Sumário: 1. Introdução e propositura do problema. 2. Conceito de prescrição. 3. Princípios da irretroatividade das leis e do respeito ao direito adquirido. 4. Direito adquirido em matéria prescricional. 5. Conclusão. 6. Bibliografia
I. Introdução e Propositura o Problema
Dia 25 de maio de 2000, as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal promulgaram a Emenda Constitucional n. 28, a qual teve vigência a partir de 26 de maio do corrente ano, data de sua publicação no Diário Oficial. A referida Emenda Constitucional trouxe inovação quanto ao prazo prescricional dos direitos do trabalhador rural, igualando-o ao dos trabalhadores urbanos, bem como revogou o artigo 233 da Constituição Federal, in verbis:
"Art. 1º. O inciso XXIX do art. 7º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
XXIX – ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho;
a) (Revogada);
b) (Revogada);
Art. 2º. Revoga-se o art. 233 da Constituição Federal.
Art. 3º. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação."
A EC n. 28 nasceu da Proposta de Emenda Constitucional n. 65/95, de autoria do Senador Osmar Dias, do PSDB-PR, que teve aprovação, em segundo turno de votação, no Senado Federal, no dia 3 de março de 1999, e, posteriormente, tramitou na Câmara, onde recebeu o número 07/99.
Tendo conhecimento da tramitação, no Senado Federal e na Câmara, da proposta de unificação dos prazos prescricionais dos direitos do trabalhador rural e urbano, tivemos a oportunidade de criticá-la, rebatendo os fundamentos da PEC e defendendo a manutenção do prazo prescricional diferenciado para o trabalho no campo, tendo em vista vários aspectos, dentre os quais cumpre aqui destacar, de forma simplificada: a) ser o trabalho penoso no meio rural; b) as condições de vida precárias no campo; c) a frágil influência do sindicalismo no meio rural; d) o fato de que, em muitas situações, o empregado reside na fazenda do patrão por vários anos, formando com este quase um laço de parentesco, sentindo-se inibido de ajuizar eventual ação trabalhista no decorrer do contrato de emprego, não por omissão, mas sim em razão do seu estado de sujeição; e, e) porque o revogado art. 233 da Constituição Federal e o art. 10, § 3º, do ADCT, já asseguravam ao empregador rural, a cada cinco anos, ou até menos, o direito de comprovação, perante a Justiça do Trabalho, do cumprimento de suas obrigações trabalhistas, eximindo-o, via de conseqüência, de ter custos contábeis com a guarda de documentos por prazo indeterminado.[1]
Na ocasião, sugerimos, sim, a regulamentação do artigo 233 da Carta Magna, de maneira explícita, com a simplificação do procedimento a ser adotado, de modo a dar às partes certeza a respeito da extensão da decisão proferida.
Entretanto, promulgada a emenda constitucional, a discussão agora se volta para sua aplicação, visto que muitas dúvidas já surgiram entre os operadores do direito, tais como: a) o novo texto se aplica às ações ajuizadas antes de sua vigência? b) como fica a situação dos trabalhadores rurais que têm contratos com mais de cinco anos de duração e permanecem trabalhando? c) aplica-se o novo prazo prescricional aos contratos de trabalho, cuja duração é superior a cinco anos, e a respectiva extinção ocorreu antes da vigência do novo texto constitucional, com ajuizamento da ação a partir de 26 de maio de 2000? d) a norma tem aplicação imediata para os casos em que houver extinção do contrato de trabalho após a vigência da novel emenda?
É exatamente sobre essas questões que nos propomos a escrever este trabalho.
II. Conceito de Prescrição
Em todo estudo é imperioso que, primeiramente, se teçam, ainda que de maneira superficial, algumas considerações sobre a definição do tema do qual se está a tratar.
A prescrição, nas lições de Pontes de Miranda, "é a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação."[2]
No tocante aos seus efeitos, Ferreira Prunes ensina que "a prescrição, se não ataca a essência da questão, mostrando que o direito foi atendido pelo devedor, impede que o autor venha a exigi-lo, mesmo que titular de um direito."[3]
Quatro são os elementos da prescrição, segundo Oris de Oliveira: "1º) existência de um direito violado. No dia subseqüente à violação do direito, em princípio, começa a correr o prazo prescricional a não ser que a lei expressamente preveja uma causa impeditiva. Em rigor, também, no dia subseqüente, o titular do direito violado pode tomar qualquer providência que tenha efeito, previsto, em lei, de causa interruptiva do prazo. No primeiro dia do prazo, portanto, o titular pode propor ação judicial. Este o sentido da expressão ‘actio nata’, que na expressão de Yussef Said Cahali se situa em zona cinzenta porque expressa que antes de violação não há prazo, e que o início do prazo prescricional (direito material) coincide com o da possibilidade de proposição de ação (direito processual). 2º) inércia do titular do direito violado; 3º) continuidade da inércia durante certo lapso de tempo; 4º) ausência de algum fato ou ato a que a lei atribua eficácia impeditiva, suspensiva ou interruptiva do curso prescricional."[4]
Em linhas gerais, pois, a prescrição consiste na perda da exigibilidade do direito, dada a inércia do seu titular, em virtude do transcurso de um determinado lapso temporal previsto em lei, sem que haja ocorrido fato ou ato a que a lei atribua eficácia impeditiva, suspensiva ou interruptiva do prazo prescricional.
III. Princípios da Irretroatividade das Leis e do Respeito ao Direito Adquirido
A primeira leitura da EC n. 28, que retirou do curso do contrato de trabalho a condição de fato impeditivo do decurso prescricional, reduzindo para cinco anos o prazo da prescrição dos direitos do trabalhador rural — sem qualquer ressalva ou regra transitória — sugere uma aplicação imediata e retroativa do novo texto, interpretação esta que não resiste ao confronto com os princípios da irretroatividade das leis e do respeito ao direito adquirido, insculpidos no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República de 1988, no qual se impõe que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
O legislador constituinte, visando à consolidação efetiva do Estado Democrático de Direito e seguindo uma tradição histórica, manteve no nível constitucional o respeito da lei nova ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, consoante fora expresso nas Constituições de 1824, 1891, 1934, 1946 e 1967, consagrando-se o respeito a tais princípios em verdadeira regra, cuja única exceção foi a Constituição de 1937. Ressalte-se que mesmo durante a vigência desta Carta, em vários julgados, "o Supremo Tribunal havia decidido, no rumo de melhor corrente doutrinária, que não há retroatividade tácita, devendo o Juiz não aplicar a lei nova aos fatos passados se nela não se expressar tal possibilidade."[5]
Esse breve apanhado histórico documenta o vigor do princípio da irretroatividade das leis no ordenamento jurídico brasileiro desde o Império,[6] de tal forma que "a irretroatividade das leis, mesmo quando não seja canon constitucional, permanece como principio científico do direito, principio orientador de legisladores e juizes."[7]
Conclui-se, então, ser desnecessária qualquer menção da EC n. 28 à inexistência de efeitos pretéritos — mesmo em se tratando de emenda constitucional — eis que a irretroatividade da norma é regra insculpida no ordenamento jurídico brasileiro, preceito este não violado sequer no período de arbítrio constituído na vigência da Carta de 1937, quando, apesar de permitida, a retroatividade da lei dependia de previsão expressa.[8]
Ainda que ignorássemos a impossibilidade de aplicação retroativa da EC n. 28 e vislumbrássemos com sua edição um conflito de normas constitucionais — entre o conteúdo da própria emenda e o que dispõe o art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República de 1988 — a solução não seria diferente, prevalecendo os princípios da irretroatividade das leis e do respeito ao direito adquirido.
Ensinam os constitucionalistas portugueses Gomes Canotilho e Vidal Moreira que direitos constitucionais podem estar em conflito com outros direitos da mesma natureza ou com bens constitucionalmente protegidos. É o que chamam "colisão ou conflito de direitos fundamentais."[9]
A solução para tais conflitos, segundo os mestres portugueses, passa por alguns procedimentos: a) determinação do âmbito normativo dos direitos, a fim de se verificar se existe efetivamente o conflito, uma vez que este pode ser apenas aparente; b) verificada a existência de um conflito autêntico, é necessário apurar se existe uma "reserva de lei restritiva" expressamente prevista na Constituição para alguns dos direitos colidentes, pois nesse caso a própria norma constitucional resolve o conflito, dando-se eficácia ao direito não restringível, limitando-se, entretanto, o direito sujeito à reserva de lei restritiva com observância do princípio da proporcionalidade; c) inexistindo qualquer "reserva de lei restritiva" para os direitos colidentes, "o intérprete ou concretizador da Constituição deve limitar-se a uma tarefa de concordância prática que sacrifique no mínimo necessário ambos os direitos, não podendo privilegiar um direito a favor do outro;" e, finalmente, d) "em caso de conflito entre ‘direitos, liberdades e garantias’ não sujeitos a reserva da lei restritiva com outros direitos fundamentais (ex. direitos económicos, sociais e culturais) ou com outros bens constitucionalmente protegidos (defesa, saúde), devem prevalecer aqueles;"[10]
Extrai-se da lição supra que sempre haverá prevalência da norma constitucional concernente a direitos, liberdades e garantias, desde que inexista restrição em sua aplicação, quando esta conflitar com outra norma constitucional que se refira aos demais direitos fundamentais (v.g. direitos econômicos, sociais e culturais).
O mandamento que garante, diante de nova lei, a preservação do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, além de não conter qualquer restrição em sua aplicação, encontra-se inserido no Capítulo I do Título II, da Carta Magna, tratando-se de inabalável garantia constitucional e, por conseguinte, deve prevalecer diante dos novos preceitos da EC n. 28, cujas normas se referem a direitos sociais.
Então, ainda que houvesse o conflito de normas constitucionais analisado — o que se admite por mera hipótese — este seria resolvido, dando-se eficácia plena à aplicação do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República de 1988, com a preservação do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada na aplicação das novas normas introduzidas pela EC n. 28, vale dizer, respeitar-se-ia o princípio da irretroatividade das leis.
O princípio da irretroatividade das leis, por fim, liga-se de forma umbilical ao do respeito ao direito adquirido, a tal ponto que em sua ontologia descortinamos a proteção deste, o que nos remete a uma breve análise do instituto do direito adquirido.[11]
Sempre lembrado em matéria constitucional, José Afonso da Silva leciona que "se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se no seu patrimônio, para ser exercido quando convier. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato de o titular não o ter exercido antes". E mais adiante acrescenta: "Ora, essa possibilidade de exercício continua no domínio da vontade do titular em face da lei nova. Essa possibilidade de exercício do direito subjetivo foi adquirida no regime da lei velha e persiste garantida em face da lei superveniente. Vale dizer – repetindo: o direito subjetivo vira direito adquirido quando lei nova vem alterar as bases normativas sob as quais foi constituído". E, finalmente, arremata: "Não se trata aqui da questão da retroatividade da lei, mas tão-só de limite de sua aplicação. A lei nova não se aplica a situação objetiva constituída sob o império da lei anterior."[12]
IV. Direito Adquirido Em Matéria Prescricional
A preservação do direito adquirido em matéria prescricional também faz parte da tradição histórica do nosso ordenamento jurídico. Foi o que ocorreu em 1943, com a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho, que em seu art. 916 previa expressamente a impossibilidade de retroação dos prazos prescricionais em curso,[13] e em 1988, por ocasião da promulgação da Constituição Federal, no tocante à ampliação do prazo prescricional dos direitos do trabalhador urbano, quando houve o efeito imediato da nova norma, preservando-se, porém, o direito adquirido do empregador no tocante à prescrição já consumada pela norma antiga.[14]
E não é só no ordenamento jurídico brasileiro que a preservação do direito adquirido em matéria prescricional tem eco. Com toda sua autoridade, o civilista francês Planiol ensina:
"La nueva ley no podría hacer que una prescripción simplemente comenzada sea considerada como completada, porque esto sería modificar retroactivamente el modo de adquisición del derecho; no puede apoderarse de hechos pasados para reconocerles un efecto adquisitivo que no les acordaba la ley anterior.
Asignar como punto de partida para el nuevo plazo el momento en que la prescripción comenzó a correr bajo la ley antigua, sería evidentemente reconocer a la ley nueva un efecto retroactivo".[15]
Somam-se aos argumentos doutrinários expostos o fato de que o objeto de nosso estudo está inserido no contexto do Direito do Trabalho, cujos preceitos fundamentais estão alicerçados na proteção jurídica à debilidade econômica do empregado e que exigem a utilização de um processo hermenêutico peculiar.
O intérprete, no âmbito trabalhista, ao aplicar uma norma, procede à filtragem da mesma pelo conjunto de princípios peculiares do Direito do Trabalho, adequando sua execução pela ótica da proteção jurídica ao empregado hipossuficiente.
Destarte, sofrendo a prescrição restrições de aplicação no próprio direito comum,[16] maiores serão as resistências enfrentadas para sua utilização no Direito do Trabalho, no qual a diminuição de prazos prescricionais foi regulada para se evitar qualquer aplicação retroativa da norma.
É o que determina o já citado art. 916 da CLT, que cuidou de preservar o direito adquirido dos trabalhadores contido na legislação anterior à CLT, quando de sua edição, sempre que os prazos de prescrição previstos nesta fossem menores, sinalizando claramente que o espírito da lei não aceita a retroatividade de norma em matéria prescricional.
Não obstante o supracitado dispositivo consolidado seja norma transitória, de aplicação circunscrita à época da edição do Diploma Consolidado, entendemos que o pensamento primitivo que norteou sua edição se preservou, amalgamando-se aos princípios peculiares do Direito do Trabalho.
A peculiaridade da hermenêutica de normas trabalhista afasta, por si só, ainda, qualquer cogitação de aplicação do entendimento emoldurado na Súmula n. 445 do Colendo Supremo Tribunal Federal ao caso em exame.[17] Entretanto, outro argumento reforça esta exegese, senão vejamos.
Enquanto a EC n. 28 entrou em vigor imediatamente, no dia de sua publicação, a Lei n. 2437, de 7.3.55, fê-lo somente em 1.1.56, quase dez meses após sua publicação, o que torna os casos absolutamente distintos.
A incidência do disposto na súmula à EC n. 28 implicaria imediata perda da exigibilidade de direitos sem que o trabalhador tivesse qualquer possibilidade de exercê-los — e sequer era obrigado a fazê-lo, haja vista a existência de fato impeditivo do curso da prescrição — ao contrário do que sucedeu na vacatio legis da norma que originou o entendimento ora analisado.
Concluímos, pois, que a exegese mais cientificamente aceitável é a que advoga o efeito imediato da Emenda Constitucional n. 28 aos contratos de trabalho em vigor, respeitando-se, todavia, transitoriamente, o império do dispositivo constitucional derrogado — art. 7º, inciso XXIX, alínea "b" — que garantia aos trabalhadores rurais o direito de postular eventuais verbas trabalhistas de todo o pacto laboral até dois anos da data da rescisão contratual. Isso em estrita obediência à garantia constitucional dos princípios da irretroatividade das leis e do direito adquirido, bem como atendendo às peculiaridades do processo hermenêutico das normas trabalhistas — notadamente aquelas pertinentes à prescrição — consoante já expusemos.
A aplicação transitória do disposto na norma constitucional derrogada implica o surgimento de dois blocos de lapso temporal nos contratos de trabalho em vigor, aplicando-se regras transitórias a um e permanentes ao outro, quais sejam:
O primeiro bloco, garantido pela aplicação transitória do dispositivo constitucional derrogado, compreende o lapso temporal decorrido entre a data da admissão até 25.5.00, inclusive. Para tal bloco não deve haver prescrição imediata, mas sim, o efeito imediato da EC n. 28 a partir da data de sua publicação, quando então se iniciou a contagem do novel qüinqüênio prescricional, de tal forma que a reparação de direitos violados desde a data da admissão do trabalhador rural até o dia 25.5.00 poderá ser postulada em juízo até 26.5.05. Entretanto, ultrapassada esta última data, poderão ser declarados prescritos todos os direitos relativos a este bloco.
Já o segundo bloco, ao qual se aplica imediatamente a EC n. 28, compreende o lapso temporal iniciado em 26.5.00. Neste caso, já se aplica o novo prazo prescricional de cinco anos, de modo que, se um empregado rural ajuizar ação trabalhista, hipoteticamente, em 18.10.05, postulando horas extras de todo o contrato de emprego, poderá ter declarada a prescrição não só dos direitos atinentes ao primeiro bloco (compreendido entre a data da admissão até 25.05.00) mas também daqueles relativos ao período de 26.5.00 a 17.10.00.
Esse nosso entendimento é o mesmo adotado para a contagem da prescrição dos direitos do trabalhador adolescente,[18] cujo prazo qüinqüenal somente se esgota cinco anos após a data em que o trabalhador completar 18 (dezoito) anos de idade.[19]
Convém ressaltar, ainda, que a prescrição somente será declarada se argüida pelo empregador e, também, desde que não haja ocorrido fato ou ato a que a lei atribua eficácia impeditiva, suspensiva ou interruptiva do prazo prescricional.
Por fim, registramos que, no novo prazo prescricional dos direitos do trabalhador rural, observar-se-á o conceito da actio nata,[20] até então inócuo no Direito do Trabalho Rural porque o início da contagem do prazo prescricional se dava não da violação do direito, mas somente da data da extinção do contrato.