Resumo: O estudo das competências concorrentes permite vislumbrar os limites da atuação conjunta entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios no modelo Federativo adotado no Brasil, visando à obtenção de uma homogeneidade nacional, com preservação dos pluralismos regionais e locais. Para tanto, importante é o conceito de normas gerais, seja pelo aspecto subjetivo, de quem legisla e a quem são aplicáveis, seja pelo aspecto objetivo, de seu conteúdo mesmo. Assim, observa-se pela doutrina e pelos precedentes do Supremo Tribunal Federal analisados, que se trata de normas principiológicas, veiculadas em leis de caráter nacional, com implicações próprias de cada espécie.
Palavras-chave: Federalismo; Competência Concorrente; Conceito de normas gerais;
1. Introdução
O Estado Federal tem como uma de suas características a repartição constitucional de competências, por meio da qual se atribui parcela de poder aos entes federados para que exerçam atividades legislativas e/ou materiais, de modo a organizar o exercício desse poder em todo o território estatal.
Com a evolução histórica e cultural do modelo federativo de organização dos Estados surgiram métodos de repartição da competência que destoam da clássica repartição de critério horizontal, ou seja, que atribui parcelas exatas (ainda que nem sempre expressas) de competências exclusivas a cada ente federado. Surgem, assim, critérios verticais de repartição, segundo os quais determinados temas são titularizados, de maneira concomitante, por mais de um órgão fracionário da Federação.
Uma das formas de repartição vertical de competências é a que se denomina competência concorrente, que divide capacidades políticas legislativas entre os entes federados, sob determinados critérios, permitindo, assim, que todos esses entes possam exercer a possibilidade de legislar sobre os mesmos temas nos âmbitos dos interesses prevalecentes: federal (União), regional (Estados e Distrito Federal) e, no Brasil, local (Municípios e Distrito Federal).
Acontece que, segundo a fórmula brasileira de disciplina constitucional das competências concorrentes, previu-se que a competência da União seria restrita às normas gerais sobre os temas repartidos, o que, sem dúvida, gera dificuldades na identificação exata dos limites em que pode atuar tal ente federado sem invadir a parcela de competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios.
A análise, portanto, do conceito de normas gerais, seja na doutrina, seja na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é atividade salutar para a boa compreensão e interpretação do feitio constitucional da Federação brasileira, principalmente porque a repartição de competências concorrentes tem por escopo a cooperação dos entes federados na construção de um equilíbrio e de uma isonomia material no seio do Estado.
2. A previsão das competências legislativas concorrentes na Constituição Federal do Brasil de 1988 (CF/88)
O estudo tem início, assim, com a própria disciplina constitucional da repartição de competências legislativas concorrentes prevista na CF/88, para que se possa ter a ideia exata de como o conceito de normas gerais irá influenciar decisivamente para a compreensão do instituto.
Como início, deve-se diminuir o espectro da presente análise, delimitando o estudo às competências materiais ditas próprias, com exclusão das impróprias. A definição de ambas é dada com clareza no seguinte trecho da obra de Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Junior:
“As competências concorrentes podem ser classificadas em próprias e impróprias. Aquelas são assim designadas por indicação expressa do texto constitucional (art. 24), que preconiza o exercício simultâneo e limitado de competências por mais de uma das ordens federativas. Estas, diferentemente, não são expressamente previstas na Constituição, mas encontram-se implícitas na definição das competências comuns.”[1]
Interessa, aqui, apenas a análise da disciplina constitucional conferida às competências concorrentes próprias, expressamente previstas no texto da CF/88, pois é de tal previsão que se retira a limitação da União às normas gerais. Dessa forma, não se aprofundará o exame (ainda que interessante e também importante) das competências concorrentes impróprias. Por essa razão, ademais, toda referência às competências concorrentes feitas no presente estudo farão referência apenas às chamadas próprias.
Logo, é de se dizer que o centro normativo das competências concorrentes é o art. 24, da CF/88, que prevê em seu bojo diversas matérias cuja legislação compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal. Importante que se atente, aqui, para o fato de que o exercício dessas competências está sujeito ao regime jurídico previsto nos parágrafos do referido artigo, cuja redação é importante de ser citada:
“§ 1º. No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º. A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º. A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”
Como se percebe, portanto, o cerne da distinção da competência entre os entes federados repousa na competência da União para o estabelecimento de normas gerais.
Ocorre que há outras hipóteses de competências concorrentes no corpo da CF/88, que não se encontram no dispositivo central da matéria. É o caso, por exemplo:
a) do art. 22, XXI, que atribui à União competência privativa para legislar sobre “normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares” (norma complementada por aquela do art. 144, § 6º, que subordina as polícias militares e corpos de bombeiros às autoridades dos Estados e do Distrito Federal);
b) do art. 22, XXVII, que atribui à União competência privativa para legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios”;
c) do art 146, III, que determina caber à lei complementar “estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária”; e
d) do art. 236, § 2º, que atribui à lei federal o estabelecimento de “normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro”.
Todas essas normas da CF/88 que estabelecem a necessidade de normas gerais federais para regulação de certo tema possuem em comum o fato de limitarem a competência legislativa da União, permitindo apenas a veiculação das tais normas gerais, bem como de não restringirem a atuação conjunta dos demais entes federativos na regulamentação dos temas, dentro de seus respectivos âmbitos de interesse.
É o quanto afirma, por exemplo, José Afonso da Silva:
“Não é, porém, porque não consta na competência comum que os Estados e Distrito Federal (este não sobre polícia militar, que não é dele) não podem legislar sobre esses assuntos. Podem e é de sua competência fazê-lo, pois que nos termos do § 2º do art. 24, a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui (na verdade até pressupõe) a competência suplementar dos Estados (e também do Distrito Federal), e isso abrange não apenas as normas gerais referidas no § 1º desse mesmo artigo no tocante à matéria neste relacionada, mas também as normas gerais indicadas em outros dispositivos constitucionais (...).”[2]
Ainda, importante ressaltar que, a despeito do referido artigo 24 não fazer menção expressa aos Municípios, a disciplina que a CF/88 conferiu aos mesmos lhes garante não só a posição de ente federativo, plenamente autônomo (art. 1º, “caput”, e art. 18, “caput”, por exemplo), como também a possibilidade de ingressar, legítima e igualmente, no exercício de competências concorrentes quando, nos termos do art. 30, I e II, suplementar a legislação federal e a estadual em assunto de interesse local.
Tal fato é já pacificado na doutrina nacional, servindo de paradigma a análise de Fernanda Dias Menezes de Almeida, quando, ao comentar a ausência de previsão expressa dos Municípios no “caput” e nos parágrafos do referido artigo 24, assim se manifesta:
“Isto não significa que estes” [Municípios] “estejam excluídos da partilha, sendo-lhes dado suplementar a legislação federal e estadual, no que couber, conforme dispõe o artigo 30, II, da Constituição.
Como dissemos antes, trata-se de modalidade de competência legislativa concorrente primária, porque prevista diretamente na Constituição, mas diferente da competência concorrente primária que envolve a União e os Estados. E diferente porque a Constituição não define os casos e as regras de atuação da competência suplementar do Município, que surge delimitada implicitamente pela cláusula genérica do interesse local.”[3]
Parte-se, então, do pressuposto de que, pela interpretação das normas constitucionais atinentes às feições jurídicas do Município dentro da Federação brasileira, pode o mesmo exercer plenamente competências legislativas concorrentes para suplementar a legislação federal ou estadual sempre que se tratar de assunto de interesse local[4].
Feitas tais ponderações, constata-se que todos os casos acima citados submetem-se ao regime jurídico previsto nos parágrafos do art. 24, CF/88, no tocante à delimitação do espectro de competências que cabe a cada ente federativo, sendo esse, por decorrência, o centro de conformação das competências concorrentes no Estado brasileiro: a União expede normas gerais que não podem ser contrariadas pelos demais entes federados, que, por sua vez, podem suplementar tal normatização por meios legislativos próprios e dentro da gama de seus interesses. Na ausência de normas gerais da União, os demais órgãos fracionários da Federação podem exercer tal competência de forma plena, mas, sobrevindo legislação federal (obrigatoriamente de caráter geral), suspende-se a eficácia dos demais regramentos, no que contrariem a normatização federal.
3. Normas gerais em competência concorrente
Observada a disciplina que a CF/88 reservou para a repartição de competências concorrentes, faz-se mister, então, perquirir acerca da delimitação do conceito de normas gerais. Tal análise é considerada dificultosa e consome raciocínio e tempo dos doutrinadores e dos Tribunais de longa data.
Acredita-se, portanto, que, sem a pretensão de esgotar o tema, seja possível analisar os principais argumentos avençados para que se chegue a um termo comum da dogmática e da prática jurídicas sobre esse conceito.
Em primeiro lugar, importante que se observe o aspecto subjetivo da expedição de normas gerais dentro da organização Federal do Estado brasileiro, ou seja, quem legisla normas gerais e para quem são elas aplicáveis. Essa questão, apesar de parecer já resolvida pela própria leitura do art. 24 e das demais normas que veiculam competências concorrentes, apresenta nuances úteis para uma futura delimitação conceitual.
Depois, deve-se ressaltar, com base nos critérios encontrados na análise do aspecto subjetivo das normas gerais, alguma espécie de conteúdo mínimo que as normas devem apresentar para que possam ser classificadas como “normas gerais”.
3.1. Normas gerais: por quem e para quem?
Esse primeiro aspecto das normas gerais, que ora se denomina aspecto subjetivo, diz respeito ao fato de que, sim, cabe à União legislar sobre tais normas gerais, mas, com qual característica? É dizer, a que título a União legisla sobre normas gerais em temas de competência concorrente? Pode, por exemplo, excluir-se do âmbito geral estabelecido por tais normas, fixando outras diversas para si própria? Pode a União conferir tratamento geral diverso entre si e os Estados e Municípios?
As respostas (negativas, diga-se desde logo) iniciam-se pela observação de determinada visão do próprio Estado Federal e, ao que tudo indica, desde uma visão tradicional apresentada por Hans Kelsen[5]. Referido doutrinador, ao analisar a natureza do Estado Federal, aduzia que repousava na União não a soberania, mas uma autonomia tal qual a conferida aos Estados-membro da Federação. A soberania seria conferida ao Estado Federal, único passível de reconhecimento perante o “Direito das Gentes” (hodiernamente denominado Direito Internacional Público[6]).
Geraldo Ataliba, em exposição sobre o pensamento de Hans Kelsen, afirmava categoricamente:
“Donde se vê que a Federação, sendo o fenômeno da associação de Estados, engendra uma pessoa com tríplice capacidade: a União. Capacidade de direito internacional, que é o reverso da capacidade nacional (na qualidade de Estado interno – por assim dizer, nacional). Capacidade mais restrita, no âmbito interno, já em réplica às capacidades das entidades federadas.
Capacidade de direito internacional, capacidade de Estado central e capacidade estrita de União, em oposição a Estados federados. (...)
Para o Direito das Gentes – ou seja, para efeitos de Direito Internacional – há um só Estado. Para o Direito interno, o Estado nacional (ou geral) e a União simples pessoa de direito público interno, em oposição aos Estados federados.”[7]
Ora, essa teoria, ainda que não admitida tal qual enunciada, apresenta-se subjacente ao reconhecimento atual de que é na União que se corporifica tanto o ente que representa o Estado Federal, soberano, quanto a manifestação que reúne o poder central, ou seja, um ente federativo autônomo como os demais. Nesse caso, admite-se, por vezes, que a União detém a soberania, mas apenas quando se manifesta em nome do próprio Estado Federal.
É a manifestação, por exemplo, de Michel Temer:
“A União age em nome próprio como em nome da Federação. Ora se manifesta por si, como pessoa jurídica de capacidade política, ora em nome do Estado Federal.”[8]
Ou, ainda, como entendia Celso Bastos:
“Diante do Estado estrangeiro, a União exerce a soberania do Estado brasileiro, fazendo valer seus direitos e assumindo todas as suas obrigações. (...) Internamente, a União atua como uma das pessoas jurídicas de direito público que compõem a Federação.”[9]
Assim, o ponto realmente importante dessa teoria, que parece, ademais, ter sido albergada no art. 18, “caput”, da CF/88[10], é seu efeito no âmbito do direito interno, ao manifestar que a União é tão autônoma quanto os demais entes federados, ou seja, guarda em relação aos mesmos uma posição de isonomia e não de superioridade hierárquica de qualquer grau quando se trata do exercício das competências federativas repartidas pela CF/88.
Daí se pode extrair uma distinção de atuação da União quando estiver na representação de seus interesses próprios de ente federativo e quando sua manifestação tiver de ser exarada como representante do Estado Federal. Por isso, a teoria que se analisa importa também em diferenciação entre leis nacionais e leis federais quanto à atividade legislativa da União. Aquelas dizem respeito aos interesses nacionais, pertencentes ao todo da Federação enquanto Estado. Essas dizem respeito aos interesses da União, enquanto pessoa jurídica de direito público interno, ente federativo como os demais. Ou seja, no “plano interno, revela a vontade da Federação quando edita leis nacionais e demonstra a sua vontade (da União) quando edita leis federais.”[11]
As leis nacionais, segundo Geraldo Ataliba, seriam, então:
“(...) leis que não se circunscrevem ao âmbito de qualquer pessoa política, mas os transcendem aos três. Não se confundem com a lei federal, estadual ou municipal e têm seu campo próprio e específico, excludente das outras três e reciprocamente. Quer dizer, da mesma forma que dominam o próprio campo constitucional, em caráter privativo, prevalecendo – em razão de delimitação constitucional, e não da hierarquia – sobre tentativas das demais leis de lhes invadir esta faixa, não podem estender-se validamente aos objetos próprios da legislação federal, estadual e municipal.”[12]
Dessa forma, quando a União exerce poderes levando em conta manifestações do próprio Estado Federal, tem-se como inexorável: a) que ela se coloca em absoluta igualdade com os demais entes federados no tocante aos efeitos jurídicos de sua manifestação (não podendo, assim, excluir-se da incidência dos seus efeitos), e b) deve preservar os núcleos de competência pertencentes, em caráter exclusivo, a cada um dos demais entes, sem, portanto, confundir o conteúdo da lei nacional com o conteúdo de eventual competência legislativa própria.
Ora, conforme afirma a doutrina sobre o tema das normas gerais em competência concorrente, a competência da União, nesse caso, é exercida em caráter de lei nacional, ou seja, como representante do próprio Estado Federal, razão pela qual se aplicam as consequências citadas às normas gerais expedidas no exercício da competência do art. 24, CF/88, por exemplo.
É o quanto entende, a título ilustrativo, Roque Antonio Carraza, quando afirma que “normas gerais são justamente as que valem para todas as pessoas políticas, aí incluída a própria União. Nunca normas peculiares, que só valham para os Estados, os Municípios ou o Distrito Federal.”[13]
Ainda, o Supremo Tribunal Federal possui precedentes nos quais, com base doutrinária, afirma que as normas gerais a serem legisladas pela União, por exemplo, no art. 146, III, CF/88, dizem respeito à “missão de fixar normas com âmbito de eficácia nacional e não apenas federal”[14].
Diante disso, acredita-se que não poderia ser diferente o entendimento de que as normas gerais em competência concorrente têm o caráter de legislação nacional e não federal, haja vista a própria finalidade da concorrência legislativa, qual seja, a de promover uma integração das ordens normativas, sob uma disciplina fundamental da União, homogeneizante, mas que respeite e permita a identificação dos regionalismos e interesses locais na normatização dos temas. Trata-se de promover o equilíbrio, portanto.
Nos dizeres de Fernanda Dias Menezes de Almeida:
“Parece-nos, efetivamente, que a utilização das competências concorrentes, como idealizada, atende aos desígnios de se chegar a maior descentralização, sem prejuízo da direção uniforme que se deva imprimir a certas matérias.
Numa palavra, o caminho que se preferiu é potencialmente hábil a ensejar um federalismo de equilíbrio, que depende, embora, como não se desconhece, também de outras providências.”[15]
Ou, ainda, como afirmava Raul Machado Horta:
“A legislação concorrente, que amplia a competência legislativa dos Estados, retirando-a da indigência em que a deixou a pletórica legislação federal no domínio dos poderes enumerados, se incumbirá do afeiçoamento da legislação estadual às peculiaridades locais, de forma a superar a uniformização simétrica da legislação federal.
A repartição concorrente cria outro ordenamento jurídico dentro do Estado Federal, o ordenamento misto, formado pela participação do titular do ordenamento central e dos titulares de ordenamentos parciais.”[16]
Dessa forma, tem-se que a finalidade da União ao legislar sobre normas gerais em termos de competência concorrente é a unificação mínima fundamental do tema, permitindo às ordens parciais da Federação a adequação do tratamento legislativo específico às peculiaridades regionais e locais, a fim de ser obtido um equilíbrio federativo e uma maior chance de isonomia material entre os entes federativos.
Essa conjuntura faz com que a União, nesses casos, esteja representando os interesses do Estado Federal como um todo na homogeneização mínima dos temas atinentes à competência concorrente, ou seja, tratar-se-á de normas gerais, fruto de leis nacionais e não federais.
Tal constatação permite extrair a conclusão de que, quando exercer a competência concorrente que lhe cabe, ou seja, expedição de normas gerais, a União: a) estará submetendo a si própria, enquanto ente federado, às normas exaradas (não se podendo subtrair dos comandos gerais pelo exercício dessa competência concorrente) e b) restará impossibilitada de incluir em tais normas qualquer assunto que diga respeito especificamente a interesses próprios ou a competências próprias enquanto ente federativo.
Assim, por exemplo, entende-se que não cabe a definição, a título de normas gerais, daquilo que os Estados poderão fazer ou deixar de fazer (imposição de condutas específicas diante de fatos). Muito menos de determinações exigíveis para determinados Estados e para outros não (tratamento uniforme, inclusive quanto à própria União). O mesmo podendo ser dito acerca dos Municípios.
Essas constatações ganham relevo quando se tenta delimitar um âmbito material, objetivo, de incidência das normas gerais, fruto do exercício de competência legislativa concorrente da União, conforme se analisará a seguir.
3.2. Normas gerais: para quê?
Nesse ponto, importante que se dê relevo ao que a doutrina afirma sobre os conteúdos possíveis de uma norma geral, seja sob um prisma positivo, ou seja, aquilo que efetivamente deve constar em uma lei nacional com normas gerais, seja sob um prisma negativo, pela orientação sobre o que não se pode considerar como norma geral.
Isso porque, como diz Fernanda Dias Menezes de Almeida:
“De fato, existem, a propósito, conceituações para todos os gostos, construídas a partir da tentativa ora de identificar os elementos constitutivos das normas gerais, ora de caracterizá-las negativamente, dizendo o que elas não são ou não podem conter.”[17]
Assim, os estudos dogmáticos sobre o tema começam pela simples afirmação de que o que se entende por normas gerais é o delineamento fundamental sobre o tema versado. É o quanto entendia Pinto Ferreira, por exemplo, quando asseverava: “A União legisla disciplinando o direito que considera como fundamental, porém os Estados suprem as lacunas.”[18]
O mesmo entendimento parece ser o corroborado por Roque Antonio Carraza, quando afirma sobre o conteúdo das normas gerais:
“Ora, estabelecer normas gerais é apontar as diretrizes, os lineamentos básicos; é operar por sínteses, indicando e resumindo. Nunca descendo a assuntos da economia interna, do peculiar interesse das pessoas políticas.”[19]
Acontece que se entende ser muito pouco, em termos de definição, o afirmar-se que normas gerais são delineamentos fundamentais ou o mero apontamento de diretrizes, operando por sínteses. Afinal, nesse passo, ficam sem resposta as questões conceituais que se originam dessa pretensa explicação, ou seja, o que se entende, pois, por questões fundamentais que a União entender cabíveis? O que se deve entender por apontamento de diretrizes operando por sínteses?
Assim, ao que se percebe, essa primeira tentativa de delimitação conceitual material das normas gerais criaria mais problemas que soluções, servindo, entretanto, de início de investigação.
Outra espécie de tentativa de conceituação material positiva das normas gerais é dada por doutrinadores que as entendem como veiculadas por leis quadro, como normas não exaustivas. É o exemplo de Raul Machado Horta, que dizia “(...) a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas (...). A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa.”[20]
Ainda, arremata o mesmo autor sobre o disposto no art. 24, § 1º, CF/88:
“A primeira regra fixa a natureza e o conteúdo da legislação federal na área das normas gerais, isto é, normas não exaustivas, normas incompletas, de modo a não esgotar na competência a matéria da legislação concorrente.”[21]
Tal definição já parte de outro pressuposto, portanto, qual seja, o de que a lei da União, lei nacional, deverá veicular normas que se dirijam à atividade legislativa, formulando uma “moldura” de possibilidades para o regramento do tema pelos entes federativos.
Acredita-se que, a partir dessa concepção, seja possível elaborar uma compreensão mais concretizante acerca do conceito de normas gerais para fins de exercício da competência concorrente da União.
Pois bem, essa ideia de leis quadro, foi bem trabalhada por J. J. Gomes Canotilho, que entende como uma das funções da própria Constituição a de ser uma ordem-quadro, permitindo, dentro de balizas gerais, principiológicas, que o legislador infraconstitucional possa adequar a normatividade ao pluralismo social vigente e mutável. Confira-se o pensamento do autor sobre o tema:
“Para ser uma ordem aberta a constituição terá de ser também uma ordem-quadro, uma ordem fundamental e não um código constitucional exaustivamente regulador. (...) A constituição pode e deve fixar não apenas uma estadualidade juridicamente conformada mas também estabelecer princípios relevantes para uma sociedade aberta bem ordenada. (...) Sendo assim, a ordem-quadro fixada pela constituição é necessariamente uma ordem parcial e fragmentária carecida de uma actualização concretizante quer através do ‘legislador’ (interno, europeu e internacional) quer através de esquemas de regulação ‘informais’, ‘neocorporativos’, ‘concertativos’, ou ‘processualizados’ desenvolvidos a nível de vários subsistemas sociais (econômico, escolar, profissional, desportivo).
A autocontenção dos textos constitucionais no sentido de se limitarem a definir uma ordem essencial constitucional básica prende-se com o assinalado fenômeno da pluralização dos mundos e pluralização dos pontos de vista característicos das chamadas sociedades pós-modernas.”[22]
Assim, apropriando-se do pensamento do autor sobre o tema, pode-se dizer que, no que tange às normas gerais, tem-se que as mesmas devem consubstanciar-se em normas de uma lei quadro, ou seja, de uma lei que vise tão somente fornecer os princípios que guiarão a atividade legislativa futura sobre a matéria. Tratar-se-ia, dessa forma, de lei sobre conteúdo de outras leis, criada pela União e dirigida à atividade jurídica legiferante dos demais entes federativos.
Em primeiro lugar, tem-se que o escopo da legislação de normas gerais, portanto, é importante para a caracterização dessas normas. Serão normas voltadas não à regulação dos fatos subjacentes à matéria a ser tratada, mas, antes, à atividade legislativa que envolverá a regulação.
Em segundo lugar, normas gerais voltadas à legislação que devem possuir caráter principiológico, precipuamente. Serão normas-princípio, portanto, dotadas, por excelência, de alta carga de generalidade e abstração e que deverão ser aplicadas pelo intérprete “como um caminho a seguir”[23], na sintética definição de Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Junior, que também classificam tais normas como propiciadoras de uma hierarquia valorativa interna às demais normas, dado seu caráter de “regra estrutural”[24], ou “regras-mestras dentro do sistema positivo”[25].
Assim, essas normas gerais serão normas que veiculam princípios, conferindo carga valorativa estruturante a ser seguida pelo legislador infraconstitucional dos entes federativos que legislarão de forma concorrente sobre a matéria disciplinada dessa forma.
Parece ser esse o entendimento, aliás, de José Afonso da Silva, quando afirma textualmente:
“(...) porque justamente a característica da legislação principiológica (normas gerais, diretrizes, bases), na repartição de competências federativas, consiste em sua correlação com competência suplementar (complementar e supletiva) dos Estados.”[26]
O mesmo autor, em outra obra, corrobora o quanto já havia dito no trecho acima. Confira-se:
“Tem sido uma questão tormentosa definir o que são ‘normas gerais’, para circunscrever devidamente o campo de atuação da União. Diremos que ‘normas gerais’ são normas de leis, ordinárias ou complementares, produzidas pelo legislador federal nas hipóteses previstas na Constituição, que estabelecem princípios e diretrizes da ação legislativa da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Por regra, elas não regulam diretamente situações fáticas, porque se limitam definir uma normatividade genérica a ser obedecida pela legislação específica federal, estadual e municipal: direito sobre direito, normas que traçam diretrizes, balizas, quadros à atuação legislativa daquelas unidades da Federação.”[27]
Essa conceituação com base em normas principiológicas dirigidas ao legislador que especificará a matéria também é endossada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, citado por Fernanda Dias Menezes de Almeida, em trecho que sintetiza a posição aqui adotada e que, por isso, também é digno de transcrição literal:
“Normas gerais são declarações principiológica que cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estados-Membros na feitura das suas legislações, através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às relações e situações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos.”[28]
Dessa forma, pelo quanto analisado na presente exposição, pode-se chegar a um esboço conceitual das normas gerais de competência da União em termos de concorrência legislativa, conforme o regime jurídico da CF/88.
3.3. Normas gerais: esboço conceitual
Pode-se dizer, portanto, que normas gerais são princípios jurídicos voltados à atividade do legislador e que pautarão sua atuação na concretização, conforme a pluralidade dos interesses regionais ou locais envolvidos, dessas mesmas normas gerais, agora descendo às minúcias fáticas da matéria legislada.
Não se estará diante de normas gerais, dessa forma, quando houver regulação expressa de fatos relacionados diretamente à matéria que se disciplina, pois tal tarefa cabe ao legislador regional ou local, e até mesmo federal, porém, nesse caso, também submetido às mesmas normas gerais.
Isso porque o instrumento de veiculação de tais normas pouco importará, já que a União, quando legisla sobre normas gerais em termos de competência concorrente, exerce essa competência enquanto representante do Estado Federal, nada impedindo que, no mesmo diploma, inclua disposições específicas de observância no âmbito exclusivo federal, porém sempre submetida às normas gerais expedidas para os demais entes federados.