa árdua de provar fato negativo (que o pretenso beneficiário não carece de recursos financeiros para suportar as custas, as despesas e os honorários de advogado de uma demanda judicial), hipótese em que se vê em desvantagem perante o beneficiário, este sim, com todos os meios necessários à prova de fazer jus ou não ao benefício da gratuidade.
Quanto ao item “a” acima, útil observar o perfil do Poder Judiciário traçado pela autora Maria Tereza Sadek que tem especial vinculação à discussão em tela: a facilitação legitimada pela atual Lei de assistência judiciária em vez de trazer vantagens ao pleno acesso à Justiça traz, ao invés, a abertura do Judiciário a demandas temerárias acobertadas pela lide “sem risco” que a gratuidade processual permite. Assim, a autora, em referência ao Judiciário, questiona:
Trata-se, de fato, de um serviço público no sentido lato do termo, ou de um serviço voltado para um tipo de cliente muito especial – ou seja, aquele que sabe tirar vantagens quer da litigiosidade, quer das características atuais do Judiciário? (...) a excessiva facilidade para um certo tipo de litigante ou o estímulo à litigiosidade podem transformar a Justiça em uma Justiça não apenas seletiva, mas sobretudo inchada. Isto é, repleta de demandas que pouco têm a ver com a garantia de direitos – esta sim uma condição indispensável ao Estado Democrático de Direito e às liberdades individuais.[137]
Em consonância com o perfil ora traçado, Arthur Mendes Lobo, ao delimitar a importância das taxas judiciárias para o financiamento e para a evolução do Poder Judiciário e, aliás, já indicando uma sugestão de alteração na forma de concessão do benefício da justiça gratuita, afirma que:
(...) na prática, a arrecadação das taxas judiciárias tem sido alvo de uma política arcaica, muitas vezes utilizada de maneira abusiva pelos jurisdicionados. Estamos falando da assistência judiciária gratuita. (...) a isenção da taxa judiciária pela assistência judiciária gratuita há de obedecer aos princípios da proporcionalidade, da isonomia material e da verdade real, sob pena de abuso de direito e diminuição da receita do Judiciário, bem como de consequente inviabilização dos necessários investimentos supramencionados.[138]
Diante dessa perspectiva, necessária a reflexão da fixação de novos parâmetros para a operacionalização da concessão do benefício da gratuidade processual. Seguem as sugestões que a presente monografia partilha como relevantes à melhoria do instituto em tela.
3.1. Necessidade de prova pré-constituída, comprovação ao término do processo[139] e união dessas sugestões para o surgimento de uma terceira
É importante, desde logo, que se reconheça[140] o beneficiário da justiça gratuita, ou seja, na postulação ao benefício é necessário que se trace, mesmo que brevemente, um perfil do pretenso beneficiário (diante de suas próprias declarações detalhadas nesse sentido): se é pessoa humilde que realmente é hipossuficiente financeiro; se é indivíduo de classe média ou até de posses, mas atualmente não tem liquidez financeira que possa fazer frente ao custo de um processo, etc..
A forma atual desse reconhecimento é baseada na análise de elementos, como se viu acima, advindos com a petição inicial (profissão, endereço, natureza da demanda, etc.). Essa forma, embora possa evidenciar, de pronto, profunda suspeita de merecimento ou não do benefício do instituto, não traz a certeza que a sua concessão faz jus, mas, como a Lei da justiça gratuita admite, mera presunção.
Assim, de forma a fortalecer a certeza formal e material da concessão do instituto, a prova pré-constituída, independentemente da existência ou não de suspeita quanto ao merecimento à gratuidade, traz a facilitação e a transparência necessárias à outorga desse direito[141] que, além da sua função de instrumento fundamental de acesso à Justiça, onera o Estado e, conseqüentemente, todos os seus cidadãos[142] que, indiretamente, custeiam o instituto da justiça gratuita, seja aqueles que se servem do Poder Judiciário, seja aqueles que não.
Nesse sentido, Goron disserta sobre a ideia da exigência de prova pré-constituída para a concessão do instituto:
A exigência de comprovação prima facie da necessidade, uma que seja facilmente acessível à parte – como, por exemplo, a prova da inclusão do postulante nos limites anuais de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física – poderia proporcionar um controle preliminar hábil e o descarte de pedidos manifestamente improcedentes. (...) A iniciativa judicial seria reforçada à luz de indícios presentes nos autos (profissão, natureza do direito pleiteado), reclamando-se, nesse caso, evidências adicionais.[143]
Observe-se que, de nada adiantaria fixar a necessidade da apresentação de prova pré-constituída sem, em rol, sugere-se, exemplificativo, admitir quais seriam os possíveis meios dessa prova.
Dessa forma, além dos citados pelo autor mencionado, indica-se que, como, aliás, trazido na decisão acima do Foro Regional de Itaquera, seja informado pelo postulante ao benefício, com detalhes (fontes de rendimentos, dívidas) a sua atual situação financeira (liquidez), se possui bens (imóveis, veículos), se tem dependentes (filhos, cônjuge dependente) e quaisquer outros dados[144] que, com transparência, indiquem a subsunção ao ditame legal de que faz jus à assistência judiciária: “... todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família”.
Ainda, como traz Goron na última citação acima, relevante que se reflita no tempo e grau de complexidade da prova exigida.
Destarte, em consonância com Goron, Augusto Tavares Rosa Marcacini comenta a seguir o nível de complexidade da prova de necessitado que se exige para a obtenção da assistência jurídica (Defensoria Pública, advogados nomeados pelo Juízo, etc.) que, como se viu, é instituto diverso da assistência judiciária (ressalva-se que a reflexão desse autor não deixa de ser útil a presente monografia, uma vez que, embora diversos, esses institutos caminham de forma paralela e complementar):
Não se pode, porém, exigir do carente prova muito minuciosa da condição de pobre, a ponto de dificultar por demais o acesso ao serviço. Se uma exaustiva prova da condição de pobreza for exigida, muito poucos serão atendidos em tempo hábil. O excesso de rigores ao apurar a condição de pobreza afasta-se da simplicidade que deve ter o sistema, para bem funcionar, atendendo prontamente aos seus fins.[145]
De tal modo, percebe-se que tanto no processo de concessão da assistência jurídica (prestação de atendimento jurídico aos necessitados pelo Estado), quanto no de gratuidade processual (comprovação perante o Juízo da carência de recursos), não pode se exigir provas desmedidas que estejam fora do alcance do beneficiário, seja por sua complexidade, seja pela demora a sua consecução.
Aliás, cabe sopesar que a Defensoria Pública pode servir como importante parâmetro prático de estudo de quais seriam os melhores elementos para a identificação do pleiteante ao direito da justiça gratuita. Como visto, esse essencial órgão de apoio postulatório aos desfavorecidos já detém meios de julgamento para delimitar se uma pessoa é ou não hipossuficiente financeira[146]. Esses critérios (com a condição de que não se imponham ao beneficiário exagerada ou demorada carga probatória, como visto) serviriam, como se defende nessa monografia, como informações preliminares (prova pré-constituída) do pretendente ao benefício, de modo a assegurar maior segurança em sua concessão e evitando-se qualquer outorga injusta das benesses da justiça gratuita a quem a ela não faça jus.
Esses elementos de identificação são também seguidos pelos advogados conveniados pela Seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil que prestam assistência judiciária em Municípios paulistas não atendidos pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo[147].
Maurício Januzzi Santos explica que esses critérios (como, por exemplo, renda de até três salários mínimos e número de pessoas sustentadas pelo pretendente a beneficiário – renda familiar) são importantes para verificar se o indivíduo é realmente hipossuficiente.[148]
Nesse entendimento, apresentando uma segunda hipótese de alteração da atual forma de concessão do benefício e, aliás, apontando falha ou omissão na forma do Projeto de Lei nº 8.046/2010 (Novo Código de Processo Civil), quanto à assistência judiciária gratuita (Seção IV, art. 99[149]), Arthur Mendes Lobo aduz que “a faculdade de o juiz determinar ou não a comprovação favorece o casuísmo e a insegurança jurídica, atrasa o andamento do processo e dará ensejo a inúmeros recursos”[150], já se a mera declaração (verdade formal) fosse aceita como um indício suficiente para uma decisão de concessão do benefício de caráter liminar e, na sentença que condenasse o beneficiário, fosse-lhe solicitada a comprovação efetiva (verdade real) da condição de beneficiário, existiria, dessa forma, um processo mais seguro e justo de concessão da justiça gratuita[151].
A presente sugestão do autor tida, aliás, pelo próprio autor, como sugestão de emenda ao Projeto do Novo Código de Processo Civil, no que concerne à gratuidade processual[152], com o devido respeito, deve-se, acredita-se, ser somada à primeira sugestão acima mencionada (prova pré-constituída), para o surgimento, ainda, de uma terceira sugestão de alteração da atual procedimentalidade da concessão do instituto do benefício da justiça gratuita.
Dessa forma, sugere-se que, quando o magistrado, diante da prova pré-constituída de beneficiário, não se convencer integralmente desse status, seja sim erigida uma presunção iuris tantum (como é hoje) e defira-se o benefício, determinando-se sua comprovação definitiva na prolação da sentença. Ou seja, prima facie se exigiria uma prova objetiva voltada à verdade real da condição de beneficiário, porém, se, seja qual for o justo motivo, não se convença o juiz dessa condição, como aplicação analógica do princípio in dubio pro reo[153], o magistrado deferiria o benefício e, como na segunda sugestão, acima, determinaria a comprovação definitiva da condição de necessitado na prolação da sentença[154], desde que condenado o beneficiário.
Entende-se que, assim, preservando-se a celeridade processual (uma vez evitada a dilação probatória já no início do processo), seria afastada a discussão da hipótese do beneficiário vencedor da ação ter se locupletado ilicitamente do deslinde da demanda, pois, mesmo que, pela sucumbência da parte contrária, não tenha que arcar, de qualquer forma com as custas, despesas processuais e honorários de sucumbência, litigou com a benesse da justiça gratuita, sem ter que adiantar despesas, sejam elas processuais ou extraprocessuais.
Ato contínuo, de forma conjunta, é relevante refletir sobre o papel da parte contrária na eventual impugnação à concessão do benefício da justiça gratuita.
3.2. Manutenção da impugnação à justiça gratuita
A impugnação à justiça gratuita é, sem dúvida, essencial instrumento da parte contrária para a justa concessão do benefício.
Em um primeiro momento, parece não haver interesse na impugnação da parte contrária[155], uma vez que o maior onerado pela concessão da justiça gratuita é o Estado, porém há, sim, o interesse da outra parte, pois as custas têm, como visto, um papel inibidor de lides temerárias e há o interesse financeiro do advogado da parte contrária, uma vez que, saído seu cliente vencedor, com o deferimento da gratuidade processual à parte ex adversa, a exigência de honorários ficará suspensa, como também já visto.
Aliás, pode-se pensar, ainda, em uma terceira função: a de se evitar a ocorrência de uma clara injustiça, manifestada na concessão de um direito a quem não o faz jus. Embora, em princípio, essa injustiça não afetasse diretamente a parte contrária, mas sim o Estado, indiretamente afeta sim a parte contrária, pois cidadã como todos, sofre com a onerosidade desnecessária e injusta dos cofres públicos.
Assim, sua função é relevante e esse instrumento processual, na análise crítica da legislação em vigor sobre o instituto em questão, deve ser mantido como é hoje.
Porém, como ensina Goron:
A possibilidade de inversão do ônus da prova, transferindo à parte adversa a prova da necessidade econômica do beneficiário, não se afigura, por si só, incompatível com o molde constitucional do direito à gratuidade. Essencial, todavia, é que tal previsão não afaste a necessidade de um controle prima facie das condições do postulante, nem seja acompanhada de interpretações que limitem as modalidades de prova e imponham à parte que impugna a gratuidade um ônus probatório especialmente intenso, na esteira da jurisprudência atual sobre a matéria.[156]
Dessa forma, seguindo a crítica que se fez em outros momentos dessa monografia, a impugnação à justiça gratuita é, de um lado, fundamental defesa dos interesses da parte contrária e de seu advogado, porém, da forma como operacionalizada atualmente, ou seja, imputando nefasto ônus probatório ao impugnante de provar fato negativo (de que o impugnado não faz jus ao benefício), não parece compactuar com seus inerentes objetivos: o de evitar a litigância temerária e injusta de parte que o usa o benefício sem fazer jus a ele e o de resguardar a remuneração legal (honorários advocatícios) a que se tem direito o advogado da parte contrária, quando vencedora.
Conclui-se então, que o presente instituto posto à disposição daquele que pretende impugnar a concessão da justiça gratuita deve ser mantido juntamente com uma nova interpretação do direito da gratuidade, no sentido de exigir do beneficiário prova pré-constituída de que faz jus ao benefício, melhor forma de afastar os abusos e falhas advindas da Lei nº 1.060 de 5 de fevereiro de 1950 (Lei da assistência judiciária gratuita), como objetiva demonstrar a presente monografia.
3.3. Mudança da legislação e/ou fixação de parâmetros jurisprudenciais
Delimitados os principais pontos controvertidos e apontadas sugestões de alteração da atual forma de concessão da gratuidade processual, importa lembrar os mecanismos possíveis dessa alteração.
Destarte, a alteração da Lei nº 1.060/50 ou, até mesmo, a promulgação de uma nova Lei[157] sobre a matéria, parece a primeira e a mais acertada opção diante de sua obsolescência, conforme as críticas tecidas. Porém, como afirma Lívio Goellner Goron, há ainda, dada a devida importância, a necessidade de uma hermenêutica dos Tribunais “estruturada em torno de critérios objetivos e racionais, reclamando um maior investimento procedimental e argumentativo no seu exame”.[158]
Assim, os Tribunais pátrios, na ausência de critérios legais, deveriam uniformizar a jurisprudência, fixando critérios objetivos para a segura concessão do direito à gratuidade, como foi exposto nessa monografia.
Ainda sobre o papel dos Tribunais, Augusto Tavares Rosa Marcacini enfatiza que “somente na jurisprudência encontramos o dinamismo, a variedade de situações e a proximidade com a realidade que o tema exige”.[159]
Nesse sentido, é vital que as sugestões apresentadas, vistas como possíveis caminhos a ser seguidos pelo magistrado, “em lugar de meramente discricionárias, sejam convertidas em procedimentos judiciais que estejam fixados de forma adequada pela jurisprudência”.[160]
Portanto, seja por uma alteração legislativa (alteração da Lei de assistência judiciária gratuita ou mesmo a promulgação de uma nova lei sobre a matéria, revogando a atual) ou por uma maior atenção/atuação sobre o tema pelas Cortes de Justiça brasileira, é imperioso que reflita e, efetivamente, seja alterado o atual quadro de concessão do direito à gratuidade, já há muito ultrapassado, como esta monografia se propôs demonstrar.