Sumário: Introdução. 1.Princípio da Igualdade. 2. Princípio da Igualdade Tributária. 3. Princípios Jurídicos e Argumentação. 3.1. Princípios Jurídicos. 3.2. Argumentação Jurídica na Decisão Judicial. 4. Análises de Casos da Jurisprudência. 4.1. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 3.334/RN. 4.2. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 1.655-5/AP. 4.3. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 1.643-1/UF. 5. Conclusões. 6. Referências Bibliográficas
Introdução
Esse trabalho tem como escopo analisar como o Supremo Tribunal Federal tem utilizado o princípio da igualdade tributária como fundamento de julgamento em suas decisões, especialmente em sede de controle direto de constitucionalidade.
Sendo assim, no primeiro capítulo trataremos do princípio da igualdade em sua forma mais genérica, prevista no caput do art. 5º da Constituição Federal, bem como faremos considerações acerca de como a doutrina aborda o referido princípio.
No capítulo segundo, trataremos do princípio da igualdade tributária, previsto no art. 150, II da Constituição Federal, também fazendo considerações de como a doutrina do Direito Tributário aborda o tema.
No capítulo terceiro faremos considerações acerca da importância e utilidade dos princípios no direito, especialmente relacionando esse tema com os estudos de argumentação jurídica aplicados na decisão judicial.
Quanto a isso, diante da proposta de estrutura argumentativa de Stephen E. Toulmin, partiremos para a análise de alguns casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal.
1. Princípio da Igualdade
O caput do art. 5º da Constituição Federal consagra o princípio da igualdade, dispondo que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Tal princípio é tão abrangente que dele decorrem vários outros previstos nos dispositivos constitucionais. Por exemplo, podemos citar os seguintes:
(i) Art. 7º, XXX, que veda a diferenciação salarial por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;
(ii) Art. 5º, XLII, que veda o racismo; e
(iii) Art. 150, II, que prevê o princípio da isonomia tributária.
Cabe destacar que, apesar de o art. 5º da Constituição Federal literalmente falar em igualdade perante a lei, é pacífico o entendimento de que o princípio da igualdade obriga tanto o legislador, quanto o aplicador da lei.
Daí que surge a clássica diferenciação entre igualdade na lei e igualdade perante a lei.
Nesse sentido, destacamos as palavras de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, que nos traz as seguintes lições:
O preceito magno da igualdade, como tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas1.
Importante ressaltar que outros autores, como ALEXANDRE DE MORAES2, por exemplo, entendem haver uma tríplice finalidade limitadora do princípio da igualdade:
(i) limitação ao legislador;
(ii) ao intérprete/autoridade pública e (iii) ao particular.
Todavia, apesar de relevante o estudo da aplicação do princípio da igualdade entre particulares, essa perspectiva de análise não nos interessa para o presente trabalho.
Isso porque, diante da delimitação do objeto que pretendemos nos aprofundar, deliberadamente não trataremos da isonomia sob essa perspectiva, tendo em vista que o direito tributário não se ocupa das relações entre particulares, mas tão somente da relação entre Estado e Contribuinte.
Contudo, é importante fazer o registro que a doutrina vem desenvolvendo estudos acerca da aplicação de princípios e direitos fundamentais nas relações particulares, sobretudo pela corrente doutrinária denominada de Neoconstitucionalista.
Assim, firmemos a premissa de que no presente trabalho nos atentaremos apenas à diferença entre:
(i) igualdade na lei (dirigida ao legislador), e
(ii) igualdade perante a lei (dirigida ao aplicador).
Quanto a esses aspectos, são relevantes as lições de J.J. GOMES CANOTILHO3, para quem a igualdade na lei (dirigida ao legislador) deve se atentar para três postulados:
Princípio da universalidade ou princípio da justiça pessoal;
Exigência de igualdade material através da lei; e
Igualdade justa (pressupõe um juízo e um critério de valoração).
Para o ilustre autor português, o princípio da universalidade (i) seria o que a doutrina costuma chamar de igualdade formal, ou seja, devem-se prever resultados jurídicos iguais para todos os indivíduos com as mesmas características.
Quanto a isso, ressaltamos que tal postulado é de suma importância. No entanto, cabe informar que a desconsideração dos demais postulados, e o exagerado enfoque na igualdade formal fez com que prevalecesse nos Estados Unidos da América a denominada teoria do Separate but Equal, que consistia na separação de brancos e negros, assegurando-se uma prestação de serviços idênticos4.
Todavia, atualmente o princípio da igualdade ultrapassa esse aspecto formal, que foi consagrada pelo liberalismo clássico, atingindo o patamar da igualdade material, que por muitas vezes se confunde com o próprio princípio da Justiça.
Tanto é assim, que ALFREDO AUGUSTO BECKER5, com todo o brilhantismo que lhe é peculiar, sobretudo na forma eloquente como maneja as palavras, cunhou expressões que esclarecem muito bem o sentido de uma compreensão do princípio da igualdade para além da igualdade formal.
Para o ilustre jurista gaúcho, o princípio da igualdade deve ser visto de forma geométrica (proporcional) e não de forma aritmética (quantidade).
Assim, não é exagero dizer que diante de um Estado Democrático de Direito, efetivador dos direitos fundamentais e realizador da Justiça, a Dogmática Jurídica evoluiu nos estudos do princípio da igualdade sob o aspecto material, costumeiramente consubstanciada na fórmula de Aristóteles, e citada por RUI BARBOSA em seu clássico Oração aos Moços:
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se eqüivalessem6.
Assim, retomando à linha de raciocínio de J.J. GOMES CANOTILHO, o princípio da igualdade não deve ser reduzido à igualdade formal ou, na expressão utilizada pelo ilustre autor português, ao postulado da universalização, já que isso
(...), pouco adiantaria, já que ele permite discriminação quanto ao conteúdo. (...). Reduzido a um sentido formal, o princípio da igualdade acabaria por se traduzir num simples princípio da prevalência da lei em face da jurisdição e da administração. Consequentemente, é preciso delinear os contornos do princípio da igualdade em sentido material7.
Diante disso, o autor destaca que também deve ser observada a exigência da igualdade material através da lei, pois,
Diferentemente da estrutura lógica formal de identidade, a igualdade pressupõe diferenciações. A igualdade designa uma relação entre diversas pessoas e coisas. Reconduz-se, assim, a uma igualdade relacional, pois ela pressupõe uma relação tripolar (...): o indivíduo a é igual ao indivíduo b, tendo em conta determinadas características8.
Todavia, ainda segundo o autor, a fórmula exposta pela igualdade material (“o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente”), não expõe o critério material de um juízo de valor sobre a relação de igualdade.
Por conta disso, é importante se atentar para a questão da igualdade justa. Dito de outra forma, mister seja avaliada a seguinte questão: qual o critério de valoração para a relação de igualdade?
Quanto a isso, o autor comenta a hipótese levantada por grandes autores, que fundamenta a igualdade justa na proibição geral do arbítrio. Ou seja, o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento é arbitrária.
Contudo, após levantar essa possibilidade, o catedrático da Universidade de Coimbra a refuta, uma vez que a análise acerca do princípio da proibição do arbítrio deve estar ligada a um critério material objetivo, que costuma ser sintetizado da seguinte forma: a igualdade é violada arbitrariamente quando o tratamento jurídico não se basear em
(i) fundamento sério;
(ii) não tiver um sentido legítimo;
(iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável.
Como a proibição do arbítrio acaba intrinsecamente determinada pela exigência de um “fundamento razoável”, isso implicaria novamente em um problema de valoração. Por isso, J.J. GOMES CANOTILHO acaba concluíndo pela:
(1) a insuficiência do “arbítrio” como fundamento adequado de “valoração” e de “comparação”;
(2) a imprescindibilidade da análise da “natureza”, do “peso”, dos “fundamentos” ou “motivos” justificadores de soluções diferenciadas;
(3) insuficiência da consideração do princípio da igualdade como um direito de natureza apenas “defensiva” ou “negativa”9.
Dessa forma, por ser impossível a existência de critérios objetivos para verificação do cumprimento do princípio da igualdade pelo legislador, ou seja, igualdade na lei, muitas vezes o problema se desloca para a aplicação do princípio ao caso concreto.
Portanto, a igualdade perante a lei, que tem como destinatário o aplicador, consubstancia-se na situação em que diante do caso concreto este estaria impedido de dispensar tratamento desigual àqueles que a lei considerou iguais.
Quanto a isso, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO parece ter encontrado parâmetros consistentes em sua clássica monografia sobre o tema. Em seu trabalho, o ilustre professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo estabelece três questões a serem observadas para que não ocorra a violação ao princípio da igualdade. São essas as palavras do autor:
Parece-nos que o reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões:
A primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;
A segunda reporta-se à correlação lógica e abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;
A terceira atina-se à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados10.
Portanto, no entendimento acima exposto, não basta apenas uma correlação lógica abstrata entre o critério de discriminação e a diferenciação. É necessário que haja uma correlação lógica concreta, verificada à luz da Constituição Federal.
Assim, a diferença entre igualdade na lei (dirigida ao legislador) e igualdade perante a lei (dirigida ao aplicador) é de suma importância, uma vez que tais aspectos são complementares.
Isso porque apenas a partir da análise da igualdade na lei (dirigida ao legislador), que se verifica a correlação lógica abstrata do critério de discriminação. Por sua vez, é a partir da análise da igualdade perante a lei (dirigida ao aplicador) que se verifica a correlação lógica concreta.
Logo, essas duas análises são fundamentais para aferir o cumprimento/descumprimento do princípio da igualdade e, por isso, estão intrinsecamente relacionadas.
Isso foi brilhantemente observado pelo professor TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., que assim dispõe em sua obra:
Como princípio da justiça, a igualdade aparece, pois, como um código identificador do equilíbrio na distribuição de bens nas relações sociais. Como código, porém, admite diferentes decodificações. Pode, portanto, constituir um código forte ou um código fraco, noções que já discutimos anteriormente ao falar de hermenêutica. A igualdade como princípio representa um código forte. A proporcionalidade exigida permite articulações unívocas, com um sentido conotativo e denotativamente preciso. O princípio da igualdade trabalha com dois valores e exclui um terceiro: ou há ou não há igualdade. Não existe o mais ou menos igual11.
Feitas essas considerações, passaremos a analisar a igualdade sob o ponto de vista da Ciência do Direito Tributário, tendo em vista o disposto no art. 150, II da Constituição da República Federativa do Brasil.
2. Princípio da Igualdade Tributária
Diante da extrema relevância que o princípio da igualdade possui no sistema tributário, mesmo que previsto de forma geral no caput do art. 5º, o legislador constituinte originário resolveu por bem reiterá-lo no art. 150, II, que inaugura a Seção Das Limitações ao Poder de Tributar:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
De qualquer forma, o que deve ficar claro é que não há dois princípios distintos, mas somente um reforço, uma reiteração legislativa no que diz respeito ao princípio da igualdade no direito tributário.
De fato, somos firmes na premissa que mesmo que não houvesse a previsão do Art. 150, II da CF/88, o caput do art. 5º já seria suficiente para que o princípio da igualdade tivesse força impositiva em matéria tributária. Relembre-se que o princípio da igualdade deve pautar a interpretação de todas as normas do sistema jurídico, e não apenas de subáreas específicas.
Todavia, é interessante notar que o princípio da igualdade tributária previsto no art. 150, II, diferentemente do caput do art. 5º, possui um maior enfoque para a perspectiva da igualdade na lei, uma vez que a literalidade da mensagem é diretamente direcionada ao legislador tributário, importando em uma vedação à sua atividade legislativa.
Em outras palavras, o que o constituinte originário faz ao prescrever a observância do princípio da igualdade tributária é proibir que o legislador tributário institua tratamento desigual entre contribuintes em situação equivalente.
Nesse sentido, ROQUE ANTONIO CARRAZZA pontua que
Isto, não significa, por óbvio, que as leis tributárias devem tratar todas as pessoas da mesma maneira, mas, tão somente, que precisam dispensar o mesmo tratamento jurídico às que se encontrem em situações idênticas12.
Isso nada mais é do que a compreensão da igualdade sob seu aspecto material, ou seja, somente pode haver diferenciação se houver correlação lógica entre o elemento de discriminação e a diferenciação de tratamento prevista na lei.
Tanto é assim, que JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES, em estudo sobre o tema, chega a uma análise muito semelhante àquela apresentada por CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO. Eis as palavras do primeiro autor:
Para que se afira a existência ou não de ofensa ao princípio da isonomia em matéria tributária, sugere-se que o pesquisador siga o seguinte roteiro sistemático ao deparar-se com a norma que crie discriminação:
Dissecar a regra-matriz de incidência tributária em seus cinco critérios;
Identificar qual é o elemento de discriminação utilizado pela norma analisada;
Verificar se há correlação lógica entre o elemento de discriminação e a diferenciação de tratamento procedida; e,
Investigar se há relação de subordinação e pertinência lógica entre a discriminação procedida e os valores positivados no texto constitucional13.
Portanto, “é claro que a lei tributária pode discriminar situações, desde que não erija em critério diferencial nem um traço tão específico que singularize o contribuinte por ela colhido, nem um fato havido pelo sistema constitucional como insuscetível de aceitar distinções (e.g., a cor, atributo racial)”14.
Ainda sobre o tema, LUCIANO AMARO traz importante observação de que o princípio da igualdade não apenas faculta ou proíbe a diferenciação, mas, sobretudo na perspectiva da igualdade material, o princípio também obriga a discriminação, o que se relaciona com a concretização do princípio da capacidade contributiva:
O problema – parece-nos – deve ser abordado em termos mais amplos: além de saber qual a desigualdade que faculta, é imperioso perquirir a desigualdade que obriga a discriminação, pois o tratamento diferenciado de situações que apresentem certo grau de dessemelhança, sobre decorrer do próprio enunciado do princípio da isonomia, pode ser exigido por outros postulados constitucionais, como se dá, no campo dos tributos, à vista do princípio da capacidade contributiva, com o qual se entrelaça o enunciado constitucional da igualdade. Deve ser diferenciado (com isenções ou com incidência tributária menos gravosa) o tratamento de situações que não revelem capacidade contributiva ou que mereçam um tratamento fiscal ajustado à sua menor expressão econômica.
Hão de ser tratados, pois, com igualdade aqueles que tiverem igual capacidade contributiva, e com desigualdade os que revelem riquezas diferentes e, portanto, diferentes capacidades de contribuir15.
Em sentido semelhante se manifesta ROQUE ANTONIO CARRAZZA, que também entende que o princípio da igualdade está intimamente relacionado com o da capacidade contributiva, uma vez que tributar os que expressam mais riqueza significa realizar a busca da igualdade material. Nesse sentido, o autor traz os seguintes ensinamentos:
Acrescentamos que o princípio da capacidade contributiva hospeda-se nas dobras do princípio da igualdade e ajuda a realizar, no campo tributário, os ideais republicanos. Realmente, é justo e jurídico que quem, em termos econômicos, tem muito pague, proporcionalmente, mais imposto do que quem tem pouco. Quem tem maior riqueza deve, em termos proporcionais, pagar mais imposto do que quem tem menor riqueza. Noutras palavras, deve contribuir mais para a manutenção da coisa pública. As pessoas, pois, devem pagar impostos na proporção dos seus haveres, ou seja, de seus índices de riqueza16.
Portanto, podemos concluir que o princípio da capacidade contributiva está relacionado com o princípio da igualdade tributária no seu sentido positivo, ou seja, no sentido em que o legislador está obrigado a atribuir uma carga tributária maior para quem tem maior possibilidade de contribuir com as despesas públicas.
Isso quer dizer que para realizar o princípio da capacidade contributiva, o legislador deve considerar as desigualdades econômicas dos contribuintes para, a partir disso, distribuir a carga tributária proporcional e equanimemente entre àqueles que podem contribuir mais.
Em outras palavras, é por meio de critérios de desigualação que o legislador realiza a igualdade tributária material, chegando-se ao corolário da igualdade e da capacidade contributiva, que é justamente a garantia de uma tributação justa17.