III. Críticas ao pensamento de Paulo Otero
No Ensaio sobre o caso julgado, o ato de decidir é exclusivo do juiz. As partes não participam. O julgador, no momento de aplicação da lei, é o único responsável pela observância das leis constitucionais.
Ocorre que o problema da legitimidade das decisões judiciais já deixou de ser um problema reduzido apenas à pessoa do juiz. O que garante a legitimidade das decisões são antes garantias processuais atribuídas às partes e que são, principalmente, a do contraditório e a da ampla defesa, além da necessidade de fundamentação das decisões. A construção participada da decisão judicial, garantida num nível institucional, e o direito de saber sobre quais bases foram tomadas as decisões dependem não somente da atuação do juiz, mas também do Ministério Público e, fundamentalmente, das partes e dos seus advogados.
Segundo Rosemiro Pereira Leal,
as decisões no ordenamento jurídico democrático não mais se equacionam na esfera atomística do saber judicante ou pelo solipsismo iluminista da imparcial clarividência do julgador. O direito, em sua produção e aplicação no Estado democrático, não se orienta pela mítica sociologista de legitimação nas tradições, sequer cumpre desideratos da realização da utopia da sociedade justa e solidária por inferência direta de um imaginário coletivo de bases utópico-retóricas ou estratégicas de auto-engano (ideologismo).[44]
Nota-se por aí que há um deslocamento do centro da prestação da tutela jurisdicional do juiz para o processo. A participação em simétrica paridade, garantindo o contraditório, a ampla defesa e a isonomia é que asseguram às partes, ao Ministério Público, aos advogados e ao juiz a efetiva prestação da tutela jurisdicional.
A legitimidade das decisões jurídicas aponta no sentido do processo. Este, entendido como “necessária instituição constitucionalizada que, pela principiologia do instituto do devido processo legal, converte-se em direito garantia impostergável e representativo de conquistas históricas da humanidade na luta secular empreendida contra a tirania, como referente constitucional lógico-jurídico, de interferência expansiva e fecunda, na regência axial das estruturas procedimentais nos segmentos da administração, legislação e jurisdição.[45]
Não pode haver caso julgado, que expresse a certeza da decisão judicial, sem que haja a observância do processo constitucional. Assim
no quadro do exercício do Poder Jurisdicional, o Direito realiza sua pretensão de legitimidade e de certeza da decisão através, por um lado, da reconstrução argumentativa no processo da situação de aplicação, e por outro, da determinação argumentativa de qual, entre as normas jurídicas válidas, é a que deve ser aplicada, em razão de sua adequação, ao caso concreto. Mas não só por isso. A argumentação jurídica através da qual se dá a reconstrução do caso concreto e a determinação da norma jurídica adequada está submetida à garantia processual de participação em contraditório dos destinatários do provimento jurisdicional. O contraditório é uma das garantias centrais dos discursos de aplicação jurídica institucional e é condição de aceitabilidade racional do processo jurisdicional.[46]
Luiz Moreira afirma que “tanto mais legítimo será o Direito quanto mais preservar o espaço de liberdade privada”.[47] A decisão judicial e o caso julgado tendem à constitucionalidade na medida em que são preservados o contraditório e a ampla defesa. Do contrário, atribuindo a responsabilidade única da constitucionalidade nas mãos do julgador, como pretende Paulo Otero, não teremos uma decisão judicial democrática.
Isso não significa afirmar, completamente, que a teoria do discurso, ou melhor, a teoria procedimentalista responda totalmente aos questionamentos apresentados na obra do Professor Paulo Otero. Como ressalta o Professor Jorge Bacelar Gouveia:
as teorias procedimentalistas ou processualistas apenas respondem a parte dos problemas, mas não dão solução a um conjunto de temas que ficam ainda por resolver, jamais se podendo, em conclusão, prescindir de uma pauta material de legitimação.[48]
Adiante, Jorge Bacelar Gouveia, citando João Batista Machado, adverte que
a teoria do consenso como critério de verdade e de justiça não pode ser aceite. Desde logo, se o consenso é tomado como facto, dir-se-á que de um facto não pode deduzir-se qualquer validade, do mesmo modo que do facto entendido como mero facto psicológico de acordo de vontades não pode deduzir-se o caráter vinculante do mesmo.[49]
E por fim, como crítica à aplicação exclusivamente da teoria do discurso, Jorge Bacelar Gouveia apresenta o entendimento de Pedro Serna Bermúdez, afirmando que “[..] .o consenso serve como critério único de legitimação se se reduz o homem a pura liberdade, quer dizer, a natureza vazia[...]”[50]
Portanto, o caso julgado é ilegítimo, e consequentemente, ilegal e inconstitucional, na medida em que deixar, por um lado, de reconstruir argumentativamente no processo a situação de aplicação (teoria do discurso), e por outro, deixa de determinar argumentativa qual, entre as normas jurídicas válidas, é a que deve ser aplicada, em razão de sua adequação, ao caso concreto. Mas, para que ocorra essa argumentação é indispensável o contraditório, como condição de aceitabilidade racional do processo jurisdicional.
As decisões jurídicas tendem à constitucionalidade, legalidade e legitimidade na medida em que garantam a ampla participação dos cidadãos no processo de tomada de decisão. O que importa efetivamente na decisão judicial democrática é que a mesma tenha como coautores, o juiz e as partes, e que ao fim, elas possam reconhecer que aquela decisão teve a sua participação efetiva, em contraditório. É nesse reconhecimento que reside a legalidade e a constitucionalidade da decisão judicial, que após o trânsito em julgado, consolida-se em caso julgado.
É fundamento do Estado Democrático de Direito a segurança e estabilização das relações jurídicas por meio da imutabilidade das decisões judiciais (coisa julgada). O princípio da segurança jurídica tem como escopo a garantia dos direitos regularmente constituídos, que já integram a esfera patrimonial do titular da tutela judicial garantida.
Contudo, sustenta Paulo Otero, em seu Ensaio, que a segurança jurídica não deve ser vislumbrada como fonte de se eternizar injustiças. Isso significa que as decisões judiciais contrárias ao ordenamento jurídico e principalmente à constituição devem ser inválidas.
Não enfrenta, Paulo Otero, a questão da segurança jurídica como elemento fundamental do caso julgado e do Direito. Busca ele, de modo mais direto, tornar a premissa verdadeira, de que o caso julgado é necessário para a segurança jurídica, sem contudo nos informar o que ele entende por segurança jurídica.
Segurança jurídica no caso julgado, no Ensaio, é justamente a aplicação imediata da lei constitucional e das leis infraconstitucionais. Além disso, percebemos que o autor vai além da legalidade para afirmar que a segurança jurídica também engloba o valor da justiça. Entende ser segurança jurídica um valor intrínseco ao caso julgado que é desnecessário demais explicações ou divagações sobre o tema.
Se no Estado Liberal, o princípio da segurança jurídica era confundido com o da legalidade, no Estado de Bem-Estar Social a segurança jurídica tem relação com a justiça. No entanto, tanto no Estado Liberal quanto no Estado de Bem-Estar Social a tensão entre a legalidade e a justiça é inconciliável, o que sempre acaba em que o julgador faça ou a escolha por um ou pelo outro.
Não mais podemos nos preocupar com a segurança jurídica como exclusivamente a legalidade ou como justiça no caso concreto. O paradigma do Estado Democrático possibilita a superação desses conceitos, permitindo uma compreensão da legalidade e da justiça, numa nova perspectiva, que se apresenta como uma tensão entre a facticidade e a validade do direito.
Segurança jurídica no caso julgado não pode ser exclusivamente um problema de legalidade ou de justiça na aplicação do Direito no caso concreto, ou muito menos a previsibilidade das decisões, mas deve ser a garantia de institucionalização de garantias processuais (contraditório e ampla defesa) para que possibilitem aos destinatários da decisão judicial se reconhecer como seus autores. Portanto, a legitimidade da decisão judicial passa pela garantia da segurança jurídica no Estado Democrático de Direito.
Segurança Jurídica, no Estado Democrático de Direito, tem relação com cidadania, soberania e contraditório. Decisão jurídica segura deixa de ser uma questão de trânsito em julgado de uma decisão ou até mesmo a previsibilidade das decisões judiciais, para ser entendida como aquela que garante aos interessados a possibilidade de participação em simétrica paridade de partes, no qual, tais interessados podem, discursivamente, por meio da linguagem, buscar o entendimento. Portanto, a coerção do direito, não mais se faz pelo uso da força, mas sim pela utilização do melhor argumento.
Assim, concluímos que a questão da legitimidade do Direito é uma questão fundamental para que se possa entender o caso julgado inconstitucional no paradigma democrático de Direito. Para que o Direito mantenha sua legitimidade, é necessário que os cidadãos troquem seus papéis de sujeitos privados do Direito e assumam a perspectiva de participantes em processos de entendimento que versam sobre as regras de sua convivência, identificando-se como autores das decisões que eles próprios se propõem a respeitar.
A questão acerca da legitimidade das decisões judiciais, é bom que se diga, já deixou de ser um problema reduzido apenas à pessoa do juiz. O que garante a legitimidade das decisões são antes garantias processuais atribuídas às partes e que são, principalmente, a do contraditório e a da ampla defesa, além da necessidade de fundamentação das decisões. A construção participada da decisão judicial, garantida num nível institucional, e o direito de saber sobre quais bases foram tomadas as decisões dependem não somente da atuação do juiz, mas também do Ministério Público e fundamentalmente das partes e dos seus advogados. A legitimidade das decisões jurídicas aponta no sentido do processo.
O ato de decidir, no Estado Democrático de Direito, não pode ser exarado unilateralmente pela clarividência do juiz, dependente das suas convicções ideológicas, mas deve, necessariamente, ser gerado na liberdade de participação recíproca, e pelo controle dos atos do processo.
Não pode haver caso julgado que expresse a certeza e segurança jurídica, sem que haja a observância do processo constitucional. A decisão judicial e o caso julgado tendem à constitucionalidade na medida em que são preservados o contraditório e a ampla defesa. Do contrário, atribuindo a responsabilidade única da constitucionalidade nas mãos do julgador, como faz crer o Professor Paulo Otero, estaremos diante do autoritarismo e não da democracia.
O caso julgado inconstitucional é ilegítimo quando deixa de reconstruir argumentativamente no processo a situação de aplicação, e por outro, deixa de determinar argumentativa qual, entre as normas jurídicas válidas, é a que deve ser aplicada, em razão de sua adequação ao caso concreto. Mas, para que ocorra essa argumentação é indispensável o contraditório, como condição de aceitabilidade racional do processo jurisdicional.
Decisão justa ou caso julgado constitucional tem relação com a qualidade das decisões. A decisão jurídica no qual foram assegurados às partes participarem isonomicamente na construção do provimento. Nessa conjectura, decisão justa só seria aquela decisão que se adequasse às características e objetivos da teoria democrática processualmente fundacional da normatividade. As decisões, nesta acepção, só se legitimar-se-iam pela pré-compreensão teórica do discurso democrático como base de fundamentação da decidibilidade.
Só existirá caso julgado constitucionalmente democrático, ou seja a decisão judicial só transitará em julgado, quando houver a instrumentalização de um espaço discursivo-processual em que os interessados na decisão judicial se reconheçam como também os autores dessa decisão. Isso, sim, é democratizar a função jurisdicional.
IV. (Novo) conceito de trânsito em julgado[51]
Segundo a doutrina processual brasileira tradicional, a sentença transitada em julgado é justamente aquela contra a qual não caiba mais nenhum recurso, seja ordinário ou extraordinário. Tal definição revela dois ângulos do termo. O primeiro é o aspecto temporal; o segundo é o aspecto recursal.
Ultrapassado o prazo para a interposição dos recursos sem que haja a impugnação da sentença, ocorre o trânsito em julgado da sentença por “preclusão”. Esgotados os recursos cabíveis, também ocorre o trânsito em julgado da sentença. Por esses dois aspectos, verifica-se a existência de elementos meramente “procedimentais” para a conceituação do termo sob análise.
O Código de Processo Civil brasileiro vai mais além, afirmando, em seu art. 474, que: “Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas que a parte poderia opor, assim, ao acolhimento como à rejeição do pedido”.
Tal dispositivo confere ao trânsito em julgado uma eficácia preclusiva consumativa, que impede que, em novo processo, possam ser rediscutidos fatos e fundamentos jurídicos que deveriam ser objeto de alegação, mas que, por qualquer motivo, não foram.
O Código de Processo Civil brasileiro não possui uma definição exata para a expressão “trânsito em julgado”, deixando a interpretação do termo para os doutrinadores, que acabam recorrendo a outros ordenamentos jurídicos para explicar o significado de tal instituto processual.
Sob o aspecto recursal, dispõe o Código de Processo Civil português, em seu artigo 677º,[52] que é considerada transitada em julgado a decisão que não seja mais suscetível de recurso ordinário ou de reclamação. Tal definição, em parte, acaba servindo para o direito processual brasileiro, que acrescentou a possibilidade também dos recursos extraordinários, para ocorrência do trânsito em julgado.
Já o Código de Processo Civil italiano, ao definir “trânsito em julgado”, o faz como sinônimo de coisa julgada formal. Sustenta o artigo 324[53] do Código de Processo Civil italiano que se entende transitada em julgado a sentença que não é mais sujeita a nenhum tipo de impugnação, seja ordinária ou extraordinária, e nem mesmo de ação rescisória (revocazione).
A noção de trânsito em julgado é mais abrangente para os italianos do que para os portugueses. Contudo, tanto no direito processual português quanto no italiano, a ideia se mostra ligada à noção de “preclusão”.
Segundo a clássica definição de Chiovenda, a “preclusão” consiste na perda, na extinção ou na consumação de uma faculdade processual. Isso pode ocorrer: a) se a parte não observar a ordem assinalada pela lei ao exercício da faculdade; b) se a parte realizar atividade incompatível com o exercício da faculdade; c) se a parte já tiver exercitado validamente a faculdade.[54] Diante dessa definição, pode-se concluir pela existência de três modalidades de preclusão: a) temporal; b) lógica e c) consumativa.
Nesse sentido, ocorre o “trânsito em julgado” da decisão se a parte deixar de opor impugnação à decisão dentro do prazo estabelecido em lei para tal ato (preclusão temporal); se opuser à decisão impugnação não prevista em lei (preclusão lógica); ou se opuser impugnação prevista em lei e dentro do prazo, mas sem aduzir todos os fatos e fundamentos jurídicos necessários, não podendo mais completá-la (preclusão consumativa).
Fazzalari, ao discorrer sobre o tema, prefere utilizar o termo “irretratabilidade” da sentença. Para o autor, tal irretratabilidade significa o “exaurimento” – por efeito da preclusão – das faculdades, dos poderes e dos deveres atinentes aos recursos.[55]
No entender de Fazzalari, a irretratabilidade da sentença (trânsito em julgado) pode ocorrer na sentença que julga ou não o mérito da demanda. É um efeito exclusivamente processual. Essa situação processual que é imposta pela exigência de colocar fim à lide envolve:
a) que a sentença se torna ‘incontestável’ em juízo por obra das partes, dado justamente a sua carência de outros poderes processuais para prosseguir o processo ou para instaurar um novo sobre o mesmo objeto, obliterando a sentença já emitida (e não mais impugnável: com efeito, não é mais necessário configurar, em relação àqueles sujeitos, uma proibição de contestar a sentença, bastando a constatação de que a lei não concede a eles novos poderes para fazê-lo;
b) que, por conseguinte, se torna ‘intocável’ por assim dizer, por parte do juiz que a emitiu e por qualquer outro juiz, ainda aqui não por causa de uma proibição, mas pela simples falta de poderes (rectius: deveres): nemo iudex sine actore.[56]
No entanto, tal concepção desenvolvida por Fazzalari, apesar de muito interessante, não leva em consideração os novos contornos constitucional-processuais que a decisão jurisdicional precisa conter para atender aos procedimentos democráticos.
Insta observar que, na democracia, o trânsito em julgado da decisão jurisdicional não pode ter relação exclusiva com a preclusão ou com o exaurimento dos poderes, faculdades e deveres das partes. É necessário superar tal conceito para se entender a expressão “trânsito em julgado” no paradigma democrático.
O entendimento acima delineado limita a expressão a um aspecto puramente processual-dogmático. Para compreendermos o termo inserido no Estado Democrático de Direito, é preciso superar a ideia de que a formação da decisão jurisdicional se dá de forma isolada, na ação autoritária do juiz.
O que realmente importa, no estudo do trânsito em julgado, é saber se a decisão jurisdicional encontra legitimidade na base produtiva e fiscalizadora do processo. Só podem transitar em julgado as decisões que encontram legitimidade em sua formação. Para justificar tal afirmativa, utilizaremos a teoria discursiva do direito desenvolvida por Habermas.
Esclarecendo sua ideia de legitimidade, Habermas se pautou pela teoria do discurso, no qual as normas somente são legítimas se encontrarem assentimento de todos os cidadãos (partes processuais) no processo discursivo. Para que as partes se reconheçam como elaboradoras e destinatárias de uma decisão legitimada, há a necessidade de garantir a autonomia pública e privada. Nesse sentido, afirma o autor que:
O nexo interno da democracia com o Estado de direito consiste no fato de que, por um lado, os cidadãos só poderão utilizar condizentemente a sua autonomia pública se forem suficientemente independentes raças a uma autonomia privada assegurada de modo igualitário. Por outro lado, só poderão usufruir de modo igualitário da autonomia privada se eles, como cidadãos, fizerem um uso adequado da sua autonomia política. Por isso, os direitos fundamentais liberais e políticos são indivisíveis. A imagem do núcleo e da casca é enganadora – como se existisse um âmbito nuclear de direitos elementares à liberdade que devesse reivindicar precedência com relação aos direitos à comunicação e à participação. Para o tipo de legitimação ocidental é essencial a mesma origem dos direitos à liberdade e civis.[57]
Para garantir a legitimidade da decisão jurisdicional que permita o natural trânsito em julgado, é indispensável a existência de um espaço linguístico que garanta uma situação paritária dos participantes no processo de tomada de decisão. Tal situação só é possível em um procedimento em contraditório. Conforme ressalta Gonçalves (1992), “o contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei”.[58]
Para que o contraditório possa, efetivamente, possibilitar a construção de decisões legitimadas e, assim, permitir o trânsito em julgado, é também indispensável que seja ligado ao requisito da fundamentação das decisões,[59] de maneira que possa “gerar bases argumentativas acerca dos fatos e do direito debatido para a motivação das decisões”.[60]
A decisão jurisdicional e o seu consequente trânsito em julgado, nas democracias, têm como causa justificadora a estrutura do procedimento realizado em contraditório (direito-garantia-fundamental). A ausência dessa vinculação descaracteriza o conceito de fundamento decisório nas democracias, a que alude o art. 93, inciso IX da CR/88.
A completa ausência de fundamentação, ou a sua presença de forma ineficaz, contraria a democracia e, via de consequência, nega ao cidadão o direito a uma decisão jurisdicional legítima, inviabilizando o seu trânsito em julgado. Nessa perspectiva e com propriedade, Calmon de Passos tece crítica a algumas expressões utilizadas nos procedimentos judiciais brasileiros, que contribuem para tornar as decisões jurisdicionais ilegítimas:
Estamos acostumados, neste nosso país que não cobra responsabilidade de ninguém, ao dizer de magistrados levianos, que fundamentam seus julgados com expressões criminosas como estas: atendendo a quanto nos autos está fartamente provado... à robusta prova dos autos... ao que disseram as testemunhas ... e outras leviandades dessa natureza que, se fôssemos apurar devidamente, seriam, antes de leviandades, prevaricações, crimes, irresponsabilidade e arbítrio, desprezo à exigência constitucional de fundamentação dos julgados, cusparada na cara dos falsos cidadãos que somos quase todos nós. Nós, advogados, que representamos os cidadãos em juízo, devemos nos mobilizar aguerridamente contra as sentenças desfundamentadas ou inadequadamente fundamentadas, quando se cuida de antecipação de tutela, arma de extrema gravidade em mãos de juízes inescrupulosos ou fáceis, num sistema em que não se consegue, jamais, responsabilizá-los. E isso para se preservar, inclusive, os muitos dignos e sacrificados magistrados, com os quais convivemos quotidianamente e cujo calvário acompanhamos, solidários. Vítimas da organização inadequada do nosso Judiciário e vítimas da concorrência malsã dos marginais da magistratura, privilegiados com o atual estado de coisas.[61]
Ressalte-se que, para garantir a legitimidade da decisão e permitir a ocorrência do trânsito em julgado, não basta que o juiz exponha o itinerário de seu pensamento para que a decisão atenda ao requisito constitucional da fundamentação. Se assim fosse, aceitar-se-ia a possibilidade de uma decisão discricionária.
Portanto, a função jurisdicional tem sua legitimidade garantida à medida que estejam vinculados ao princípio do Estado Democrático de Direito. Para Bretas,[62] este princípio se otimizará pela incidência articulada de dois outros princípios concretizadores, quais sejam: o princípio da supremacia da Constituição e o princípio da reserva legal (ou princípio da prevalência da lei).
Jurgem Habermas, considera que só são legítimos os procedimentos jurisdicionais quando revestidos de constitucionalidade, que consiste na garantia de participação discursiva das partes no processo. Nessa mesma esteira, Fazzalari, (2006), Gonçalves, (1992) e Leal (2005) em ideologia à “teoria neoinstitucionalista do processo” sustentam que, para embasar a legitimidade das decisões jurisdicionais e o trânsito em julgado, há de ter-se garantido às partes processuais a participação discursiva nos procedimentos jurisdicionais.
Para esses autores, no paradigma do direito democrático, o processo deve ser entendido como sendo uma instituição jurídica, delineada por um conjunto de princípios jurídicos que permite preservar o espaço discursivo. Tais princípios jurídicos balizam o processo e permitem a legitimidade decisória garantindo o exercício do “contraditório”, da “ampla defesa” e da “isonomia”.
A esse respeito, ressalta Leal que:
É que, no paradigma do direito democrático, o eixo das decisões não se encontra na razão imediata e prescritiva do julgador, mas se constrói no espaço procedimental da razão discursiva (linguagem) egressa da inter-relacionalidade normativa (conexão) do ordenamento jurídico obtido a partir da teoria da Constituição democrática. Nesse sentido, os argumentos de fundamentação do direito a legitimar pretensões de validade são retirados da teoria processual que se concebe pela isonomia entre produtores e destinatários das normas jurídicas de tal modo que, no apontamento incessante de falibilidade do sistema jurídico no espaço procedimental acessível a todos, os destinatários das normas se reconhecem autores da produção do direito.[63]
Assim, no paradigma democrático, a expressão “trânsito em julgado” adquire novos contornos, não sendo mais entendida apenas como um efeito da preclusão, mas, sobretudo, como sendo uma consequência da legitimidade das decisões jurisdicionais.