8 Uso dos bens públicos
“O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem”, nos termos do art. 103 do Código Civil (BRASIL, 2002).
De acordo com o que foi estabelecido nas premissas metodológicas, deve-se partir do texto legal para construir o sistema normativo. Nos casos em que a lei não definir o instituto, será necessário, em primeiro lugar, buscar essa definição na legislação do mesmo ente político. Não sendo suprida a dúvida, então caberá socorrer-se da doutrina para captar o sentido corrente do termo utilizado pelo legislador.
A propósito da doutrina, três institutos são mais frequentemente citados, mas não são os únicos, quando se trata do uso privativo de bens públicos: a autorização, a permissão e a concessão de uso.
Para JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (1975, p.61), a permissão seria o “ato unilateral, gratuito ou remunerado, discricionário, mediante o qual o Estado faculta ao particular a utilização privativa de bem público, superficial ou profunda, a título precário, revogável a qualquer tempo a critério da Administração”.
Já a “concessão de uso é ato administrativo bilateral, tendo como fundamento o interesse público. É figura jurídica autônoma, que se caracteriza pela ocupação permanente, e ‘com empresa’, do domínio público, não precariamente.” (CRETELLA JÚNIOR, 1975, p.102).
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (2011, passim) trata do uso bens segundo sua classificação estabelecida pelo art. 89 do Código Civil (BRASIL, 2002).
Para ele, o bem de uso comum do povo permite o uso livre, desde que conforme os fins normais a que a ele se destina. Contudo, eventualmente, poderá ocorrer utilização para fins especiais, “por implicarem sobrecarga do bem, transtorno ou impedimento para a concorrente e igualitária utilização de terceiros ou ainda por demandarem até mesmo o desfrute de uma exclusividade no uso sobre parte do bem” (MELLO, 2011, p.934).
Em casos tais, ora seria necessária prévia ciência e manifestação da Administração, mediante autorização ou permissão de uso, ora apenas cientificação prévia, para que, se for o caso, vete o uso pretendido (MELLO, 2011, 934).
No caso de bem de uso comum, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO cita a autorização de uso como “o ato unilateral pelo qual a autoridade administrativa faculta o uso de bem público para utilização episódica de curta duração.” (MELLO, 2011, p; 935).
Também faz menção da licença, “quando a utilização para quem a solicite, for razoavelmente qualificável como indispensável” (2011, p. 935).
Assim, da premissa de que se trata de bem de uso comum do povo, uso esse em princípio livre, não decorre a possibilidade de fazer com ele o que bem entender o usuário. Por conseguinte, a título ilustrativo, é questionável a frequente utilização da Avenida Paulista na cidade de São Paulo para passeatas e manifestações, mesmo diante do que preceitua o art. 5º, XVI, da Constituição (BRASIL, 1988)[14], que garante o direito de reunião.
Nessa linha, assevera CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (2011, p.935):
Não seria de supor que a Constituição estivesse, com tal dispositivo, facultando que as distintas facções políticas, mais as inúmeras entidades sindicais ou agrupamentos de trabalhadores, mais quaisquer contingentes de pessoas interessadas na propagação de ideias (religiosas, culturais, humanitárias, sociais etc.), pudessem promover, onde melhor lhes parecesse e com a frequência que lhes apetecesse, concentrações capazes de implicar a interrupção de vias de grande circulação, como, verbi gratia, em São Paulo, a av. Paulista, a av. São João, av. Ipiranga ou, no Rio de Janeiro, av. Rio Branco ou outras da mesma importância. Fosse isso possível, artérias como as aludidas estariam com alarmante regularidade subtraídas à sua destinação principal, com os consequentes transtornos sérios para toda a coletividade, assim agravada para atender aos interesses, ainda que respeitáveis, de uma simples fração dela. Não se pode admitir que o interesse do todo seja sobrepujado pelo interesse de alguma ou algumas de suas partes.
O uso normal da via é para circulação de veículos e pedestres e não para reunião.A privação do direito de uso normal do povo para o uso especial de alguns pode ser encarada, sob o ponto de vista administrativo, como uma desafetação temporária sem amparo legal e, sob o ponto de vista civil, como uma turbação da posse.
No mesmo sentido, DIÓGENES GASPARINI (2008, p.868) lembra que “o uso anormal deve ser prévia e detalhadamente informado à autoridade competente (art. 5º, XVI, da CF)” e que “esse direito não é absoluto, pois deve ser avaliado ante o direito de outras pessoas igualmente garantido pela Constituição Federal, conforme decidiu o TJSP (Boletim da AASP, n. 2.299, p. 2522)”.
Nos bens de uso especial, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (2011, p. 937) elucida que, em regra, eles somente são utilizados para os fins relacionados ao serviço público nele prestado. Mas não afasta a possibilidade de particulares obterem permissão ou concessão de uso de espaços. Aqui, conceitua concessão de uso como “contrato administrativo pelo qual, como o nome já o indica, a Administração trespassa a alguém o uso de um bem público para uma finalidade específica. Se o Poder Público, instado por conveniências administrativas, pretender rescindi-la antes do termo estipulado, terá de indenizar o concessionário”.
Relativamente aos bens dominicais, menciona que poderiam ser utilizados em caráter exclusivo por particulares mediante locação, arrendamento, comodato, permissão de uso, concessão de uso, concessão de direito real de uso, concessão de direito especial, autorização de uso e enfiteuse (MELLO, 2011, p. 937).
HELY LOPES MEIRELLES (2008, p. 533) aponta que a autorização de uso “é o ato unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração consente a prática de determinada atividade individual incidente sobre bem público.”
Para ele, a permissão “é o ato negocial, unilateral, discricionário e precário através do qual a Administração faculta ao particular a utilização individual de determinado bem público” (MEIRELLES, 2008, p. 533). Embora semelhante o conceito ao de autorização, referido autor assere que na permissão é necessário que haja interesse coletivo envolvido (2008, p. 534).
A concessão de uso “é o contrato administrativo pelo qual o Poder Público atribui a utilização exclusiva de um bem de seu domínio a particular, para que o explore segundo sua destinação específica. O que caracteriza a concessão de uso e a distingue dos demais institutos assemelhados – autorização e permissão de uso – é o caráter contratual e estável da outorga do uso do bem público ao particular, para que o utilize com exclusividade e nas condições convencionadas com a Administração.” (MEIRELLES, 2008, p. 535) No mesmo sentido JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO (2008, p. 1082).
O autor também tratou da cessão de uso, que seria “a transferência gratuita da posse de um bem público de uma entidade ou órgão para outro, a fim de que o cessionário o utilize nas condições estabelecidas no respectivo termo, por tempo certo ou indeterminado. É ato de colaboração entre repartições públicas, em que aquela que tem bens desnecessários aos seus serviços cede o uso a outra que deles está precisando.” (MEIRELLES, 2008. pp.534/535).
A distinção entre autorização de uso e permissão de uso estaria no fato de a primeira destinar-se a atender interesse predominante do usuário, enquanto que na permissão haveria maior incidência de interesse público (CARVALHO FILHO, 2008, pp. 1079/1080)
Como foi dito, toda essa base doutrinária somente terá valia depois de analisado o ordenamento, já que é o sistema normativo de cada ente que prescreve a forma de uso de cada bem, bem como o nome do instrumento próprio para tanto.
Nessa linha, tomando, por exemplo, os bens da União, o Decreto-lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946 (BRASIL, 1946), dispõe em seu art. 64 que “os bens imóveis da União não utilizados em serviço público poderão, qualquer que seja a sua natureza, ser alugados, aforados ou cedidos.” Como se vê, não consta aqui nem autorização, nem permissão e nem concessão.
Já no art. 18 da Lei n.º 9.636, de 15 de maio de 1998 (BRASIL, 1998), verifica-se que locação, o aforamento e a cessão seriam considerados como regimes de cessão[15].
Note-se que, nos termos do art. 39 da Lei nº 9.636, de 1998 (BRASIL, 1998), “as disposições previstas no art. 30 aplicam-se, no que couber, às entidades da Administração Pública Federal indireta, inclusive às autarquias e fundações públicas e às sociedades sob controle direto ou indireto da União.” O citado art. 30[16] trata de permuta, de modo que, no mais, os dispositivos dessa lei não seriam aplicáveis, por exemplo, às autarquias.
Isso porque, de acordo com o art. 5º, I, do Decreto-lei nº 200, de 1967 (BRASIL, 1967), a autarquia é “o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.”
Com isso, em regra, para cumprir suas finalidades, a autarquia é que define, por decorrência de sua autonomia, a melhor forma de usar seus bens, já que eles são meros instrumentos para cumprir seu papel.
Sendo a lei quem outorga a autonomia, é ela quem a excepciona. Verifica-se exceção à autonomia, por exemplo, para os casos de alienação de bens imóveis, em que é exigida prévia autorização legislativa, salvo se esses bens houverem ingressado no patrimônio público em decorrência de dação em pagamento[17].
Também se verifica restrição à liberdade das autarquias na exigência de prévia licitação para outorgar o uso de espaço de seus prédios a particulares, como, por exemplo, para instalação de cantina ou restaurante para os servidores. Essa restrição decorre do princípio da impessoalidade, bem como do princípio da isonomia. Havendo múltiplos possíveis interessados em instalar o comércio no local, o certame licitatório é o instrumento adequado à garantir a observância dos referidos princípios.
Tomando o Banco Central do Brasil, por exemplo, as normas para o uso de seus bens estão em seu Regimento Interno[18]. Nele, encontram-se disposições sobre o uso de seus bens[19], todavia sem definir as formas para tanto.
Daí ser necessário recorrer, em primeiro lugar, às demais normas federais e, mantendo-se a omissão, buscar subsídios na doutrina.
9 Retirada do bem da esfera jurídica do ente público
Viu-se como os bens passam a ser públicos. É necessário, agora, verificar como se desfaz esse processo.
Tratando-se de direito de propriedade, que é o mais comum, ele se desfaz nas hipóteses do art. 1275 do Código Civil (BRASIL, 2002), quais sejam, a alienação, a renúncia, o abandono, o perecimento da coisa e a desapropriação.
Entre essas, a alienação é a forma mais comum.
Aponta-se a necessidade de lei como peculiaridade na alienação dos bens públicos.
Mas, sob determinado ponto de vista, como visto a propósito da aquisição, essa necessidade não seria uma peculiaridade. Com efeito, o particular, quando quer comprar, necessita manifestar sua vontade. Os entes públicos, da mesma forma, necessitam manifestar a vontade de adquirir e essa vontade, como dito, é expressa na lei.
Fosse uma sociedade empresária, a vontade seria manifestada em assembleia dos sócios.
Enfim, toda vez que o bem é titulado por mais de uma pessoa, o que há de especial é a forma de considerar a vontade coletiva, havendo casos em que se exige unanimidade, outros em que se exige maioria simples ou qualificada.
Conforme o número de titulares aumenta, vão surgindo inconvenientes que ensejam a busca de solução para gerenciar a manifestação e atendimento da vontade dos membros do grupo.
Mas, na prática, a partir do momento em que determinado bem tem mais de um titular, não importa mais qual o número de titulares para efeito de classificação. Tanto é assim que, traçando um paralelo com as formas de governo, após ARISTÓTELES ter efetuado a classificação delas segundo o número de governantes em três tipos (um, poucos e muitos), MAQUIAVEL distinguiu apenas em dois (um e muitos) (DALLARI, 1995, p.189).
Ainda a título de notas gerais a respeito dos bens públicos, vale lembrar que o Brasil é uma república, nos termos do art. 1º da Constituição (BRASIL, 1988).
Daí decorre que os bens dos entes públicos, em última análise, a todos os brasileiros pertencem, de modo que só se pode fazer com eles o que o povo permitir. E o que pode ou não ser feito é dito pelos representantes do povo ou por ele diretamente, em caráter excepcional, nos termos do parágrafo único desse mesmo art. 1º.
No caso dos bens das autarquias, como dito, embora, por sua autonomia, elas pudessem aliená-los livremente, respeitando, contudo, os princípios da administração pública, a Lei nº. 8.666, de 1993, exigiu, entre outras coisas, autorização legislativa para os imóveis e, para todos, em regra, licitação e avaliação prévia, com algumas exceções.
A propósito, a lição de HELY LOPES MEIRELLES (2008, p.351):
Os bens e rendas das autarquias são considerados patrimônio público, mas com destinação especial e administração própria da entidade a que foram incorporados, para realização dos objetivos legais e estatutários. Daí porque podem ser utilizados, onerados e alienados independentemente de autorização legislativa especial, salvo para os bens imóveis (Lei 8.666/93, art. 17, I), porque essa autorização está implícita na lei que a criou e outorgou-lhe os serviços com os consequentes poderes para bem executá-los. Por essa razão, os atos lesivos ao patrimônio autárquico são passíveis de anulação por ação popular (Lei 4.717/65, art. 1º). Por idêntico motivo, extinguindo-se a autarquia, todo o seu patrimônio reincorpora-se no da entidade estatal que a criou.
Enfim, além das exigências gerais da Lei nº 8.666, de 1993, o ordenamento de cada ente público que estabelecerá eventuais outros requisitos para alienação.
DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO (2001, p.335) afirma que somente o Chefe do Poder Executivo teria autonomia para decidir pela alienação de bens públicos, e cita o art. 99 da Constituição para demonstrar que o Poder Judiciário não teria autonomia patrimonial, já que esse dispositivo apenas mencionaria autonomia administrativa e financeira. Mas se qualquer alienação, por exemplo, de imóvel, depende de aprovação do Legislativo, ainda que sejam bens do Executivo, onde estaria a autonomia? No máximo se poderia dizer que haveria direito de iniciativa.
A propósito da renúncia, ela exigirá os mesmos requisitos que a alienação. Exemplo comum é a renúncia de receita, disciplinada na Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.
É difícil imaginar o cabimento de abandono de bem público. De qualquer forma, tendo em vista que, nos termos do art. 1276 do Código Civil (BRASIL, 2002), o bem abandonado passa à propriedade do Município, Distrito Federal ou União, ele não deixará de ser público.
O perecimento da coisa também pode ser citado como hipótese de extinção da propriedade, por motivos óbvios. Imagine-se, por exemplo, um veículo público que é incendiado e totalmente destruído.
A respeito da desapropriação, não se deve olvidar que o ente público também pode ser expropriado por ente político superior, isto é, “os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa” nos termos do art. 1º, §2º, do Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1945 (BRASIL, 1945).